27.8.05

Às cegas

Existe um restaurante em Paris onde, após completar o serviço, o garçom anuncia: "o copo d’água está à esquerda e a taça de vinho à direita, ao alcance de suas mãos". Acontece que você está no mais completo breu, num lugar onde celulares, relógios, qualquer fonte luminosa é confiscada na porta. O garçom é cego e só ele sabe como se virar naquele ambiente. Você não consegue ver nem seu companheiro de mesa, só tocá-lo (o que pode ser uma boa idéia). Mas o caso é que você vai ter que identificar e avaliar o vinho que está naquela taça. É evidente que é o restaurante que escolhe o vinho. Você não sabe que garrafa vem para a mesa. E aí é que são elas.O restaurante, também um bar e lounge é o “Dans le Noir”, que fica na 51, Rue Quincampoix, na área do Beaubourg. Você pode achar o ambiente claustrofóbico ou extremamente tranqüilo. Mas, sem dúvidas, pode ser divertido para uma prova de vinhos e comidas. Um teste cego é a prova de fogo dos profissionais do vinho ou mesmo dos grandes conhecedores. Apenas através dele anulam-se os traços de subjetivismo que acompanham quaisquer julgamentos. No caso dos vinhos, um rótulo à sua frente certamente poderá influenciar a avaliação. A maioria das degustações profissionais é feita às cegas. Os testes comparativos, por exemplo, são sempre cegos: eles reúnem vinhos de safras mais ou menos próximas e da mesma origem. Saber a sua identidade poderia prejudicar toda a avaliação.É um exercício extremamente difícil. É parte, por exemplo, do exame do Institute of Master of Wine, na Inglaterra, o mais importante curso formador de profissionais de vinho do mundo: lá, na prova final, os candidatos têm de identificar nos vinhos a variedade da uva, sua origem geográfica e a safra.Um crítico respeitado, o inglês Jamie Goode, afirma, no seu site “The Wine Anorak" , que os críticos de vinho deveriam submeter-se a testes cegos. Ele antecipa que alguns seriam reprovados, o que para o inglês seria muito bom, pois talvez voltassem seus talentos para áreas distantes da crítica de vinhos.Um teste feito pela Universidade da Califórnia, em Davis, demonstrou que mesmo degustadores experientes encontraram dificuldades em identificar diferentes variedades de uvas. Os enganos foram consideráveis, também, na determinação das safras. O mais antigo e também mais premiado colunista australiano, Len Evans, realizou testes cegos reunindo experimentadores novatos e veteranos. Os novatos geralmente ganhavam, demonstrando que a experiência, muita informação, pode confundir nossos narizes.Há alguns exageros nesse tipo de teste, provavelmente pouco aceitos pelos verdadeiros profissionais do vinho. Por exemplo, o respeitado INAO, Institut National des Appelations d’Origine, órgão oficial que na França administra, regula e protege as Apelações de Origem, não apenas das regiões produtoras de vinho, mas de Cognac, Armagnac e calvados. Pois o INAO projetou taças oficiais de degustação em vidro preto, especiais, evidentemente, para os testes cegos. Os profissionais do vinho, produtores, enólogos, comerciantes e jornalistas utilizam sempre as taças de cristal branco em suas provas regulares. Agora, temos as com vidro preto.Assim, além de ter de identificar as uvas, a origem e a safra, o provador tem de saber se o vinho é tinto, rosado, dourado, amarelo etc. É torturante. Você precisa de muita, muita experiência. E evidentemente de uma tremenda sorte. Contudo, um bom provador dispensa tudo isso. Ele tem a capacidade de, mesmo lendo o rótulo do vinho, sabendo a sua safra e sua origem e a sua eventual “fama”, firmar um julgamento isento sobre a bebida. O amante do vinho faz o mesmo. Não gostou do vinho, passa para outro. Não existe mistério: profissionais e amadores vivem se aproveitando da imensa diversidade dessa bebida. Mesmo duas garrafas de um vinho de rótulos iguais (mesmo produtor, origem, safra etc.) não são absolutamente iguais. Essa é uma das grandes graças dessa bebida.Para os esnobes do vinho, aqueles que