25.6.05

Quando o frio chega

Aqui em Secretário, na Serra de Petrópolis, faz é frio e chove. O inverno chegou mesmo e com chuva. Falam que este ano a estação será mais amena, mas os santos daqui ainda não foram avisados disso. Nesses tempos, temos que tentar mesmo o que manda a estação. Abusar um pouco mais dos queijos, fazer pratos mais suculentos, ler um livro certo ao pé de uma lareira e escolher as bebidas mais estimulantes, saborosas e adequadas.
Comecemos pelo livro:
“Um Bom Ano” é o mais recente trabalho do inglês Peter Mayle, cujo primeiro livro “Um Ano na Provence”, de 1989, transformou aquela região francesa na maior coqueluche do mundo turístico. O inglês foi obrigado a procurar outro canto para morar, pois sua casa era invadida por turistas a todo o instante. Dizem que o livro fez aumentar o fluxo turístico da Provence em até 10%.
Max Skinner é o personagem principal: importante executivo numa corretora de valores em Londres, seu chefe puxa-lhe o tapete e ele se vê desempregado, duro e cheio de dívidas. Só que, ao mesmo tempo, descobre-se herdeiro uma propriedade na Provence, deixada por um tio que não vê faz muitos anos. O cenário continua o mesmo da maioria dos trabalhos de Mayle: os campos e as cidades em torno da Montanha do Luberon (Avignon, Gordes, Roussillon, Ménerbes, Bonnieux etc.). A propriedade é imensa, cercada de vinhedos, mas produzindo péssimos vinhos. Mas, sem querer, descobre que um vinho ótimo, verdadeiro néctar, vinha sendo produzido meio que às escondidas pelo caseiro. A bebida, em barris, era contrabandeada para Bordeaux, engarrafada, rotulada e vendida para uns poucos por um negociante inescrupuloso ao absurdo preço de 60 mil dólares a caixa. Ficamos pasmas, mas isso acontece a três por dois por lá. Acontece que o inglês põe em prática um plano esperto e você poderia até comprar o livro e ajudar a editora Rocco e o Peter Mayle a faturar mais um pouquinho e descobrir as várias e deliciosas peripécias dessa nova aventura no paraíso que é a Provence.
Agora, um prato para o frio.
O livro é recheado de bebidas, como o marc (um destilado de uva, a cachaça local), vinhos roses (marca registrada dos vinhos da Provence), pastis (o aperitivo nacional francês, herdeiro do Absinto, feito de anis) e alguns pratos, como o célebre Cassoulet de Toulouse. Bom, o prato revelado por Peter Mayle leva feijão branco, pato em conserva, lingüiça com alho, carne de porco salgada, pernil de carneiro, gordura de pato, cebolas pequenas, lombo de porco, saucisse de Toulouse (claro), tomates, vinho branco, alho e ervas.
Não precisa adivinhar que as salsichas de Toulouse, sem as quais o tal cassoulet não pode ser feito, não se encontram por aqui. Elas levam carne de porco, mais pimenta, vinho, alho, basicamente. A saída é improvisar. Adaptei uma receita antiga que leva: 500 g de feijão branco, 2 lingüiças calabresas defumadas cortadas em pedaços, 2 lingüiças calabresas frescas cortadas em pedaços, 2 salsichões cortados em pedaços, 200 g de toucinho magro, 2 folhas de louro, 2 colheres (sopa) de óleo, 1 kg de pedaços de frango, 500 g de lombo de porco cortados em cubos ou de costelinhas de porco picadas, 3 tomates, sem pele e sem sementes, picados, 1 cebola grande picada; sal e pimenta-do-reino (ou molho de pimenta) a gosto.
Coloque o feijão, as lingüiças e o louro numa panela de pressão grande. Complete com água até ultrapassar o feijão (cerca de 4 dedos) e feche a panela. Assim que começar a ferver, cozinhe por 10 minutos. Enquanto isso, aqueça o óleo e doure o frango e o lombo. Junte os ingredientes restantes, tempere com sal e pimenta a gosto e deixe no fogo baixo com a panela tampada, mexendo de vez em quando, até que as carnes estejam bem cozidas (se necessário, acrescente um pouco de água). Acrescente essa mistura ao feijão e mexa bem. Pode, se quiser, juntar salsinha e cebolinha verde picada. E não esqueça de crostinhas de pão por cima de tudo. Sirva bem quente com arroz branco. Dá para 8 pessoas.
