29.3.07

O que é vinho kosher

O vinho que Jesus e seus discípulos beberam na Santa Ceia era kosher, o único vinho permitido aos judeus. A Santa Ceia foi registrada no Novo Testamento por São Marcos e São Mateus, mas nenhum dos dois registrou o que foi comido, que pratos foram servidos.
Mas, certamente, essa refeição teve como objetivo celebrar o Pessach, a Páscoa Judaica, a festa do pão sem levedo, palavra que em hebreu significa proteção, “passagem”, “passar sobre” e deriva de instruções dadas a Moisés para libertar os israelitas do jugo do faraó Ramsés III, há 3000 anos.
Moisés informou ao faraó que se não libertasse seu povo, todo o primogênito no Egito seria morto. Para se proteger, os israelitas foram instruídos a marcar suas casas com sangue de cordeiro, pois assim suas casas seriam identificadas e o problema “passaria sobre” elas.
A Páscoa cristã deriva diretamente da judaica. Em ambas, o vinho e o pão constituem símbolos fortíssimos, mas com sentidos diferentes.
O local identificado como o da Última Ceia, o Cenáculo (deriva do latim “cena”, jantar, ceia) em Jerusalém, pode ser visitado ainda hoje. É segundo andar de um edifício no alto do Monte Sion, ao lado da basílica Dormition, onde Nossa Senhora teria morrido. No andar térreo, fica o túmulo do Rei David. Pois é, as histórias se entrelaçam.
Mas os significados são outros. No cristão, o corpo e o sangue de Cristo, representados pelo pão e pelo vinho, remetem à salvação do espírito e à vida eterna.
No judaico, o pão é o sem levedo, o matzo, servido para lembrar a pressa com os hebreus tiveram que preparar o seu êxodo do Egito. E quatro taças de vinho são obrigatoriamente bebidas, cada uma simbolizando uma ação relativa à redenção do povo de Israel. São bebidas em períodos distintos da ceia do Pessach. E a cada taça é feita uma benção, o “kiddush”, “santificação”.
Mas o que vem a ser vinho kosher?
Kosher quer dizer “apropriado”, o que segue as leis dietéticas judaicas, o “kashrut”.
O vinho kosher começa no vinhedo com o “orlah” – a proibição de usar os frutos nos primeiros três anos de plantio. Apenas a partir do quarto ano é que poderão colher e prensar as uvas. É o que também acontece num vinhedo novo administrado por não-judeus, que só começa a produzir mesmo a partir do quarto ano do primeiro plantio.
A maioria dos vinhedos israelenses observa também a lei da “shmita”: ao final de cada ciclo de sete anos, o vinhedo precisa descansar por um ano, nada será cultivado nele nesse período. Todos os débitos da vinícola são zerados ao final. Criativos, sem desrespeitar a lei, vendem a terra para um não-judeu amigo e a recompram ao fim de um ano. Nada se interrompe.
Do momento em que as uvas são prensadas até o engarrafamento, essas mesmas leis proíbem também que o vinho seja tocado e, em certos casos, até mesmo visto, por um não judeu ou por algum judeu não religioso.
Para garantir essas leis, as vinícolas kosher empregam apenas “haredim”, judeus ultra-ortodoxos, observantes rigorosos do Torah. Qualquer visitante de um vinhedo kosher será sempre acompanhado por um supervisor do ”kashrut”, assegurando-se de que nada seja tocado. Isso vale até mesmo para um judeu pouco zeloso religiosamente.
Na vinícola, caso alguém não judeu toque em algum lugar onde haja vinho, o mesmo se tornará impuro, não seria mais kosher. Mesmo na seção de engarrafamento, depois de colocadas as rolhas, só se pode tocar numa garrafa depois que ela seja devidamente lacrada.
Todas as substâncias utilizadas no processo, como levedos, sulfitos, ácido tartárico serão obrigatoriamente kosher.
Se esse vinho for manipulado e bebido por judeus, ele não será fervido. Caso haja a possibilidade de um não judeu tocar na garrafa (um garçom, num restaurante, por exemplo), a fervura se impõe - mas apenas durante 22 segundo numa temperatura de 87 graus. Não perderá suas qualidades.
O grande crítico e historiador Hugh Johnson (“A História do Vinho”, Companhia das Letras) diz que, por trás das antigas normas, “mais importante do que o que se bebe é com quem se bebe. Os judeus não devem aceitar vinho dos gentios. Tal intercâmbio social pode levar à intimidade, e a intimidade pode levar aos casamentos mistos”.
Os judeus produziam vinho desde os tempos pré-Bíblicos. Chegaram, na Antiguidade, a exportar vinho para o Egito e para várias cidades do império romano. Quando os muçulmanos conquistaram a Palestina em 636 da era cristã, impuseram uma proibição ao vinho (e ao álcool em geral) por 1.200 anos. A produção só recomeçou em 1870.
Na Páscoa Cristã, celebrada a oito de abril, o frade São Tomás de Aquino, o grande filósofo do século 13, explicava o sentido do vinho: ela só pode celebrar-se “com vinho da videira, pois essa é a vontade de Cristo Jesus, que escolheu o vinho quando ordenou tal sacramento [...] e também porque o vinho da uva constitui de certo modo uma imagem do efeito do sacramento. Refiro-me à alegria espiritual do homem, pois está escrito que o vinho alegra o coração do homem”.
A Páscoa Judaica começa na noite de dois de abril, com uma ceia ritual, estritamente familiar, onde quatro taças de vinhos são tomadas obrigatoriamente.
Para um rabino citado por Hugh Johnson, o vinho “ajuda a abrir o coração ao raciocínio”. O objetivo, portanto, não é a inspiração, a embriaguez.
Uma quinta taça é deixada sobre a mesa para ser bebida pelo profeta Elias (Elijah). Dizem que ele vai de porta em porta anunciando a vinda do messias judaico.
Estima-se que existam pouco mais de 13 milhões de judeus em todo o mundo. Assim, faz sentido pensar que o profeta, acabada a noite do dia 2, vai dormir alegre e profundamente até a Páscoa do ano que vem.
Leitora, não dispense o vinho nessa Páscoa. Se sentiu falta dos coelhinhos e do chocolate é porque vamos falar deles em outra coluna.

