28.8.08

Quando misturar é melhorar

A maioria dos vinhos finos do mundo é feita misturando-se diferentes variedades de uvas. Por aqui (e na maior parte do Novo Mundo) muita gente ainda pensa que vinhos feitos com apenas uma cepa são superiores aos aqueles feitos com mais de uma. Instintivamente pensamos que um vinho um puro Cabernet Sauvignon é melhor do que uma mistura dessa cepa com outras duas ou três variedades.
Porém, o vinho feito de uma cepa dominante, ou varietal, é uma herança recente, um conceito desenvolvido na Universidade da Califórnia, em Davis, logo depois do fim da Lei Seca, em 1933,. Os produtores americanos foram encorajados a plantar cepas de melhor qualidade, o que resultou no sucesso dos vinhos da Califórnia a partir dos anos 70. Para começar, o consumidor americano aprendeu a distinguir um Cabernet, por exemplo, dos até então usuais rótulos vendidos no país com nomes genéricos, como “Borgonha” ou “Chablis”. E de fato, ainda hoje continua sendo mais fácil identificar o vinho pela cepa do que pela região de origem, como é a regra há muitos séculos em grande parte da Europa.
No Velho Mundo, os vinicultores aprenderam a fazer com que o cravo não brigasse com a rosa. E, ao contrário, unissem seus aromas, formando uma nova e preciosa unidade. Se duas ou mais variedades de uvas de grande qualidade são misturadas, cada qual complementando a outra, o resultado final tende ser sempre mais interessante do que o vinho feito apenas com uma só variedade.
No Novo Mundo, o foco está sobre um punhado de algumas variedades: as brancas Chardonnay, Sauvignon Blanc e Riesling e as tintas Merlot, Shiraz, Pinot Noir e Cabernet Sauvignon – o que torna mais fácil entendermos o que bebemos.
Os franceses, por exemplo, preferem concentrar-se na origem do vinho e por isso não vamos encontrar a palavra Sauvignon Blanc numa garrafa de Sancerre ou Pinot Noir num vinho da Borgonha e Merlot num rótulo de Bordeaux.
Claro que temos grandes vinhos feitos de uma só variedade, seja no Vale do Mosela, Alemanha (com a Riesling), seja no norte do Vale do Ródano, França (Syrah), na Borgonha (Chardonnay ou Pinot Noir), em Marlborough, Nova Zelândia (Sauvignon Blanc) ou no Vale de Napa, Califórnia (Cabernet Sauvignon). Mas é bom observar que na maior dos países do Novo Mundo é permitido aos produtores acrescentar de 15 a 25% de outras variedades ao vinho, sem que isso seja mencionado no rótulo. Uma Chardonnay pode conter uma pobre Colombard, numa técnica descrita por um vinicultor como “o equivalente a colocar sardinhas no mingau de aveia”. Ou seja: uma brecha que possibilita a redução de custos e, algumas vezes, aproximar a bebida do medíocre.
Mas o fato é que os vinhos de corte fazem a imensa maioria das melhores garrafas. As mais famosas regiões vinícolas européias – Rioja, Vale do Duro, sul do Ródano, Chianti, Champagne e Bordeaux, por exemplo – basearam o seu sucesso combinando duas ou mais variedades.
Pense num prato de feijão. Agora, pense numa feijoada, um corte de mais uma dezena de elementos que resultarão num alimento mais complexo, com várias nuances, extremamente mais saboroso e estimulante, mas nunca ofuscando o importante papel do feijão. Com os vinhos, temos, por exemplo, o tinto Châteauneuf-du-Pape, do sul do Ródano, que usa até 13 variedades de uvas, inclusive brancas.