E o vinho para acompanhar? Ah, se possível um vinho da terra. Se puder, amiga, tente encontrar o magnífico Domaine de Trévallon (citado no livro). É um tinto, metade Cabernet Sauvignon, metade Syrah, originário de um vinhedo que fica entre Arles e Avignon, propriedade de um amigo de Picasso, o pintor e escultor René Dürrbach. Hoje, a vinícola é administrada pelo seu filho, Eloi.
Termine a refeição com um prato de queijos. E, nesse caso, vamos falar de queijos (e vinhos).
1. Quanto mais macio o queijo, mais ele cobre o nosso palato, bloqueando assim muito dos sabores e aromas dos vinhos. A melhor solução é escolher os vinhos brancos, os mais ácidos, que vão ajudar a "limpar", refrescar o nosso paladar dos efeitos dos queijos cremosos.
2. Muitos dos queijos suaves sabem ligeiramente a doce e fazem com que os vinhos secos pareçam mais ácidos, até azedos. E isso acontece sempre que um alimento é mais doce do que o vinho que o acompanha. Solução: os vinhos doces ou meio-secos são mais versáteis do que os secos com esse estilo de queijo.
3. Queijos muitos pungentes, picantes, bem maduros podem sobrepujar o sabor da maioria dos vinhos. Solução: queijos fortes, vinhos fortes. Tintos bem encorpados, com muita fruta. Ou brancos doces e os fortificados, como os Portos, Madeiras e o Jerez.
O caso é que os queijos suaves se ajustam a uma variedade maior de vinhos do que os queijos mais cremosos e maduros. No geral, os vinhos brancos combinam melhor com queijos do que os tintos. E mais: os brancos doces tendem a ser mais versáteis do que os brancos secos. Um tinto com muito tanino (um bom Bordeaux muito jovem, por exemplo) vai combinar melhor com queijo duro, bem maduro.
Experimente um brie macio com um vinho espumante ou com a Chardonnay. Um queijo de cabra com Sauvignon Blanc. Cheddar, Cantal, Gouda, Gruyère com Cabernet Sauvignon ou Merlot. Um Cheddar maduro com Syrah (ou Shiraz), Zinfandel ou os doces naturais. Roquefort com Sauternes ou outros bons brancos doces. Um inglês Stilton (se conseguir encontrar) com um ótimo Porto Tawny. Tintos com algum tanino vão bem com queijos duros, desde que estes não sejam muito fortes ou salgados (você viu que o sal enfatiza o amargo do tanino).
Os queijos duros fatiados ou em raspas sempre vão bem com os tintos. Os queijos macios do tipo camembert e pont l'evèque são mais difíceis de combinar. Consuma-os antes que se tornem muito moles e intensos em sabor.
Se além dos queijos você acrescentar frios e patês, tente os brancos leves (Muscadet, Pinot Grigio, Sauvignon Blanc, Riesling). Com salmão, atum ou presunto defumado não se esqueça dos brancos encorpados (os do Rhône, a maioria dos Chardonnays australianos e californianos, o Albariño, o Pouilly-Fumé etc.). Agora, só me falta acender a lareira.
Não esqueça, amiga, que uma garrafa regular de vinho tem 750 ml, o bastante para 5 taças. Se considerarmos que cada pessoa vai beber em média 3 taças e se em nossa mesa tivermos 5 pessoas, o consumo será de apenas 3 garrafas. Na verdade, eu optaria por 4 garrafas, pelo menos. O frio nos fará beber mais. A resolver apenas são quantos estilos de vinho (branco, tinto, fortificado, doce) para que tipos de queijos.
Tentar apenas um vinho que combine com toda uma tábua de queijos (azul, um camembert, cabra e um duro), não dará certo. Se for este o seu caso, limite-se a apenas um único e grande queijo. E esse é o caso do final do nosso cassoulet.