20.3.07

A nova Eva

“Uma folha de parreira, uma Eva sem juízo, uma cobra traiçoeira, lá se foi o Paraíso” – diz uma marchinha do carnaval de 1951.
Pois as Evas de hoje vão poder se vestir com uma releitura da folha de parreira.
Fizeram uma releitura da célebre folha de parreira e já estão fazendo roupinhas a partir do vinho. Eu fiquei espantada quando li a notícia. Quem não ficaria?
Quando a produção de vinho é maior do que a demanda, muitos o transformam em etanol. Mas agora a bebida pode encontrar outros destinos, talvez nas novas Evas, com ou sem juízo.
É que cientistas da Universidade da Austrália Oriental conseguiram produzir, na verdade aproveitar celulose a partir da bactéria que produz o vinagre, o ácido acético. A bactéria é chamada tecnicamente de acetobacter.
Foi o químico francês Lavoisier (1743-1794) quem descobriu a origem dessa nova parreira: o vinagre é um vinho acetificado devido à absorção do oxigênio, resultado apenas de uma reação química.
Reação essa que forma uma fina camada gelatinosa na superfície do vinho avinagrado, que chamamos de “mãe do vinagre”.
Pois os biólogos australianos verificaram que essa camada um tanto emborrachada produzida pela acetobacter é uma forma de celulose.
Eles pegaram uma boneca inflável e começaram a cobri-la com essas camadas de celulose até chegar aos formatos de um vestido, de uma saia e de uma blusa.
Uma vez “vestida”, a boneca era esvaziada e, pronto, lá estava a roupinha pronta para ser usada, feita totalmente a partir do vinho avinagrado.Vi uma das fotos. Veja aqui. Parece a roupa certa para a mulher das cavernas.
Ou para a Jane, mulher do Tarzan. Ou, no máximo, entraria como opção de uma roupinha punk, saída de uma coleção da Vivianne Westwood.
Um dos principais cientistas envolvidos nesse projeto, chamado de “Micro’be”, Gary Cass, revela que se inspirou em “fermentar” vestidos quando trabalhava numa vinícola há alguns anos.
Notou que quando o oxigênio fazia contato direto com os barris e transformava o vinho em vinagre, produzia-se uma delgada camada na superfície da bebida. Era a tal celulose.
Até aí, nada de mais. Faço vinagre em casa, com sobras de vinho usando um garrafão aberto. Deixo meses assim. Meu vinagre é imbatível. Agora, sei que posso fazer um modelito exclusivo.
Para produzir esse tipo de tecido, Cass e seus colegas deixavam deliberadamente barris abertos. Depois foi só encontrar uma boneca inflável, tamanho gigante (provavelmente comprado numa Sex Shop) para produzir a roupa.
O cientista diz que não usa qualquer máquina de costura ou agulha para manter as fibras unidas.A roupinha que vimos nessa outra foto.
foi feita de vinho tinto e o seu “estilo” é um pouco mais “punk”, um tantinho mais ajuizado do que a simples parreirinha da Eva.
Mas os cientistas já fizeram roupas até de cerveja. Onde quer que se produza álcool, entre oxigênio e o acetobacter teremos celulose para confecção.
Só que no caso da cerveja ou do vinho branco, a roupinha ficaria muito clara, transparente.
De qualquer modo, essa “roupa de vinho” só pode ser usada se devidamente molhada. Seca, ficará como um lenço de papel, facilmente rasgável. Com mais fibras e fibras mais longas, esse risco seria evitado.
O cientista australiano já está promovendo a colaboração com um químico orgânico de modo a polimerizar as fibras de celulose para que fiquem mais longas. Um segundo objetivo é continuar a fazer essas roupas sem costuras. As bonecas infláveis estão aí mesmo para ajudar.
Lá se foi o paraíso? Bom, além da parreira, Eva perdeu (com o Adão, claro) o paraíso, pois entraram em cena uma cobra e uma maçã.
Não sei onde fica o paraíso hoje. Cristianismo, Islamismo e Judaísmo falam que ele está no outro mundo. Muita gente, porém, crê que ele pode ser encontrado aqui mesmo. Acreditam que você pode comer de qualquer fruto e ainda assim não ser expulso de lugar algum.
Ao usar essa roupinha agora, nossa Eva vai estar molhadinha, tal e qual naqueles concursos de T-Shirt. Será esse o paraíso?
Será o paraíso adentrar aos salões já com cheiro de fim de festa, com uma roupa saída de um barril de vinagre?
Caso essa experiência frutifique, fico imaginando como seria o marketing dessa nova roupa. Se falarem em “roupinha de Eva” acho que o pessoal vai buscar referências nos desfiles de Carnaval, no Big Brother e que tais. Logo, a nova roupinha será bem mais comportada.
Só espero que nenhum bobo, metido a entender de vinho, comece a cheirar as roupinhas com o objetivo (declarado) de determinar safras, origens, variedade de uvas etc. As segundas intenções, parece, foram criadas quando o primeiro casal perdeu o Jardim do Éden.
E a leitora, o que acha? Dispõe-se a experimentar uma blusinha ou uma mini feitas de vinho? Vai encarar o “new look” da folha de parreira?
Em tempo: o que abre a coluna é parte de uma marchinha do carnaval de 1951: “Papai Adão”, de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas.