Em Bordeaux, a tradição e a lei permitem até cinco variedades: Cabernet Sauvignon, Merlot e Cabernet Franc, com pequenas quantidades de Petit Verdot e Malbec. E esse costume provavelmente se originou para proteger o vinicultor de acidentes. A Merlot e a Cabernet Sauvignon, por exemplo, têm ciclos de desenvolvimento diferentes. A Merlot amadurece mais cedo, o que a livra dos riscos das chuvas de outono. Já a Cabernet só ficará pronta para a colheita mais tarde, o que a coloca sujeita às chuvas. Jogando com essas diferenças, o produtor sempre estará protegido, garantindo ainda que o resultado final seja melhor do que um vinho feito apenas de uma só variedade (e sujeito a problemas com o clima).
Tomado simplesmente, um vinho de corte é aquele que combina dois ou mais vinhos para criar um novo. E o vinicultor, fora proteger-se contra os azares do clima, como vimos acima, faz isso para melhorar os aromas e a cor da bebida; ajudar o pH de um vinho; aumentar ou reduzir a sua acidez, o mesmo com o volume de álcool e os taninos; ajustar o açúcar; corrigir a presença em demasia do sabor de carvalho.
Ele pode ainda fazer corte de diferentes variedades, misturar uvas de variados vinhedos, de diversas safras, vinhos com vinificações desiguais ou de barris variados.
Ao realizar essas combinações, o vinicultor está muito mais do que misturando ou adicionando uma quantidade de vinho a outro. Está criando complexidade, uma diversidade de sabores e aromas originais, mais ricos do que os teríamos com o vinho de uma só variedade.
Essa, inclusive, é a grande hora do vinicultor, a sua hora de maestro da melodia resultante dessas combinações. Rodgers e Hart, dois dos maiores compositores populares de todos os tempos, autores de grandes clássicos da música americana (Blue Moon, Bewitched, The Lady is a Tramp etc.) tiveram no cantor e trompetista Chet Baker talvez o maior intérprete de My Funny Valentine – foi sem dúvida o seu mais inspirado vinicultor (já viu que sou fã de carteirinha do trompetista).
A leitora prefere só o baião ou acha melhor o baião de dois (feijão de corda e arroz numa mesma panela, como reza a receita de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)? Prefere os vinhos combinados, de corte, ou os varietais?
Da Adega
Os melhores do Wine Brasil Awards 2008
. Entre os vencedores a Miolo, Salton, Pizzato e Panizzon receberam medalha Grande Ouro. Casa Valduga, Goes & Venturini, Boscato, Cordelier, Don Abel, Luiz Argenta, entre outros, ficaram o Ouro. Outros 27 rótulos de 14 vinícolas ficaram com Prata. No total, apenas 44 vinhos foram premiados, na rigorosa avaliação de um júri composto por 15 especialistas de diferentes países, seguindo os critérios da Organisation Internationale de la Vigne et du Vin, no certamente recentemente encerrado em Bento Gonçalves, RS. A lista completa com os vinhos vencedores pode ser conferida no site da revista
Vinho Magazine, uma das organizadores do evento.
Medalha de Ouro para Cabernet da Valduga. O Casa Valduga Cabernet Sauvignon Premium 2005 garantiu a única medalha de ouro para o Brasil no VinAgora International Wine Competition 2008, realizado em Budapeste, Hungria. 2005 é considerada a melhor safra de todos os tempos no Brasil.