Acho que degustamos quase todo o livro do Mayle. Se quiser outras receitas de pratos e bebidas para o frio é só clicar aqui para a Soninha, no soniamelier@terra.com.br

Vinhos sem álcool

E os vinhos sem álcool? Volta e meia, recebemos perguntas a respeito. Você está tomando remédios que não podem ser misturados com álcool. Ou por algum outro motivo de saúde ou religioso, está proibido de consumir álcool. Até mesmo, porque vai dirigir e é uma pessoa responsável. Várias são as razões de pensarmos num vinho sem álcool.
Eles existem comercialmente há cerca de 20 anos e, na realidade, seu nome deveria ser outro, pois não existe efetivamente vinho sem álcool. Os vinhos “sem álcool” têm de menos de 1 vão até 2% de etanol. A categoria com “baixo teor de álcool” vai de 2 a 5,5%.
Como sabemos, o álcool é resultado da fermentação das uvas. O fermento se alimenta do açúcar e o transforma num tipo de álcool, o etanol. O vinho sem álcool é aquele em que, passado pelo tradicional processo de fermentação, o álcool é retirado (quase que totalmente), através de várias técnicas.
O resultado pretendido é ter uma bebida a mais próxima possível do vinho verdadeiro, aquele com álcool, que normalmente contem de 11 a 14% de teor alcoólico. O conteúdo de menos de 1 até 5% de etanol coloca esse tipo de vinho fora da jurisdição das bebidas alcoólicas e mais na categoria dos sucos. Quem por graves motivos de saúde (portadores de hepatite C, por exemplo) está terminantemente proibido de álcool, em qualquer quantidade, não pode tocar nesse vinho. Até mesmo um suco de laranjas fresco pode conter pequenas quantidades de álcool, resultantes da fermentação natural do suco.
O álcool pode ser retirado do vinho através de vários métodos: pela diluição, pela fermentação parcial, via destilação a vácuo. Aqui, os componentes do vinho são desmembrados numa câmara de baixa pressão e temperatura ambiente. Os componentes não voláteis (minerais, ácidos, fenóis, açúcares e vitaminas) são preservados. A maior parte do álcool é evaporada. Técnicas mais modernas, como a da osmose inversa, por exemplo, podem ajustar a concentração de ácidos ou de álcool nos vinhos e, dizem, resultam em melhores vinhos “sem álcool”.
O caso é que o álcool é o elemento mais potente no vinho e o que se distingue mais obviamente do suco da uva. Ele não tem sabor, mas possui efeitos claros em nosso sistema nervoso (se consumido em demasia), mas principalmente no sabor e textura do vinho. Quando bem equilibrado, ele simplesmente não vai ser notado. Quando em excesso, deixa uma sensação de calor. Os vinhos classificados como “encorpados” são geralmente aqueles com alto teor alcoólico.
O caso é que andei experimentando alguns e continuo achá-los muito ruins. Sem o álcool temos uma bebida que não vinho, nem suco de uva. Boa parte deles é feita com uvas marginais.
Se o leitor tiver que evitar álcool, o melhor mesmo é ficar com os nossos ótimos sucos de uvas. Vinho tem que ter álcool. Até Noé sabia disso.

24.6.05

Das safras

Lá pelos idos de 1967, José Carlos (Carlinhos) Oliveira, um dos cronistas mais populares e polêmicos do Rio de Janeiro entre 1960 e 1980, foi ver um show numa nova casa da cidade, uma cervejaria “gigantesca” chamada Canecão. O show era o da banda dos Herman’s Hermits, que fazia sucesso na esteira dos Beatles. Jovens trepavam nas mesas para ver a banda e dançar.
Uma garota “gentilmente envolvida numa minissaia, de vez em quando se abaixava para esticar as meias. Era um gesto displicente, estudado e atrevido. Uma espontaneidade cruel, de acordo com a conduta das mocinhas de hoje”. E o Carlinhos lá, “sentado ao pé de uma dose de uísque”, só olhando.
A conclusão dele foi que se o show fosse dos Beatles, “veríamos o maior festival de bumbum de todos os tempos”.