15.3.07

Uma nova mágica

Um médico americano e também Master of Wine, Dr. Pat Farrell, é um dos inventores de um dispositivo magnético chamado BevWizard, capaz, segundo ele, de amaciar aqueles taninos amargos nos vinhos mais jovens.
Já outro americano, James Randi, que dirige uma fundação educacional que pesquisa feitos paranormais (pretensos ou não), duvida do tal dispositivo. E oferece um milhão de dólares para quem prove que o tal BevWizard funciona.
James Cluer, também americano, concorre ao título de Masters of Wine (MW), e quer ganhar esse milhão, caso sua dissertação prove que esse dispositivo magnético realmente funciona.
O Master of Wine é talvez o título máximo para um enófilo ou enólogo, uma das qualificações mais difíceis de conseguir. O exame leva três dias.
O estudante está realizando essa pesquisa para seu exame pelo MW. Ele realizará testes em laboratórios na Califórnia, degustações às cegas e análises mercadológicas junto a comerciantes de vinho em todo o mundo (alguns deles já testando a nova “mágica”).
Alguns cientistas duvidam dos efeitos da BevWizard. “Não vejo como esse mecanismo possa funcionar, pelo menos não baseado em magnetos”, afirma o Dr. Markus Herderich, do respeitado Instituo Australiano do Vinho.
Mas vamos dar a palavra ao Dr. Patrick Farrel, um dos responsáveis pelo novo invento. Em resumo: “Os taninos pertencem à classe dos polifenóis, que podem causar sensações de adstringência e amargor na boca e encobrir sabores agradáveis no vinho, chá, café ou uísque e outros destilados. Eles são carregados negativamente por partículas. Os produtores usam um processo de “clarificação” do vinho (eliminação das partículas em suspensão na bebida) jogando proteínas (como albumina), carregadas positivamente. Elas levam essas partículas para o fundo do barril. Fazemos o mesmo misturando leite ou creme ao café, chá ou chocolate, anulando os taninos e fazendo a bebida mais suave. Vinhos de alta qualidade levam anos para amadurecer, ou ficarem mais suaves e saborosos”. Quando esses taninos carregados negativamente passam pela combinação de aeração e pelo campo magnético de alta intensidade do BevWizard eles imediatamente ficam mais macios. “E a bebida mais saborosa.”
vastíssima maioria dos vinhos produzidos em todo o mundo já chega ao mercado pronto para beber. Não precisa de magnetos nem nada. Apenas vinhos projetados para envelhecimento é que ficarão melhores com a idade. De novo, sem necessidade de magnetos e que tais.
Vou esperar para ver o resultado do teste. E torcer para que o futuro MW ganhe o seu milhão, qualquer que seja o resultado.