Como dói!

Pois é: jogaram no ventilador da Wine Spectator: ela concedeu um “Prêmio de Excelência” por sua lista de vinhos a um restaurante inexistente, obra de um iconoclasta, autor e blogueiro Robin Goldstein. Veja o post abaixo: “O Zizinho estava certo”.
O Editor Executivo da WS, Thomas Matthews, explicou que a revista foi vítima de uma “trapaça visando publicidade”, que o programa “Restaurant Awards” existe desde 1981 para “encorajar restaurante a melhorar seus planos quanto aos vinhos”, já tendo avaliado mais de 45 mil cartas de vinho. Revelou que realmente a revista não visita cada restaurante do programa e que cerca a terça parte dos inscritos em 2008 não conseguiu qualquer premiação. Afirmou que telefonaram para o restaurante várias vezes, mas deram com uma secretária eletrônica. Encontraram, pelo Google, a casa no seu endereço em Milão e a mesma enviou um link para um website que listava pratos e vinhos oferecidos pela virtual Osteria.
Matthews negou aos Los Angeles Times que o objetivo do prêmio seja gerar receita para a revista: “O programa foi feito para reconhecer os esforços feitos pelos restaurantes em melhorar suas listas de vinhos; os prêmios contribuíram para a crescente popularidade do vinho desde que o programa começou em 1981”.
A revista costuma ser apelidada “Wine Speculator” por seus críticos (“especuladora”, quem conjectura sem conhecer os fatos ou envolta em interesse, lucro). A WS é muito poderosa, a mais famosa publicação sobre vinhos do mundo (ao lado da inglesa Decanter). Como todo Golias, está sujeita a pedradas e rasteiras. Concordo que seja uma grande divulgadora do vinho, mas não com a sua voz de dona da verdade.
Ganhar esse prêmio e colocá-lo na parede, ter o nome da casa na revista e no seu site é justa ambição de muitos restaurantes em todo o mundo. É uma forma de marketing e publicidade: custa apenas US$ 250,00. E é fácil obtê-lo. Esse ano houve 4.500 inscrições. E todas, menos 319, ganharam prêmios de Excelência e alguns outros com mais predicados. No total, a revista faturou mais de US$ 1 milhão com o programa, o que é um bocado de dinheiro em qualquer lugar.
Robin Goldstein explicou que seu objetivo foi expor “os critérios duvidosos utilizados pela revistas em seus prêmios para culinária e vinho”. A lista que criou para a Osteria l’Intrepido é composta de vinhos avaliados acidamente pelos críticos da WS. Na sua escala de 100 pontos, entre 50-75, o vinho não é recomendado. Um vinho medíocre é o que fica entre 75-79. Por exemplo, na lista temos o Amarone Clássico Tedeschi 1998, com 65 pontos (“... bolorento e cansado...”). O Amarone Clássico ‘La Fabriseria’ Tedeschi 1998 ficou nos 60 pontos (“... Inaceitável. Aroma de inseticida...”). Já o Brunello ‘La Casa’ Tenuta Capararzo 1982 chegou aos 67 pontos (“... Aromas de cocheira...”). Não há um vinho “bom” nessa lista (entre 80 e 84 pontos).
Esse formato de premiação está evidentemente sujeito a “abusos”, especialmente nesses tempos de Internet. Agora, atacar os blogueiros, como fez James Mollesworth, Editor Senior da revista, é enfiar a carapuça: “Esse é o problema da blogosfera. É o jornalismo de preguiçosos. Ninguém faz pesquisa pra valer, apenas sapecam num link e jogam alguma conjectura na parede e pronto, conseguem alguma audiência e tráfego...”
É conjectura o fato de que a revista fature muito bem com restaurantes que não visita e com listas de vinhos que não analisa? E, no caso, vinhos cotados como medíocres por ela mesma e de tal forma que se fossem avaliados a sério a Osteria l’Intrepido seria eliminada. O que o nosso Davi fez foi levantar o tapete e descobrir que esse prêmio que está fazendo água. Não foi jornalismo de preguiçosos. Robin teve ter tido uma trabalheira danada. E quem abusou de quem aqui?
Olha que esse foi um golpe revelado pelo autor. Será que outros restaurantes também não inventaram listas e agora se promovem com diplomas vazios? E os que fizeram tudo certinho? Têm o direito de pensar que o que interessou mesmo foi a grana e que sua lista sequer foi considerada.
Peço licença ao grande Drummond e à sua querida Itabira: o Prêmio de Excelência da Wine Spectator é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