se proclamam sabichões, o teste cego é uma prova de humildade: com certeza, essa turma vai sair dessa experiência de cabeça baixa e sossegar por um bom tempo. O “Dans Le Noir” (“No Escuro”) nasceu de um projeto da Sociedade Paul Guinot, criada logo após a Primeira Guerra. Seu objetivo é promover cultura, esportes e empregos para os cegos. A colunista americana Jennifer Rosen esteve lá (e daí esse relato) e diz que provou também a comida: gostou muito, mas acabou comendo com as mãos, pela falta de radares nos seus talheres. Ninguém se importou até porque ninguém viu. O restaurante emprega 12 garçons cegos e regularmente promove degustações de vinhos.De qualquer modo, o “Dans le Noir” promove um choque, uma experiência importante, pois nos coloca no lugar dos cegos, aproxima-nos do mundo deles. Normalmente, sentimos pena deles, oferecemos a ajuda. Mas apenas imaginamos como é viver na escuridão total. O restaurante francês oferece uma experiência real desse mundo. É quando, para sobreviver, apelamos para nossos outros sentidos, principalmente o olfato e o tato. Se o teste cego é a prova dos nove na avaliação de vinhos, comer “às cegas” extrapola o politicamente correto para mim. Às refeições, tenho que ver o que como e bebo.
Comente sobre suas experiências às cegas. Escreva para a Soninha no soniamelier@terra.com.br

19.8.05

Um Ano Bom

Com o sucesso de público e crítica do filme Sideways qualquer um poderia apostar que o cinema iria olhar para o mundo dos vinhos com muito mais atenção. Agora, é o famoso diretor Ridley Scott que prepara um filme baseado na 5ª novela do inglês Peter Mayle, “Um Ano Bom”, já lançada no Brasil.
Sideways custou US$ 16 milhões e sua bilheteria foi de US$ 71 milhões. E ainda levou o Oscar de melhor roteiro adaptado. Não apenas isso: o filme fez aumentar as vendas das garrafas de Pinot Noir nos EUA e o tráfego turístico para a Califórnia.
O ano que passou teve também o sucesso do documentário Mondovino, ainda rodando pelo mundo. Ele denuncia a “cocalização” do vinho, sua “homogeneização”, praticada pelos grandes grupos do setor, segundo seu diretor, Jonathan Nossiter.
Depois do cult Blade Runner e de megaproduções como Gladiador e da recente As Cruzadas, Ridley Scott resolveu tirar férias. Sim, pois a história, como quase todas de Mayle, se passa na Provence, esse paraíso terrestre. É uma trama leve, que envolve além de vinhos, a estupenda culinária local, a inesquecível paisagem e os personagens típicos da famosa região. E tudo isso tem o gosto de bom descanso e certamente de ótimo entretenimento.
O diretor inglês está tentando contratar o premiado (tem um Oscar) Russell Crowe, o “gladiador”, “mestre dos mares” e recentemente um lendário pugilista (em Cinderella Man). O temperamental ator, se aceitar o convite, fará o papel de um inglês, Max Skinner, que trabalha numa corretora londrina e perde seu principal cliente através de uma tramóia de seu chefe. Perde também o emprego. Está duro, deve o aluguel. Parece sem saída. É quando resolve ver o que está na caixa do correio: lá está a carta do tabelião de St. Pons, a vila próxima da grande propriedade de seu tio, o lugar onde passava férias na juventude. Pois a notícia é que seu tio morrera e deixando sua propriedade como herança.
A fictícia St. Pons fica à uma hora de distância de Avignon, na Provence. Max se aconselha com um amigo e resolve partir para a Provence e tentar mudar de vida. Será uma deliciosa mudança.
O personagem sai do inferno urbano e executivo de Londres e se encanta com a pacata e deliciosa vila. O vinhedo está precisando de cuidados. Os vinhos que produz são péssimos. O caseiro, que está lá desde os tempos do falecido tio, parece próspero. Sua casa é farta e sua vida vai muito bem. Tem algo errado!
Max resolve investigar. No caminho, cai de amores pela dona do melhor restaurante da cidadezinha, aprende a dançar, só tropeça na falta de explicações convincentes para as uvas e os vinhos medíocres produzidos em sua propriedade.