13.3.07

O que Bush perdeu

O vinho que Cabral serviu aos índios, quando nos “descobriu” foi o famoso alentejano “Pêra Manca”. Os índios não o aprovaram. Preferiam o seu cauim, mesmo.
De lá pra cá, já podemos nos ufanar. Por que não? Somos capazes de oferecer nosso vinho, de qualidade comprovada, ao novo conquistador. Pois foi com vinhos Salton, de Bento Gonçalves que Bush e comitiva foram servidos no almoço oferecido por Lula em São Paulo, no último dia 9.
Imagino que o Planalto já esteja servindo vinhos brasileiros há tempos. Mas essa data de 9 de março ganha destaque: nossos vinhos foram o único item “made in Brazil” no almoço no hotel Hilton, em Sampa, farto em ratatouilles, dacquoises e mousses. Estamos considerando que o almoço tenha sido inspirado pelo chef do Planalto e executado pelo pessoal do Hilton.
Levou foi muito tempo, séculos, para que os governantes brasileiros olhassem com bons olhos os vinhos nacionais. Os senhores portugueses, sempre que podiam, mandavam trazer pipas dos vinhos da terrinha. Essa prática atravessou os tempos de colônia, reinado, império e república.
O cauim era uma bebida ritual, de “cor turva e esbranquiçada de leite e um gosto de soro, porém bem mais ácido”, revelou o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que viajou pelo Brasil (ficou aqui de 1816 a 22) coletando espécies de plantas. Era bebido na preparação de guerras, celebração de pactos, de vitórias e um dia antes do sacrifício de vítimas em cerimônias antropofágicas.
Os portugueses, porém, não queriam nada com o vinho de mandioca, mas sim o fermentado de uvas que tomavam em sua erra.
E foi o fidalgo Brás Cubas, experiente viticultor em sua cidade natal, o Porto, quem primeiro plantou videiras no Brasil, em Santos, cidade que fundou. Eram uvas da variedade vitis vinifera (a espécie de vinha da qual a maior parte do vinho fino, em todo o mundo é feito), que não vingaram no litoral, mas que, subindo a serra, no planalto de Piratininga, deram certo. O vinhedo ficava “pelos lados do Tatuapé”, perto da atual rua Tuiuti.
Quando os jesuítas chegaram aqui, precisavam do vinho para a missa, que faltava ou não vingava nos pontos onde se instalavam. Mandavam vir pipas de Portugal. Os vinhos de Piratininga, contudo, satisfaziam as necessidades dos religiosos da região.
Muito vinho rolou no Brasil colônia. Os bandeirantes o comerciavam à larga, mas escondiam seus ganhos. O vinho gerou tanto dinheiro, mas a Coroa não conseguia ter qualquer controle. Vinhos estão entre os principais produtos que os holandeses de Nassau negociavam por aqui. Exportavam açúcar, pau-brasil, fumo, sal etc. e importavam muito vinho (da Espanha e da França), além de cervejas e outros itens.
No início do século XVIII, um barrilote de vinho (na média, cinco litros da bebida) custava mais de meio quilo de ouro (ou, na medida da época, 200 oitavas de ouro). Mais caros só alguns tipos de escravos, cujo preço variava de 300 a 600 oitavas.
Tudo isso em razão da corrida do ouro nas Minas Gerais, que veio a desvalorizar moedas na Europa e encarecer tudo por aqui, o que não deve ter incomodado muito o nosso grande Aleijadinho. Suas finanças deviam ir muito bem: seu biógrafo, Waldemar de Almeida Barbosa, afirma que ele era “mulherengo e amante do vinho”. Sempre foram esportes caros.
Quando D. João VI chegou ao Brasil, fugido de Napoleão, trouxe consigo um batalhão de servidores para as mais diversas funções. Por exemplo: havia o reposteiro-mor, que avançava a cadeira ou poltrona toda a vez que D. João (ou algum outro fidalgo) fazia a menção de se sentar.