21.8.08

O Zizinho estava certo

A essa altura, o leitor já deve ter sabido que um restaurante inexistente ganhou o Prêmio de Excelência da badalada Wine Spectator.
Repasso a notícia em memória de um grande amigo, o Zizinho Leite Garcia, criador da melhor e mais tradicional pousada de Petrópolis, o Tambo de los Incas. Na verdade, ele foi o pioneiro da hotelaria de primeira classe na Serra. Pois Zizinho esteve ao ponto de candidatar o seu Tambo, no Vale do Cuiabá, no famoso Restaurant Awards da revista americana especializada em vinhos.
Em meados dos anos 90, Zizinho já tinha farejado a moda dos vinhos se avizinhando. E investiu um bocado: criou uma adega espetacular para serviço exclusivo da casa; abriu, na frente da pousada, uma delicatessen cujo ponto alto eram os vinhos. E levou seus funcionários a fazer curso na Associação Brasileira de Sommeliers – investimento em pessoal raro até hoje, entre restauradores. Não falo dos cursos rápidos, informativos. Mas os de longa duração, de formação de sommeliers.
Com tudo pronto, ele buscou divulgar a sua casa, onde além de uma cozinha originalmente criada por um chef suíço, que por sua vez legou seus conhecimentos ao fabuloso Serginho – ela agora contava com grandes rótulos e profissionais preparados para o serviço de vinhos. Quer mais o quê?
Várias vezes me questionou sobre a validade de inscrever o Tambo no concurso. Seu problema era pagar US$ 150,00 para poder concorrer. “Seu estou fazendo a coisa certa, vão saber e me avaliar. Não preciso pagar nada”, comentava. “O Guide Michelin, por exemplo, não cobra nada”. E, por isso, acabou não entrando. Mas ficava em dúvidas. Naqueles tempos, um hotel na Serra ganhara um desses prêmios, com mais algumas casas do Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Todas certamente colocaram o diploma que a revista concede a cada premiado na parede. Sabe lá o que é isso, uma distinção vinda do estrangeiro? Zizinho só não tinha dúvidas em continuar investindo na casa, com mais e melhores quartos, novos serviços, ampliação da adega, taças alemãs e austríacas, pessoal cada vez mais afiado etc.
Agora, um autor dedicado aos vinhos, Robin Goldstein (é sucesso o seu “The Wine Trials”, onde demonstra que mesmo degustadores profissionais não conseguem diferenciar um vinho de US$ 20,00 de outro de US$ 100,00) resolveu entrar no concurso. Pagou US$ 250,00 (o preço válido para a edição de 2008 do concurso) e inscreveu um restaurante fictício, cujo nome inventou: “Osteria l’Intrepido”. Em seguida, tramou um cardápio, segundo ele, “uma divertida mistura de receitas na nouvelle cuisine italiana”, e uma lista de vinhos. Submeteu tudo à revista (pagando a taxa, claro). A lista foi aprovada e Goldstein recebeu o “Prêmio de Excelência”. A revista publicou em sua edição de agosto uma referência ao prêmio e à Osteria. Veja aqui
Tem mais: a lista de vinhos aprovada e premiada foi em sua maior parte tirada de vinhos italianos testados pela revista nos últimos 20 anos – mas aqueles com a mais baixa pontuação. Veja a lista no site criado especialmente por Goldstein.
Goldstein comenta o óbvio: “É problemático, naturalmente, que um restaurante que não exista possa ter ganho o Prêmio de Excelência. Mas também problemático é o fato de que o prêmio não esteja particularmente ligado à qualidade da lista de vinhos, mesmo pelos padrões da própria “Wine Spectator”. Diga-se que a revista não se obriga a visitar os restaurantes. O que me parece ainda mais problemático.
Se fosse vivo, Zizinho estaria me perguntando, sorrindo, se sabia de restaurantes tirando os diplomas da parede. O Tambo continua lindo, tocado agora pela filha do velho mestre, a Gilka, e ainda com o mesmo pessoal formado pelo pai. O Zizinho sempre esteve certo.