Por obra de um acaso e da honestidade do tal caseiro, o inglês descobre que há uma parte do vinhedo que produz vinhos fabulosos – vendidos às escondidas pelo funcionário a um misterioso negociante de Bordeaux.
Max está diante de uma fraude, um golpe, onde produtor e investidores são lesados. E isso sempre aconteceu, resultando em enormes prejuízos para o simples consumidor, que bebe gato por lebre, como para aqueles que compram vinho como se no mercado de futuros. Compro hoje por um preço e vendo mais caro adiante. Ou para colecionadores: compro uma raridade possuída por poucos.
As fraudes incluem ora a adulteração do vinho. Vinhos mais simples recebem rótulos de vinhos mais sofisticados ou esses são misturados a vinhos de mesa, inferiores. E vendidos mais caros. Em 1974, aconteceu na França o “Winegate”: vinhos medíocres do sul do país eram vendidos com rótulos de grandes casas de Bordeaux. A empresa que aplicava o golpe foi multada em US$ 8 milhões e seu diretor se suicidou.
As fraudes não se localizam apenas no segmento de vinhos. Uísques e conhaques aumentam a lista de golpes. Mas o vinho está na moda. Daí que a quantidade de esquemas sujos envolvendo a bebida é maior e resulta em prejuízos de milhares e milhares de dólares todos os anos a investidores e aos governos envolvidos.
Peter Mayle arruma sempre uma maneira de revelar os podres do jeito Daslu de ser, do mundo dos ricos e famosos. Numa novela, temos a falsificação de quadros, noutra adulteração de trufas.
Mas voltemos ao nosso Max. Ele consegue descobrir quem é o oculto negociante de Bordeaux, o pilantra que compra toda a produção dos vinhos bons de Max, diretamente do caseiro. Compra por uns míseros dólares e vende cada caixa de 12 garrafas a partir de 40 mil dólares. Basta para isso mudar o rótulo e vender os vinhos como o Bordeaux mais cult e misterioso, um vinho de garagiste, com um rótulo misterioso “Le Coin Perdu” (lugar perdido, esquecido). Seria o vinho de um pequeno parreiral que só conseguia tirar 600 caixas anuais. Lorota que consegue enganar otários através de um delicioso malabarismo verbal. Skinner sem dinheiro para investir na sua terra e o pilantra e cúmplices faturando alto.
Peter Mayle repete mais uma vez o seu primeiro livro, “Um Ano na Provence”. Todas as suas demais novelas são seqüelas desse trabalho de tremendo sucesso de público e, claro, vendas. Por exemplo, na novela “Hotel Pastis”, é um publicitário inglês, entediado com o mundo executivo que resolve pedir as contas e partir para a Provence, onde abre uma pousada, numa trama que inclui também mistério, crime e suspense. Os ingredientes habituais.
As tramas são parecidas, mas não são iguais. Em cada novela, Mayle nos mostra um ângulo novo da Provence, um aspecto diferente dos humores de seus habitantes e das pragas de turistas que ele mesmo incentivou a conhecer a região.
“Um ano bom” é o primeiro que coloca os vinhedos e os vinhos provençais em primeiro plano. Peter Mayle resolve tudo com elegância, humor e adequado suspense. Ridley Scott foi diretor de comerciais de TV antes de dedicar-se aos longas metragens. Logo, deve ter sido colega do também ex-publicitário Peter Mayle: os dois têm tudo para se entender bem.
Só torço para que Ridley Scott não faça o Russell Crowe distribuir porrada em parte da população de Bordeaux. A trama original não pede isso.
Peter Mayle nos faz aprender mais sobre vinhos, falcatruas e a fabulosa Provence. Sua novela é ótimo entretenimento. Tomara que o filme siga o mesmo caminho.

Beethoven por um fio

A TV inglesa exibiu recentemente um documentário sobre a trajetória de um chumaço de cabelo do gênio da música, Ludwig van Beethoven, recolhido assim que o compositor morreu, em 1827. Analisada, essa porção revelou uma concentração de chumbo 100 vezes acima do nível seguro – o que explicaria as mazelas do autor: doenças estomacais, grandes dores de cabeça, irritabilidade e, inclusive, a sua surdez (a partir de 1797-99) e que acabariam com a sua morte em 1827.