E havia o mordomo-mor, que controlava a Ucharia Real, o almoxarifado de víveres do palácio – e aqui entra o nosso vinho. Ele comandava o copeiro-mor, que respondia por provar e servir o vinho, a água e outras bebidas de D. João.
Nota o grande enólogo, crítico e historiador Carlos Cabral que foi “essa função que deu origem ao escanção, palavra do português que nos causa estranhamento, mas que compreendemos perfeitamente ... em francês: sommelier”. E, claro, o vinho passou a ser fornecido pelos ingleses. De qualquer modo, onde havia o copeiro, havia vinho também.
Nos tempos de Pedro I, o vinho português voltou às mesas brasileiras (pelo menos àqueles que podiam pagar por ele). E no reinado de Pedro II, o número de atacadistas e varejistas de vinho cresceu de meia dúzia em 1844 para 150 em 1854. “Era necessário um batalhão deles pra abastecer, além da corte e das grandes cidades nordestinas, também as fazendas de café e as cidades em seu entorno, onde começava a se formar uma ‘aristocracia da roça’”.
Os vinhos do Porto e da Madeira, com os franceses de Bordeaux e de Champagne lideravam as preferências, nessa época. No último suspiro do império, o Baile da Ilha Fiscal, foram consumidas 3.096 garrafas, entre Cristal, Ponsardin, Heidsieck, Madeira, Porto, Tokay, D’Yquem, Lafite, Leoville, Beyschevelle, Ponte-Canet, Margaux etc., etc.
A Princesa Isabel bem que tentou experimentar um vinho feito aqui, com a uva da época, a Isabel, sua xará. Não gostou, “amarga” que era. Tinha lá sua razão. As coisas nessa área só começaram a melhorar aqui com a chegada dos imigrantes italianos na Serra Gaúcha, ao final do vergonhoso período da escravidão. A Isabel foi trocada pela vitis vinifera. E tudo mudou, para melhor.
A família Salton chegou da Itália em 1878; fundou um negócio de secos e molhados. Mas as mudas de vinhas que trouxeram da Itália se deram muito bem aqui e pouco tempo depois os Salton dedicavam-se à cultura das uvas e elaboração de vinhos.
Os Salton chegaram à mesa de Bush como a maior produtora brasileira de espumantes e com centenas de prêmios internacionais: na Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Portugal, Estados Unidos, Eslovênia, República Tcheca, Espanha, Argentina, Hungria, Grécia, Bélgica e até na China, sem contar as marcas conseguidas aqui.
Bush é abstêmio, ficou na Coca Lite. Uma pena que tenha que ser assim. Talvez seu humor mudasse – e com ele o humor de todo o planeta. Tomara que alguém da comitiva do Bush tenha percebido: temos álcool para combustível para vender. E também um álcool que se pode beber com grande satisfação, via nossos vinhos, cuja qualidade já é reconhecida pela Comunidade Européia. Seria uma maneira de emplacarmos no maior mercado comprador de vinhos do planeta.
Aí está, leitora. Passe a considerar nossos vinhos seja no seu dia-a-dia, seja ao receber amigos. O presidente da Vinícola Salton, Ângelo Salton Neto, acha que com um pouco de patriotismo nosso vinho terá muito peso em nossa economia. “É só analisar o que ocorre nas grandes regiões produtoras, como França, Itália, Chile e Argentina. Só se bebe o vinho da terra”. Mas nem precisa ser patriota. Nosso vinho tá bom mesmo, sem patriotismos.
Essa coluna não seria possível sem uma referência fundamental: a do livro “Presença do Vinho no Brasil – Um Pouco de História”, do já citado Carlos Cabral.Se a leitora quiser a receita do cauim para alguma cerimônia ou a relação completa dos vinhos premiados do Vale dos Vinhedos e só clicar para a Soninha.