Assim, podemos dizer que a safra de 67 na noite carioca, pela mostra dada no Canecão, destacou os bumbuns das moças.
Safra pode ser o processo físico de colher a uva e fazer o vinho - e, nesse caso, o nome mais apropriado é colheita.
Mas é principalmente o ano em que um determinado vinho foi produzido, o que normalmente vem registrado nos rótulos das garrafas. Corresponde também às características daquele ano. A safra foi boa, foi ruim, o vinho é bom, é medíocre. Na noite carioca, a característica da safra de 67 foi o bumbum das moças, na avaliação do Carlinhos.
Essas características derivam em sua maior parte das condições climáticas na região aonde a vinha foi cultivada e suas uvas colhidas. Mas dependem igualmente do tipo de solo e da variedade da uva plantada nele: como reagirão à exposição ao sol, às chuvas, às geadas eventuais; qual a capacidade de drenagem desse solo; como a videira reage a uso de determinados pesticidas; qual foi o acerto das podas: resultaram em maior exposição ou em excessiva proteção contra o sol?
Os melhores vinhedos em regiões de solo bom são aqueles menos sujeitos a variações sazonais. Conseguem assim manter alta qualidade consistentemente.
Cada variedade de uva reage de modo diverso às condições de tempo e do terreno. Cada espécie tem seu tempo de floração, frutificação e amadurecimento. Está, portanto, à mercê das estações e dos cuidados que o vinicultor terá com ela ao longo do ano.
Assim, a receita para o vinho é bons frutos, bom solo, bom vinicultor e bom tempo. Basta apenas um desses ingredientes ser classificado de excepcional para termos um vinho igualmente excepcional.
No nosso hemisfério sul, a data da safra corresponde ao ano em que as uvas foram colhidas, mesmo que o ciclo de crescimento da videira tenha na verdade acontecido no ano anterior.
No hemisfério norte, a data da safra corresponde tanto ao ciclo completo de crescimento da vinha como também ao ano da colheita.
Qualificar uma safra não é nada fácil. Comerciantes e críticos de vinho provam os vinhos muito novos, ainda em barris, como os vinhos da safra de 2004 de Bordeaux, colhidos em outubro, depois prensados, fermentados, levados aos barris e provados nas duas primeiras semanas de abril. Como estarão esses vinhos, em garrafas, daqui a 2 anos, daqui a cinco, dez, vinte anos?
As tabelas de safras podem ser úteis, mas são falíveis. Por exemplo: você lê numa tabela que um vinho de Graves da safra de 1990 (Graves é uma importante região de Bordeaux, famosa por produzir tanto tintos e brancos de grande qualidade) recebeu de um crítico a nota 90 (90 de um máximo de 100; excelente marca) e está hoje, 2005, pronto para ser bebido. É uma generalização arriscada, pois essa região tem centenas de produtores, cada qual com vinhos de estilos diferentes, cada qual sujeito a solos e subclimas diversos entre eles.
E não se pode afirmar que o ano de 67 para os vinhos foi bom ou mau. Tudo depende principalmente das condições climáticas na região onde as uvas foram colhidas.
Pois Carlinhos de Oliveira, que escreveu durante 23 anos no Jornal do Brasil, foi o crítico das várias safras da vida boêmia do Rio de Janeiro. É considerado o primeiro e talvez único cronista até hoje a construir uma narrativa panorâmica da boemia brasileira. Através dele temos notas críticas sobre bares e restaurantes que fizeram época. O Vermelhinho, por exemplo, em frente à Associação Brasileira de Imprensa, onde, nos anos 50, era o “quartel-general do existencialismo verde-amarelo”.
Dos anos 50 em diante, Carlinhos comenta os bares do Centro da cidade (como o Vilariño, o Juca’s Bar, o Amarelinho), passando pelo Lamas e o Taberna da Glória e por Copacabana, quando ela começou a florescer, com safras ótimas de bares e restaurantes: Vogue, Sacha’s, Fred’s, Plaza, Fiorentina, Alpino, Le Rond Point, Michel, Drink, Zum-Zum, Au Bon Gourmet, Alcazar, Lucas, as boates do Beco das Garrafas e toda aquela influência do jazz.