17.8.08

Por via das dúvidas

Temo no que possa dar essa Lei Seca para motoristas. As eleições estão aí e diante do portentoso noticiário conseguido pela nova legislação alguns candidatos dados ao vício da abstinência (é um vício, segundo o Millôr), podem ter planos de ampliá-la. Uma coluna como “Adega & Bar” pode ser proibida, sua amiga aqui processada e até presa.
Por isso, para cair nas graças desses candidatos, ofereço algumas sugestões de leis ainda em vigor nos Estados Unidos, filhotes da famosa Lei Seca que lá vigorou de 1920 a 1933.
Na Califórnia, nenhuma bebida alcoólica pode estar a menos de dois metros da caixa registradora, caso a loja venda bebida alcoólica e também óleo combustível. Será que os clientes confundem latas de cerveja com as de óleo combustível? Em Dakota do Norte, bares e restaurantes estão proibidos de servir cerveja e pretzels ao mesmo tempo. Em Nebraska, os bares só podem vender cerveja se, ao mesmo tempo, estiverem com uma panela de sopa no fogo. Em Houston, é ilegal comprar cerveja depois da meia-noite de domingo, mas nos conformes comprá-la a qualquer hora a partir de segunda-feira. Como sabemos, as segundas-feiras começam um segundo depois da meia-noite de domingo. Dá pra entender? Em Nova York, a palavra “saloon” é proibida em letreiros. O restaurador Michael O’Neil não sabia disso quando colocou a tabuleta no seu estabelecimento. Para não perdê-la, mudou o nome da casa para “Baloon”.
No Missouri, garotos carregando sacos de lixo que contenham garrafas de vinho vazias podem ser indiciados por possessão ilegal de bebida alcoólica. No Michigan é proibido a jovens oferecerem garrafas de destilados a adultos. O que é pouco, pois no Kentucky mesmo um adulto pode passar cinco anos na cadeia se flagrado presenteando amigos com bebidas alcoólicas.
No Texas, motoristas com qualquer carga de bebida alcoólica não podem cruzar municípios do estado onde o álcool seja proibido. Têm de buscar outros caminhos. Já viu que essas encomendas vão custar a chegar. Esse mesmo Texas baniu a Enciclopédia Britannica porque ela ensina como fabricar cerveja em casa.
Se eu vivesse em Maryland estaria em sérios apuros. Lá um jornalista só pode comprar três garrafas de vinho de cada marca, desde que certificado por uma agência estadual como especializado na bebida. Já em St. Louis podemos sentar em qualquer lugar e fazer qualquer coisa, menos beber cerveja num balde. Em alguns estados, para beber é obrigatório sentar, já em outros só de pé. No Texas, em pé, mas só três goles.
Só espero que toda essa onda de temperança não resulte numa Carrie Nation, senhora famosa durante a Proibição por invadir bares com a bíblia numa mão e uma machadinha na outra a destruir copos e garrafas. Chegou a faturar com isso: tinha sempre miniaturas de sua machadinha para vender como suvenir. Temo que essa lei, de perfil islâmico, atravesse as rodovias e invada nossas casas, com novas Carrie Nation de bíblia e bafômetro em punho.
Por via das dúvidas, dependendo do andar da carruagem eleitoral, penso até em mudar nome da coluna para apenas “BS.” Uma sigla relacionada a bebidas? Não, apenas uma cuidadosa referência a “Bom Senso”, algo que talvez esteja faltando a esses rigores legais. A Proibição nos EUA, com todo o seu zero de tolerância, resultou em mais bebidas, mais bêbados e em mais crimes – o que levou à sua abolição.