9.3.07

Os sommeliers vão acabar?

Por favor, amiga, não imagine um quadro de fregueses correndo atrás deles com saca-rolhas pedindo a sua expulsão dos restaurantes, em protesto contra atitudes arrogantes, o jogo do “empurra” para você escolher a garrafa mais cara. Ou por jogar cartas de vinhos de 5 quilos sobre a sua mesa, com 400 páginas manuscritas (escritas provavelmente pelo Asterix, pois tudo parece gótico para mim) para que você mesma escolha entre as milhares possibilidades ali encriptadas.
Também não se trata da classe dos restauradores fazendo uma caça a esses moços pelos prejuízos causados: desentendimentos por vinhos recusados, protestos contra bebidas com defeitos, serviço mal executado, adegas em pandarecos etc. Sim, aqui e em todo o mundo há um despreparo geral para a função. Mas a culpa não pode ser jogada em cima apenas desses profissionais. E os donos dos restaurantes e outras casas que servem vinho, como ficam na foto?
Do que se trata, então? Leio que a profissão se extinguiria sob pressão da tecnologia, da informática, mais precisamente. Computadores poderão substituí-los? Indicar quais os melhores vinhos para combinar com o prato escolhido; ou qual o branco do Novo Mundo vai melhor com uma determinada entrada? E do Velho Mundo? E qual o vinho ou o digestivo que vai melhor com essa ou aquela sobremesa, esse ou aquele queijo?
O robô japonês. Ano passado, os japoneses apareceram com um robô com capacidade de analisar amostras de vinho acuradamente. A máquina, desenvolvida pela NEC, pode distinguir entre 30 variedades de uvas e até mesmo cortes. Na época, foi chamada de wine-bot (ou “robô do vinho”), tinha o tamanho de uma caixa de vinho (o “bag-in-box”), mas de 6 litros, consistindo de um microcomputador e de um sensor ótico.
Esse robô não pode ir à mesa e escolher um vinho para você. Não pode degustar, muito menos cuspir o vinho e sequer abrir uma rolha. Mas coloque 5 ml de vinho num pires na sua frente que ele começa a emitir luzes infravermelhas em cima da mostra: em 30 segundos ele identifica os seus componentes. Poderá até dizer de que região o vinha se origina.
Logo, é uma máquina útil apenas para identificar fraudes, assim mesmo de 30 vinhos devidamente pré-programados.
Se for essa a ameaça, os sommeliers estão salvos.
O WinePod. O perigo viria do novíssimo WinePod? Com ele você pode fazer o seu próprio vinho em casa. Tem o formato de uma grande taça, integra todos os aspectos da produção, do equipamento e fontes de uvas até consultas e enólogos. Nele, as uvas são prensadas, fermentadas e amadurecidas numa só unidade, fácil de usa, diz a publicidade. Admite conexão sem fio com o seu computador onde um software exclusivo vai ajuda-lo a controlar a fermentação, além de facilitar acesso a vinicultores que já operam com esse equipamento. A empresa vendedora fornece também as uvas que você quiser, já maduras para que sejam prensadas e fermentadas. O vinho amadurece num tanque de aço inoxidável (que também integra a pensa). Tudo isso controlado de uma telinha de PC, em sua casa.Tem a capacidade de processar 56 litros de uvas, que resultarão em 4 a 5 caixas de vinho. Não precisa de instalação especial. Apenas de um lugar ventilado onde exista uma tomada. Custa US$ 3.499,00 e vendeu bem no Natal passado, nos Estados Unidos. Veja aqui.