Depois, chegou a histórica safra de Ipanema, onde foi até acusado de criar a mitologia do bairro e provocar a especulação imobiliária na região. Não vamos esquecer que ficava lá o Veloso, onde Tom e Vinícius viram passar aquela coisa mais linda. O Veloso é hoje mais um ponto turístico da cidade e mudou até de nome, por isso: para um óbvio Garota de Ipanema.
Sobre um bar e boate de Copacabana, o Le Bateau, Carlinhos fala, numa crônica também de 1967, que “As meninas estão soltas. São lindas. Dançam à maneira das deusas de outrora... elas dominam o ambiente. Próximas e inalcançáveis. Distantes e acessíveis. Inocentes e cruéis.”
Ele até arrisca antecipar como será a futura safra. “A safra de 1970 vai ser fogo! Compreendemos com clareza que cada ano implica um novo tipo de mulher. Novo por dentro e por fora.”
Enquanto Carlinhos aprecia a leva de 1967 no Bateau, vejo numa tabela que a safra desse mesmo ano não resultou muito boa para os tintos de Bordeaux, mas os brancos doces saíram melhor.
Muita gente utiliza safra em sua versão inglesa, “vintage”, uma palavra que deriva do latim, “vindemia”, vindima, colheita. E vintage ficou na moda, com sentido de “maravilhoso”. Tal coisa é “vintage”, mesmo que não seja colheita, vinho etc.
Sendo assim, os tempos de Carlinhos Oliveira foram “vintage”. Afinal, por décadas ele ia de bar em bar, no profundo da noite, sem esbarrar com arrastões, assaltos, balas perdidas e ataques covardes de pitty boys.
Os tempos de Carlinhos eram principalmente os do uísque e, em segundo lugar, do chope. Hoje, em compensação, vemos mais vinhos nas mesas, com os rótulos do hemisfério sul cada vez mais cada vez. De algum modo, os hábitos se tornaram mais largos, mais variados. Os nossos vinhos melhoraram bastante, já as cervejas aguaram.
José Carlos Oliveira, um carioca do Espírito Santo, conta como foi a maravilhosa noite do Rio, em O Homem na Varanda do Antonio’s (Editora Civilização Brasileira, 2004), uma imperdível seleção de suas crônicas, de suas perambulações boêmias, onde uma parte fundamental da safra carioca de arte, invenção, alegria e civilização é magistralmente descrita.
É um período “vintage”, tal como seu autor e suas crônicas. A safra atual mostra diferenças soturnas: nela não vejo nada de “vintage”, apenas algumas coincidências. Nos tempos de Carlinhos, tivemos a calça Saint Tropez e hoje as cinturas caíram mais ainda, com avenidas propondo acesso ao cóccix e ao púbis das meninas. Talvez, mais uma vez, tenhamos aí novamente um novo tipo de mulher.
Aproveitamos, como se vê, misturar safra de vinhos com o contexto dos tempos e costumes, onde nem tudo que brilha é “vintage”. Com exceção do Carlinhos Oliveira.
Leitora, o que está achando da atual safra na noite de sua cidade? Qual a safra de qual vinho mais lhe agrada? Comente aqui para a Soninha no soniamelier@terra.com.br

Outros códigos de da Vinci

Outro dia, telespectadores ingleses reclamaram que um comercial de TV, oferecendo uma nova salada de uma rede de fast food, mostrava um grupo de trabalhadores comendo o produto, mas falando e cantando ao mesmo tempo. Diziam que o filmete encorajaria nas crianças maus modos à mesa.
Modos é uma outra maneira de nos referirmos à etiqueta, aquela série de códigos ou de regras de conduta, de comportamento social, seja à mesa para comer, seja num campo de futebol ou de golfe, seja simplesmente andando na rua, conversando ou trajando as roupas adequadas que demonstramos o nosso grau de civilidade, nossa capacidade de conviver com o próximo.
São códigos normalmente não escritos, refletindo o comportamento ou a tradição de toda uma sociedade. Na antiguidade, as violações de simples regras de etiqueta poderiam resultar em grandes tragédias.