O documentário sugere que o compositor tenha se intoxicado com chumbo consumindo águas de estações hidrominerais que freqüentou quando jovem. Mas um jornalista do irlandês Sunday Life, John Hunter, acha que o gênio teria sido envenenado através vinho e cerveja, que adorava.
No século 19, o chumbo era usado para adulterar essas bebidas de modo a melhorar seus sabores e aspectos. O metal era empregado desde os tempos dos romanos, para que o vinho não avinagrasse e também para adoçá-lo. Duzentos anos antes, um médico alemão, Eberhard Gockel, estabeleceu a primeira relação da bebida adulterada com a saúde, observando que bebedores de vinho tinham os mesmos problemas que os trabalhadores em minas de chumbo.
Nos tempos de Beethoven, bebia-se principalmente em canecas feitas de uma liga de estanho (70%) e chumbo (30%), as garrafas eram limpas com jatos de chumbo, reservatórios e encanamentos de água continham muito chumbo. Nesse sentido, você poderia culpar qualquer bebida.
Traços do metal existem naturalmente em todas as plantas, inclusive nas uvas. A prática da adulteração foi banida há tempos e hoje o metal é precipitado já na fase de produção do vinho. Os equipamentos das vinícolas não utilizam chumbo. Só ínfimas quantidades são ainda encontradas em algumas cápsulas de chumbo que protegem as rolhas – o que já está proibido na maioria dos países. Podemos encontrar chumbo em taças e decantadores de cristal (produzidos com o metal). Um estudo revelou uma concentração de 5 mg por litro de chumbo num decantador deixado com vinho do porto por 4 meses. Para que uma pessoa se intoxicasse, teria que beber 10 litros da bebida quase que de uma vez. Sabe-se que os vinhos modernos contêm um máximo de 0,13 mg de chumbo por litro de vinho, bem abaixo do nível permitido. Na América o nível é de 150 partes de chumbo por bilhão. A média mundial é de 95 partes por bilhão. É como se o metal não existisse na bebida.
Uma autópsia descobriu alguns problemas no fígado, no baço e no pâncreas do autor. Diz a historiadora Anne-Louise Coldicott que o compositor teria uma colite ulcerativa, hoje curável com os medicamentos modernos. Sofria de depressão, talvez devido ao problema que causou sua surdez. Apesar de gostar de vinho, são infundadas as suspeitas de que era um alcoólico. Mas até agora não se sabia da presença letal de chumbo revelada pelo cabelo de Beethoven. A verdade é que nossas vidas sempre estiveram por um fio. E o chumbo continua matando. Só que não se pode mais culpar os vinhos por isso.

Decantar ou não decantar

Afinal, devemos decantar todo e qualquer vinho, seja jovem ou maduro, com duas ou mais décadas de idade? Não apenas isso: devemos decantar tanto os tintos quanto os brancos? Espumantes devem ser decantados?
A tradição orientava a decantação apenas daqueles vinhos mais maduros, com depósitos - normalmente nas paredes laterais das garrafas guarados que estvam na posição horizontal nas adegas. É num desses lados que esses depósitos se reúnem.
A decantação – a transferência da bebida de um reservatório (no caso, a garrafa) para outro (o decantador ou apenas uma taça) -, era é continua sendo feita para eliminarmos esses sedimentos. A própria palavra quer dizer “separar, por gravidade, impurezas sólidas que se contenham em um líquido”, limpar, livrar, purificar – reza o Aurélio.
E essa é até hoje a mais óbvia razão para decantarmos alguns vinhos. Nada mais natural, pois aquelas impurezas, embora inofensivas à saúde, muitas vezes emprestam adstringência e sabor amargo ao vinho,.
Mas atualmente a confusão é grande. Observamos tanto em casa de amigos como em restaurantes bons de vinho que estão decantando qualquer garrafa que vá à mesa, não importa se de vinhos maduros ou jovens.