O sommelier certamente não estaria na berlinda com o WinePod. Talvez, os produtores de vinho. É um brinquedinho para aficionadas com a carteira obesa.
O eSommelier. Esse é até mais caro: custa US$ 5 mil. E destina-se aos colecionadores de vinho – ou a quem possua uma senhora adega (e neste caso temos alguns restaurantes e hotéis).
Seu nome completo é eSommelier Wine Management Server: da telinha de um palm top você sabe a quantas anda a sua adega. Onde estão os brancos, os tintos, os espumantes etc. Sua origem, quando (e por quanto) foram comprados, quais as garrafas que estão prontas para beber e aquelas que ainda vão esperar algum tempo. Esse computador portátil pode estar na própria adega, no seu escritório ou na sua mala de viagem. O acesso é imediato, ao toque de um dedo.
O eSommelier pode estar também no balcão do restaurante, ajudando o sommelier a indicar vinhos, ou a comprá-lo para repor aquelas garrafas já vendidas. Logo, pode ser uma ameaça aos sommeliers profissionais, já treinados. O dono do restaurante, com ajuda desse brinquedinho, pode querer substituí-lo por um amador.
O Vinio. A ameaça pode estar aqui, nesse novíssimo recurso, feito para o amante do vinho que queira ajuda ao escolher sua garrafa num restaurante ou numa loja. É um lançamento recentíssimo da HP (chamado HP tc4400 Tablet PC). Foi criado por um sommelier (a idéia, o conteúdo), Andrew Bradbury. Veja aqui.
Trata-se de uma lista de vinhos interativa. O pequeníssimo computador facilita ao seu usuário selecionar seus vinhos por varietal, safra, país ou região de origem, preço e até mesmo por recomendações de críticos e outros usuários. Podem também saber das possibilidades de combinações entre vinhos e comidas. Seu tamanho pequeno e formato delgado permite seu uso numa mesa de restaurante. Funciona também ao toque de um dedo e permite tomada de notas através de um estilete. Acaba que os fregueses vão se sentir sommeliers.
Os donos de restaurantes já estão tendo a mesma sensação. Já viram que podem controlar melhor os inventários de seus vinhos, reduzir custos e aumentar vendas (até porque vão precisar muito pouco de pessoal especializado no salão).
É o mais barato e o mais sério de todos esses brinquedinhos: US$ 1.480,00 nos Estados Unidos, agora.
O sommelier desaparece? Mas quem é que vai alimentar todos esses brinquedinhos, criar todo o seu conteúdo, tanto em casa quanto nos restaurantes? Só um sommelier profissional poderá fazer isso à perfeição.
É natural que encontremos muita gente ainda despreparada. O número de pessoas que adotaram o vinho como sua bebida preferida tem aumentado muito rapidamente . Os restaurantes não estão dando conta. Colocam gente ainda inexperiente. Um pessoal cujo preparo demanda tempo e um investimento razoável.
Com informática ou sem ela, um restaurante que queira despontar no serviço de vinhos vai precisar de um profissional treinado, de um sommelier. Seu pessoal ainda não está maduro? Pois a Associação Brasileira de Sommeliers (entre outras) está aí mesmo para providenciar treinamento de alto nível e prepará-los devidamente para enfrentar qualquer brinquedinho da moda. Faz isso há vinte anos.
A amiga já topou com algum garçom do vinho dizendo que o 2004 é na verdade o mesmo vinho de 2003, “só um aninho de diferença”, confundindo um calhambeque com as uvas de uma determinada safra? Conte para nós a sua experiência