A norma entre os tapuias é comer com as mãos e entre nós, os chamados civilizados, usamos garfos e facas, embora nem sempre saibamos utilizar a completa coleção de talheres ou de copos num banquete pra valer. É uma questão de cultura, que também não pode ser conduzida com intransigência e arrogância. Luis XIV estabeleceu um elaborado e rígido cerimonial para a sua corte, mas continuou a utilizar os dedos para comer – sempre com muito estilo, para horror dos burgueses já familiarizados com garfos e facas.
Seria inevitável que o vinho, tão fortemente ligado à cultura dos homens há milênios, tivesse gerado a sua série de códigos, a sua etiqueta própria. E é sobre ela que vamos falar. É um assunto que pode compreender várias colunas. Nessa primeira, vamos dar atenção à etiqueta dos vinhos nos restaurantes.
1. Quando o sommelier retira a rolha, colocando-a ao seu lado na mesa e em seguida lhe apresenta a garrafa, não cheire a rolha. O que você tem de cheirar (atenção que é só cheirar, não é provar) é aquela pequena quantidade de vinho que o profissional coloca em sua taça. Cheirar é tudo o que você precisa fazer para saber se o vinho contém algum defeito, alguma falha. Apenas sentir os aromas originários da taça, identificar se a bebida apresenta os fortes odores de mofo causados pela “doença da rolha” (o terrível TCA), ou parece avinagrado.
Não, não gire a taça para depois cheirá-la. Ao girá-la, você poderá disfarçar tais odores. Só gire a taça após aprovar a garrafa (ou seja, você não encontrou nenhum defeito depois de ter sentido os tais aromas). Nessa ocasião, poderá até provar o pouco vinho que lhe foi servido. Mas o melhor é solicitar que o sommelier sirva as demais pessoas presentes à mesa para, ao final, completar a sua taça.
2. A pessoa que solicitou o vinho (normalmente é quem o escolheu) é quem deve prová-lo e aprová-lo ou não. Nada de ficar passando a taça para os outros convidados à mesa e pedir suas opiniões. Se você não se sente seguro para escolher, peça ajuda ao sommelier: é para isso que ele estudou, treinou e está lá no salão.
3. Não traga um vinho de casa sem antes consultar o restaurante sobre essa possibilidade. Afinal, é o mesmo que levar uma pessoa a uma festa para a qual não foi convidada. Consulte, antes, o dono da festa.
Caso o restaurante aceite que você traga o seu vinho de estimação, tome o cuidado de estudar a carta de vinhos do restaurante. Afinal, seria ofensivo você aparecer com um rótulo que já consta da lista do restaurante. O correto seria levar um vinho excepcional, que não exista na carta daquela casa.
Os restaurantes com cartas de vinhos mais simples costumam não cobrar pela “rolha” – ou seja, uma taxa sobre o vinho que você trouxe de casa.
As casas com uma adega rica, uma carta variada, com vinhos do Velho e Novo Mundo, de vários estilos, e uma gama de preços de médios a caros, costumam cobrar pela “rolha” – e a taxa vai depender da qualidade (e preço) do seu vinho. Afinal, eles vão ter algum trabalho com a sua garrafa: resfriá-la, prepará-la, servi-la etc.
Outros restaurantes, normalmente dentro da categoria acima, simplesmente não aceitam. Argumentam (li em alguma parte) que isso seria o mesmo que você trouxesse a sua comida de casa. Faz sentido.
4. Caso tenha sobrado algum vinho à mesa, peça para sejam novamente arrolhados e leve-os para casa. Você pagou pelo vinho, ele é seu. Nenhum restaurante vai se opor: não há etiqueta que condene essa atitude.
Mas se prefere que os vinhos solicitados sejam todos consumidos. Ou, melhor, que não haja desperdício (pediu vinho demais etc.), calcule mais cuidadosamente a quantidade de garrafas. Às vezes, pedir uma garrafa de 750 ml, o tamanho padrão, e várias meias garrafas (375 ml) seja a melhor solução. O problema é saber se o restaurante possui meias garrafas do vinho que você escolheu.