Mas esses, os mais jovens, raramente carregam impurezas. Um consultor de vinhos para restaurantes na Califórnia, Michael Quellette, afirma que com relação aos vinhos jovens “não se trata na realidade de decantar: o termo técnico é arejar, aerar, ventilar, oxigenar”.
Oxigenar? Mas isso não vai “envenenar” o vinho, corrompê-lo, avinagrá-lo? Não é para evitar a oxidação que estava hermeticamente fechado?
Segundo o citado consultor, um vinho, mesmo jovem, deve ser decantado para ganhar um pouco de ar. Os vinhos estão sempre comprimidos quando você abre a garrafa. Deixar entrar um pouco de ar, para o consultor, pode ajudar a “separar as camadas de aroma e sabor e expor algumas das qualidades da bebida”.
Michael Quellette está convencido de que decantar vinhos jovens só faz melhorá-los. Faz isso com todos os vinhos: tintos e brancos. Quanto a esses últimos, fala que ajuda os vinhos a florescer. “Se não decantá-los (os brancos), você só perceberá as qualidades do vinho na última taça. Ao decantá-los, você vai despertá-los já a partir da primeiras taça”.
A teoria é a de deixar o vinho em contato com oxigênio para que ele libere logo os seus aromas.
No "French Laundry", considerado um dos melhores restaurantes do mundo, em Napa, Califórnia, cujo chef, Thomas Keller, já recebeu por duas vezes consecutivas o maior prêmio da culinária norte-americana, o da Fundação James Beard, o sommelier decanta até vinhos espumantes, especialmente os rosados. E a efervescência? O sommelier do restaurante acredita que a decantação libera muito do dióxido de carbono, “resultando num vinho mais cremoso e mais frutado e menos ácido”. E menos efervescente, claro.
Alguns livros, inclusive, recomendam decantar com um dia de antecedência vinhos potentes, com aromas fechados ao nariz, como o caríssimo tinto italiano Brunello di Montalcino.
Muitos amantes de bons vinhos decantam garrafas de tintos mais carnudos, muito intensos, uma hora antes de servi-los.
Por outro lado. As virtudes da decantação sob quaisquer condições (para vinhos de qualquer estilo e idade) não são compartilhadas inteiramente pela ciência.
O professor de enologia da Universidade da Califórnia, em Davis (um dos maiores e mais respeitados centros de estudo e pesquisa enológica do mundo), Roger Boulton, afirma que não há absolutamente nenhuma evidência de que a decantação produza qualquer mudança nos taninos do vinho, pelos menos por alguns dias. Provadores podem até achar que os taninos ficaram mais macios (menos adstringentes), mas testes de laboratórios mostram o contrário.
O professor também revela que “nem a aeração, a oxigenação do vinho tem essa participação que muitos profissionais pensam ter”. Boulton diz que o oxigênio não tem nada com os aromas que emergem quando um vinho é colocado numa taça ou num decantador. “Esses aromas aparecem inclusive num ambiente nitrogenado, sem a presença do oxigênio”.
Como um refrigerante que libera parte do seu dióxido de carbono quando é aberto, mas guarda algumas bolhas na bebida, o vinho retém muitos dos seus componentes aromáticos em solução na garrafa, uma parcela deles está concentrada no gargalo (na parte superior do líquido, aquele espaço vazio entre a base da rolha e o vinho). Quando retiramos a rolha e o vinho é colocado seja num decantador ou numa taça, ambos com gargalos bem maiores, aqueles aromas, bons ou ruins, têm para onde escapar.
Alguns componentes do vinho evaporam-se mais rapidamente do que outros. Os sulfitos (sais e ésteres do ácido sulfuroso) e o ácido acético estão entre os primeiros a escafeder-se. Daí que o perfume inicial de um vinho pode não ser dos melhores.
Mas preste atenção que os ésteres (substâncias resultantes da condensação de um ácido orgânico com um álcool) responsáveis pelos aromas de muitos vinhos brancos podem também evaporar-se logo. Portanto, decantar um branco pode diminuir os seus atributos, explica o professor da UC Davis.