6.3.07

O crítico vai acabar?

Pontuação de vinhos: como comentamos numa coluna recente (Um intruso na festa - veja abaixo), essa história de pontuar vinhos voltaria às manchetes. E o faz agora de modo desmoralizante.
Tá bom que os consumidores entendem uma escala de 100 pontos: um vinho com 98 pontos deve ser melhor do que outro de 85. Eles assim, em teoria, podem fazer uma escolha que não envolva apenas preços. Afinal, tem algo objetivo para julgar: uma simples escala numérica. Mas meu problema reside em vinhos premiados, digamos, com 99 pontos e outro com 98 – pelo mesmo crítico. Qual exatamente a diferença, por favor? Além disso, em quem você vai acreditar quando dois críticos dão ao mesmo vinho diferentes notas?
O caso é que nenhuma dessas pontuações considera a região de origem do vinho e até mesmo por quantas “mágicas” tecnológicas passaram para chegar ao nível da “bomba de frutas” celebrizadas pelo imperador da crítica, Robert Parker Jr.: vinhos com muita fruta, muito carvalho e muito álcool.
Essas “bombas” são a moda do momento: os atributos que fazem um vinho ganhar notas altas, altíssimas. Que os fazem ficar muito mais caros, pois vão ser muito procurados.
Até em algumas de nossas lojas de vinho já encontramos garrafas com tiras nos gargalos exibindo os pontos que ganharam de um crítico (normalmente do próprio Parker) ou de uma revista (em geral, da Wine Spectator). Nada contra o fabricante, importador ou lojista exibir essas marcas. São diferenciais de mercado, concordo.
Muitos e muitos críticos utilizam esse sistema; o mesmo com a maioria das revistas especializadas. Sem dúvidas, essa escala, principalmente a de 100 pontos (criada por Parker), é um dos itens mais polarizadores desse mundo hoje.
Mas eis que agora temos algo novo nesse pedaço. É o Justwinepoints .
É um site que apenas qualifica vinhos a partir do sistema de 100 pontos. Nada de palavras, nenhuma referência aos degustadores que estão concedendo as notas. Apenas pontos, pois, como argumenta o pessoal do site, “nada mais importa”. Dizem que não temos mais tempo para “verborragias” ou para “todos os floreios da bagagem descritiva”. Falam que o site resulta de 20 anos de pesquisas. E, ah, se quiser mostrar o rótulo do seu vinho ao lado dos pontos conquistados é só fazer “uma contribuição” (olha o dinheirinho, aí). As lojas vão gostar. Basta mostrar as notas e citar site (que será mais procurado e ganhará mais “contribuições”). Não precisa nem do crítico.
Ironia: o mesmo sistema criado por um crítico o está engolindo.
O crítico vai acabar? Olhem só os exemplos da Daise Novakoski (na revista Rio Show) ou o do Renato Machado (no GNT), que qualificam os vinhos que degustam utilizando aquela forma de comunicação um tanto fora de moda, mas eterna: palavras.