O melhor mesmo é levar para casa o que sobrou. Nada de beber até a última gota simplesmente para que não sobre nada. Não esqueça que você e seus convidados vão dirigir em seguida.
5. Se o vinho está “com um sabor estranho”, a primeira coisa a fazer é pedir a opinião do sommelier. Atenção: não é ir logo reclamando. Peça educadamente a opinião do profissional. Ele vai colocar uma pequena quantidade do vinho num tastevin (aquele objeto que parece um medalhão dependurado no pescoço do sommelier) ou numa taça de degustação, cheirar e eventualmente dar uma provada no vinho. Ele vai confirmar ou não as suas suspeitas.
Antes de chamá-lo, porém, tente mais uma vez. Cheire e prove novamente. A primeira provada num vinho quase sempre resulta num sabor muito ácido. Sempre será mais ácida, inclusive, se você experimentar um vinho logo depois de ter terminado o seu coquetel. Dê um tempo, beba água, coma um pedaço de pão. Enfim, limpe a boca. Deixe o vinho “respirar”.
Certifique-se de que seguiu as recomendações do sommelier: deixou o Cabernet Sauvignon “descansar” por algum tempo, concordou em que o vinho fosse decantado (se necessário) – e só então experimentou por uma segunda vez.
Se nada disso der certo, fale com o profissional. Certamente, a sua garrafa será trocada. Em alguns restaurantes, o primeiro a provar o vinho é o sommelier (normalmente, fora das vistas do cliente) – o que evita embaraços futuros.
6. Pode acontecer de você, simplesmente, não gostar do vinho que escolheu, devolver a garrafa e escolher outro vinho. Isso acontece até em casamentos. Se o restaurante for efetivamente sofisticado e segue a etiqueta, a garrafa recusada não será cobrada (o que é raríssimo de acontecer em casamentos).
7. Se você tem uma mesa com muitos convidados, com gostos diferentes, tente pedir vinho em taças. Nem sempre é uma solução barata. E nem sempre possível, pois o normal é encontrarmos ofertas muito pobres de vinho em taças, mesmo em boas casas. Experimente chegar a um acordo quanto às preferências por tintos e brancos e peça a quantidade de garrafas que possa atender a todo o pessoal.
No caso de brancos, vinhos como o Sauvignon Blanc, Chardonnay e Riesling são capazes de cobrir uma grande gama de comidas. Entre os tintos, um Pinot Noir e um Syrah costumam fazer o mesmo.
Leonardo da Vinci ficava indignado com o costume do seu senhor e protetor, Ludovico de Sforza, o homem forte de Milão, em pleno Renascimento, de amarrar coelhos à cadeira de seus convidados para que pudessem limpar a gordura das mãos. O mestre também condenava o hábito do mesmo Ludovico em limpar sua faca nas roupas de seus companheiros de mesa. “Por que não o faz como o resto dos membros da Corte, na toalha da mesa?”
Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci, um conjunto de notas descobertas em 1980 na Itália, nos dá uma idéia das normas de conduta e práticas culinárias em pleno Renascimento. Leio na orelha da obra, editada aqui pela Record, que todos os indícios apontam para a autenticidade dessas notas. Da Vinci é tido como o inventor dos guardanapos, das tampas de panelas e até do sanduíche, criação atribuída aos ingleses (ao Conde de Sandwich, aristocrata do século 18, que criou o prato para não perder tempo comendo enquanto jogava).
Se na Itália do grande gênio italiano os códigos já tentavam evitar as práticas horrendas (o comensal “deverá abandonar a mesa se está para vomitar. E o mesmo se tiver para urinar”), é isso que eles continuam fazendo até hoje.
Quando tratamos da etiqueta para os vinhos ou para as bebidas em geral as pessoas muitas vezes torcem o nariz por entenderem que são complicadas ou inúteis. Mas o que ela certamente faz é nos ajudar a saborear a bebida em paz, com a tranqüilidade e o respeito que ela e os nossos convidados merecem.
Comente sua experiência com as etiquetas, amiga leitora, e clique aqui para a Soninha no soniamelier@terra.com.br