Dependendo da idade de um vinho e dos componentes aromáticos que contenha, essa liberação de aromas pode continuar por duas ou três horas. Mas num tinto típico de 10 anos, uma hora para “respirar” é mais do que suficiente, diz o professor. Depois disso, o vinho perderá mais dos aromas bons do que dos ruins. E Roger Boulton observa que aromas ruins, como os provocados por defeitos, como os da “doença da rolha”, jamais serão evaporados. Ficam no vinho.
Outra dica é que ninguém precisa de um decantador para liberar os aromas de uma garrafa. “Basta servir o vinho numa taça que o efeito é o mesmo. Use o decantador apenas se você é um sommelier”, diz o professor. Roger Boulton atribui a tradição de decantar aos vinhos europeus, “geralmente com muito mais incidência de defeitos do que os vinhos do Novo Mundo”.
O grande mestre da enologia, o já falecido cientista francês Emile Peynaud, argumentava que apenas os vinhos com falhas beneficiavam-se com a decantação. Acreditava que bons vinhos revelavam as suas qualidades e charmes assim que eram despejados numa taça.
Mas tanto Boulton, quanto Peynaud e a maioria dos profissionais do vinho concordam num determinado ponto: apenas desarrolhar a garrafa e deixar o “vinho respirar” não ajuda muita coisa. Até que o vinho seja transferido para um lugar mais espaçoso, seja uma taça ou um decantador, não se notará qualquer melhoria. De qualquer modo, não há como negar que um vinho apresentado num decantador fica muito mais convidativo.
Como decantar. Com os vinhos mais velhos, mais maduros, temos de separar os sedimentos depositados nas paredes da garrafa. Segure o gargalo da garrafa próximo a alguma fonte de luz (uma vela, uma lanterna) e muito firme e vagarosamente vá despejando o vinho no decantador. A luz ajudará a ver quando os sedimentos chegam próximo ao gargalo. Nesse momento, continue com mais cuidado e vagar ainda. Em hipótese alguma agite a garrafa. Uma vez no decantador, beba logo o vinho, para que não perca de vez os seus aromas. Se o vinho for muito maduro, o melhor é não decantá-lo. Beba-o logo, pois suas qualidades podem perder-se no processo da decantação.
Para vinhos jovens, deixe-os por uns 15 minutos num decantador, ensina o editor da “Restaurant Wine”, Ronn Wiegand. Para os vinhos mais musculosos, como os Cabernet Sauvignon, ele recomenda uma hora.
A amiga pode muito bem testar as qualidades de decantar ou não. Basta abrir uma garrafa, encher uma taça e decantar o restante. Prove da taça. E algum tempo depois, o vinho que está no decantador. Compare as duas provas.

Harmonia II

Só mais uma palavrinha sobre essa questão de harmonizar vinhos e comidas (veja post "Harmonia" mais abaixo). Esse não é um assunto fechado, absolutamente resolvido. O que publiquei semana passada foram dicas de um dos mais sérios escritores e críticos de vinho do mundo, Hugh Johnson. Logo, carregadas de subjetividade. Por isso, ao largo de verdades científicas. E nunca foi essa a intenção do mestre inglês.
Enfim, tudo o que se pretende com qualquer harmonização é fazer ressaltar tanto o sabor do vinho quanto o do prato que o acompanha.
Harmonizar vinhos e comidas pode ser um assunto complexo, sempre envolvendo a cultura gastronômica de uma região ou de todo um país. Pode também se transformar no recreio exclusivo de chatos e pedantes. Depende do ponto de vista.
O fato é que a professora Hildegarde Heyman, de ciência sensorial do departamento de viticultura e enologia da Universidade da Califórnia, na cidade de Davis (um dos mais importantes centros de estudo e ensino do vinho, em todo o mundo), verificou que a maioria das combinações, em particular as de queijos e vinhos, não funciona.
Essas harmonizações não são nada do que alardeiam. Podem até resultar em jantares divertidos, mas ninguém ainda demonstrou cientificamente que a combinação de comida e vinho melhora de verdade esses dois componentes– que é o que se pretende em qualquer dessas reuniões.
Inclusive, a professora Heyman acha que acontece justamente o oposto – e tem base científica para prová-lo.
Ela vem realizando uma série de testes bem estruturados e precisos para determinar os benefícios ou os obstáculos que ocorrem quando da combinação de vários vinhos com várias comidas.