Questões de linguagem

Rua Mata-Cavalos: Machado de Assis não cansa de citar essa rua, onde nasceu e morou por bom tempo Bentinho, o protagonista de Dom Casmurro. Mas por que Mata-Cavalos?
E por que Bordeaux, Chardonnay, Pinot, Merlot, Sauvignon, Petrus etc.? Pois fizemos uma rápida investigação ao redor da etimologia de palavras recorrentes no mundo dos vinhos, sempre com a ajuda do google, de alguns livros e de uma ótima cronista de vinhos, a americana Jennifer Rosen. Eis aí no que deu:
Como todos os diletantes sabem, o jargão do vinho tem matriz na França. E, nesse país, Bordeaux é rico em ofertas lingüísticas. Veja o seu próprio nome: eau é água; bord é beira, margem. Au bord de l’eau significa “ficar à beira d’água”, que no caso, é sentar à beira do estuário do Gironde (que desemboca no Atlântico) e seus tributários, o rios Garonne e o Dordogne, que possibilitaram a Bordeaux tornar-se o sucesso que é hoje, com um importante porto comercial para vinhos e outros produtos.
Entre o Dordogne e o Garonne fica um pedaço de terra chamado, naturalmente, Entre-deux-mers, “Entre dois mares”.
Ao norte, na margem esquerda do Gironde, temos o Médoc, com apelações muito famosas pelos seus vinhos tintos: Margaux, Saint-Julien, Pauillac, Saint-Estèphe, Listrac e Moulis. Pois Médoc deve seu nome ao latim, Medicullicus, ou “terra dos Medulli, antiga tribo celta que ali habitava. O Médoc é terra dos grandes Châteaux. Na apelação de Pauillac temos os Châteaux Lafite-Rothschild, Mouton-Rothschild e Latour, entre outros.
Lafite é o nome da família que foi dona dessa propriedade desde a Idade Média. Só em 1868 é que o Barão James de Rothschild adquiriu o château. Lafite vem do gascão, la hite ou “pequena colina”. Mouton, propriedade de outro braço da família, significa carneiro, sempre presente nos rótulos de seus vinhos. A propriedade pertencia ao Baronato de Mouton. Latour refere-se à torre (tour) existente na entrada da propriedade.
Na apelação de Saint-Julien, ainda no Médoc, o Château Ducru-Beaucaillou é cortado por um belo riacho. E Beaucaillou é uma homenagem a esse riacho, pois beau caillou significa “belos seixos”. Outra propriedade do Médoc, o Château Beychevelle recebeu esse nome em razão dos veleiros navegando pelo Gironde. Todas as vezes que passavam diante da propriedade baixavam suas velas, pois estavam chegando ao porto. O comando “Baixar Velas!” em francês é Basse Voile!, que com o tempo deu nome ao château: Beychevelle.
Um dos vinhos mais caros e mais reverenciados do mundo, o Petrus, na apelação do Pomerol, pegou o seu nome da palavra grega petros, ou pedra. O nome foi transliterado para o latim como Petrus, que deu origem a Pierre, Peter e Pedro.
O nome de duas das principais uvas de Bordeaux, cabernet sauvignon (para os tintos) e sauvignon blanc (brancos) dividem a mesma raiz: sauvignon vem sauvage, selvagem. Merle é o nome dado a uma variedade de tordos e no dialeto de Bordeaux a um melro preto, o Merlot, outra das grandes uvas da região.
Já na Borgonha, só utilizam a Chardonnay (branca) e a Pinot Noir (tinta). Chardonnay vem do latim cardonnacum ou “lugar cheio de cardos“. Cardo (do latim cardu) é aquela planta emblema nacional da Escócia. Já a Pinot Noir, a mais escura das uvas da família Pinot, deve seu nome ao formato de seus cachos: de uma pinha.
Alguns dos famosos vinhedos da Borgonha revelam origens singelas: Chambertin foi cultivado por um camponês chamado Bertin. Aquele era o seu champ, seu campo, espaço de terreno. A região da Campânia, na Itália, tem a mesma raiz, assim como Champagne e a nossa Campanha gaúcha.
Um prestigioso branco da Borgonha, o Chablis Grand Cru Les Grenouilles tem em sua propriedade um grande número de rãs: são as Grenouilles.
Os nomes dos rios Reno (Rhein) na Alemanha, e Ródano (Rhône), na França possuem, ambos, raízes indo-européias. Mas o primeiro vem da raiz reie ou fluir, e o segundo de ret ou rodar, mas também pode ser assar, grelhar, tostar. Lá, a região do Côte Rôtie pode significar literalmente “declive tostado”, pois é uma rocha fortemente banhada pelo sol.