Como já falamos, muito se escreve, fala e mostra sobre harmonização. Aqui e em qualquer outro canto do globo. Até os contra-rótulos das garrafas agora apresentam sugestões de pratos para combinar com vinhos.
Só que são pouquíssimos os estudos acadêmicos, parcas as informações com base científica sobre a combinação de vinhos e comidas. Até hoje, a professora só encontrou quatro trabalhos, todos originários da Suécia. E nenhum deles com argumentos convincentes, definitivos sobre as harmonizações.
A cientista decidiu, então, realizar a sua própria série de experiências. Seu trabalho mais recente, conduzido com a ajuda de uma estudante graduada de Davis, Berenice Madrigal-Galan, reuniu 11 juizes treinados (em experimentar vinhos e comidas), que se submeteram a testes para determinar como percebiam aromas e sabores de vinhos tintos se consumidos com uma variedade de queijos.
Esses juízes testaram oito vinhos de quatro diferentes variedades (Cabernet Sauvignon, Pinot Noir, Merlot e Syrah) – antes e depois de experimentarem oito espécies de queijos, de macios a duros, de leves a ricos (mais gordurosos). Os testes foram repetidos três vezes.
Os resultados foram desanimadores: as combinações não fizeram nada por melhorar a percepção sensorial dos vinhos. Ao contrário: elas na verdade fizeram com que aromas e sabores da bebida ficassem piores.
Para os juízes, os atributos que geralmente apreciamos nos vinhos tintos – os sabores e aromas de frutos, em particular de amora, morango, framboesa, os aromas e sabores do carvalho, a adstringência (aquela sensação de constrição provocada na boca pelos taninos do vinho tinto) – tudo isso decresceu na medida em que se provavam os queijos.
“Em todos os casos, houve um decréscimo. Nos testes, o vinho sem o queijo tinha sabor mais intenso. Com o queijo, esse sabor perdia intensidade”, revela Heyman. As diferenças eram pequenas, mas consistentes e por isso significativas.
O sabor e aroma que mais se intensificavam nos vinhos eram um tanto amenteigados, um resultado até esperado, em conseqüência da fermentação malolática, que acontece nos vinhos novos, particularmente nos tintos, quando o forte ácido málico se converte em ácido lático (que tem baixa acidez) e em dióxido de carbono. O próprio nome, lático, explica o sabor e aroma amanteigado.
“Mas só uma pessoa bem treinada em degustação de vinhos poderia perceber aquela intensidade. Um amador nada notaria”, afirma a professora.
Hildegarde Heyman e Madrigal-Galan buscaram estudar apenas o impacto do queijo sobre o vinho. E não do vinho sobre o queijo.
Apresentaram suas conclusões na reunião anual da Sociedade Americana de Enologia e Viticultura, realizada recentemente em Seattle.
O que é importante é que as duas acadêmicas não estão levantando questões sobre a validade de testar vinhos específicos com determinadas comidas. Evitam julgamento de valores. “Essa não é uma questão de gostar ou não gostar, ou de analisarmos a qualidade do vinho. Só queríamos determinar se o grau de intensidade do vinho foi afetado. Há um decréscimo, sim, nos vinhos. Mas isso não quer dizer que alguma coisa piorou. Se alguém gosta de tomar vinho e ao mesmo tempo comer queijo, que vá em frente”, diz Heyman.
Lá por volta dos anos 50, as regras de harmonização eram bem simples e generalizantes, do tipo vinho tinto com carne vermelha, vinho branco com carne branca.
Mas a partir dos anos 80, as coisas ficaram mais complicadas e se você não soubesse alguma coisa a mais estaria fora de contexto pelo menos no caso dos vinhos.
Os estudos da professora vão continuar. A fase seguinte envolverá pedaços de pão e molhos de salada. Com os queijos, ela trabalhou com produtos fixos que não podiam ser alterados prontamente. Mas a gordura, doçura, acidez e outros componentes do pão e dos molhos são itens facilmente manipuláveis.
“Quero ver o que acontece quando aumentamos a acidez, os níveis de gordura e de doçura”, revela Heyman.
“Gosto de harmonizar vinho e comida, mas sem enlouquecer por causa disso. As pessoas esquecem que o vinho é uma bebida que deve ser saboreada. Beba o que você quiser e coma o que gostar sem se preocupar em não ter precisamente o vinho certo para a ocasião”, finaliza a professora.
Foi por isso que, na coluna passada, contei a história do Hemingway viajando através da Borgonha, tomando um vinho da região e comendo as comidas da região. Nada mais natural: é assim que o povo de lá aprendeu a fazer.
Foi por isso, também, que dei dicas de um mestre inglês experimentado e não as minhas, pois dificilmente vou conseguir testar tudo o que deveria para sair por aí deitando regras.
De qualquer modo, a Heyman só confirma o que sabemos: nunca foi fácil combinar vinhos e queijos. O espantoso é que essa dupla é o arroz de festa. Agora, ficamos sabendo que os vinhos perdem intensidade, pioram. Vamos ver o que vem mais por ai.

O Brasil na lista

A famosa crítica de vinhos, autora e Master of Wine Jancis Robinson fez uma lista das mais novas e promissoras regiões vinícolas do mundo. Temos hoje no mundo mais vinhos do que podemos consumir, mas novas áreas de produção não param de surgir. O Brasil faz parte dessa reduzida e nobre lista.
* Waitaki, Nova Zelândia. Começou quando um empreendedor local, Howard Paterson, resolveu plantar a tinta Pinot Noir em parte de sua fazenda na costa leste de North Otago, na Ilha Sul da Nova Zelândia. A primeira colheita comercial aconteceu em 2004, sendo dividida pelos parceiros do projeto, resultando em cinco vinhos promissores: quatro 2004 Pinot Noirs, mais um Pinot Gris e uma Sauvignon Blanc. Os vinificadores são diferentes, mas basta verificar no rótulo a origem da uva: Waitaki Valley Estates.
* Limarí, Chile. O panorama do vinho no Chile estendeu os seus limites 500 quilômetros para o norte, englobando a região de Coquimbo, onde fica o Vale Limari, a 20 km do Pacífico. As temperaturas mais frias vindas do mar dilatam o processo de amadurecimento e as uvas saem com nuances mais sutis do que as que crescem mais ao sul e no interior. A Viña Francisco de Aguirre foi a pioneira na região e seus vinhos de tão bons, acabaram comprados pelo maior produtor do país, Concha y Toro.
* Colinas de Santa Rita. É um nome novo para uma região já conhecida, o Vale de Santa Ynez, no sul da Califórnia, famoso pelas suas vinícolas e também por abrigar o Rancho Neverland, de Michael Jackson. Santa Rita fica a oeste do vale, na parte mais influenciada pelo Pacífico, como em Limari. Atenção para os Pinot Noir e os Syrah da Babcock, Brewer-Clifton, Melville e Sanford.
* Queensland, Austrália. É a área onde a indústria vinícola cresce mais rapidamente na Austrália, tanto que seus vinhos raramente são exportados. O turismo e o consumidor local praticamente sustentam os 150 produtores locais.
* Vale Agly, Roussillon, França. A uva Grenache é a que impera nos terrenos xistosos em torno das vilas de Maury e St. Paul de Fenoillet, no Roussillon, resultando em ótimos vinhos, vendidos como Vins de Pays des Côtes Catalanes ou Côtes du Roussillon Villages. Produtores principais: Gauby, Matassa, Le Roc des Anges e Le Soule.
* Philadelphia, África do Sul. Fica em Tygerberg, entre Stellenbosch e a costa oeste. É fonte de variedades de uvas originárias de Bordeaux, de alta qualidade. Atenção para a vinícola Capaia.
* Vale do São Francisco. Pois é: estamos fazendo bons vinhos até no árido nordeste, nas margens do São Francisco, fugindo do clima muito úmido da Serra Gaúcha. Procure pelo rótulo Vale do Sol, vinhos geralmente com a Syrah ou Syrah e Cabernet Sauvignon, os provados e fartamente elogiados pela rigorosa colunista. Você já os encontra nos supermercados daqui e nos da Inglaterra, Alemanha e Holanda.