Na segunda metade do século XVI, bem antes dos tempos de Bentinho, quem quisesse tomar a direção de São Cristóvão, tinha que percorrer um caminho que saia dos Arcos (da Lapa), contornava o Morro do Desterro (Santa Teresa) e seguir por uma trilha enfrentando perigosos atoleiros e barrancos, que muitas vezes não só impediam como matavam os animais. Esse era o Caminho (depois Estrada e em seguida Rua) de Mata-Cavalos, hoje Rua do Riachuelo. Se houvesse uma vinícola por lá, por certo teríamos o vinho “Mata-Cavalos”, nome não muito mais estranho do que Château das Rãs, do Baixa a Vela!, ou do que um vinho feito com a uva do melro preto.
Peço desculpas às leitoras que enviaram e-mails nas últimas duas semanas. Um piripaque eletrônico ocorreu no meu PC. Segundo os técnicos, pode ter sido uma entorse lombar, um resfriado, uma crise de fígado, um ataque de gota... Nossa, a lista ficou enorme. Enfim, o meu Outlook voltou a funcionar e agora tento colocar a correspondência. Continuem escrevendo aqui para o Bolsa ou para a Soninha.
Da Adega
Que tipo de vinho você é? Lá da Bahia, a leitora Ludmila Aguiar fez o teste (
veja aqui) sugerido na coluna Um blend de assuntos. E descobriu que é a sofisticadíssima Pinot Noir. “Sofisticada e mundana, provavelmente você conhece mais sobre vinho do que a maioria dos degustadores. Tem excelente gosto e aborda todos os aspectos da vida com atitude de gourmet. Acredita que as pequenas coisas da vida devem ser valorizadas e apreciadas, desde que com a melhor qualidade possível. Demorar mais tempo em fazer uma refeição ou em dar uma volta pela cidade sempre será um tempo bem gasto. No fundo você é uma charmosa sedutora. Seu estilo em reuniões sociais é refinado – nunca “festeiro”. Está melhor em companhia de queijos caros e de aromas intensos”.
Ludmila, que faz parte da Confraria Amigas do Vinho, seção Salvador, implicou corretamente com a última frase do teste. Em inglês é: “Your company is enjoyed best with: Stinky expensive cheese". Stinky pode ser, literalmente, “fedorento”. Mas acho que estavam mesmo é querendo indicar um queijo de aroma intenso, como são normalmente os queijos azuis, os Roquefort, Gorgonzola, Stilton.
Aliás, não concordo com a harmonização sugerida: um vinho com a Pinot Noir, elegante e sutil, seria facilmente sobrepujado por queijos muito intensos e musculosos.
Vinho de James Joyce na praça. Os vinhos suíços estão de volta ao Brasil, agora pelas mãos da importadora e distribuidora Vitis Vinifera, baseada no Rio de Janeiro. Entre eles, a leitora vai encontrar o Fendant du Valais, o branco com uva Chasselas, o preferido de James Joyce, célebre autor de Ulisses, Finnegans Wake (onde o vinho é citado), Retrato de um artista quando jovem, entre outras obras-primas. Compre pelo site da
Vitis Vinifera.
Vertical de Haut Brion. A mesma Vitis Vinifera e a
Escola Mar de Vinho realizarão no próximo dia 25, das 19h30m às 22h30m, uma vertical daqueles que muitos consideram o maior vinho do mundo: o Château Haut-Brion safras de 1988, 1996, 2001 e de 2002. A apresentação será do professor Marcelo Copello. O evento compreende ainda um jantar assinado pela chef Ciça Roxo. Não perca: as vagas são pouquíssimas. Informações e reservas: 21-2235-7670/2235-3968 e vanessa.miranda@vitisvinifera.com.br
O universo do vinho, sob o olhar feminino. Esse é o nome do novo projeto da Confraria Amigas do Vinho. A cada mês, a Confraria apresentará uma vinícola ou uma importadora. E o primeiro encontro acontecerá já no dia 2 de setembro, quando Bianca Bittencourt apresentará a Casa Valduga, sua história e seus vinhos. O encontro, que inclui degustação de vinhos da Valduga e um bufê de pães variados, queijos e pastas, acontecerá às 19h30m no Porto Bay Hotel (Av. Atlântica, 1500, Copacabana, RJ. Para ingressos fale com a Ana Valéria (21-9968-2454 ou imprensa.amigasdovinho@hotmail.com) ou Kátia Regina (21-9983-8318) ou Maria Lúcia, Presidente Nacional da Confraria (21-9797-8277 ou amigasdovinho@uol.com.br )

13.8.08

De onde ninguém se chama João

Se houvesse uma olimpíada para vinhos, a China ameaçaria agora ganhar em pouco tempo um punhado de medalhas. Imaginem se apenas uma pequena parcela de sua população, hoje de um bilhão e trezentos e trinta milhões de habitantes, passasse a consumir um litro de vinho por mês. Poderia até faltar vinho em nossas mesas. A bebida começa a cair no gosto dos chineses.
Há cinco anos, a China mal conhecia vinho feito de uvas: era apenas um “acontecimento marginal”, relata a minha guru e sempre citada Jancis Robinson. Mas nesse curto espaço de tempo o país tornou-se o sexto maior produtor de uvas viníferas com aspirações grandiosas de tornar-se o maior produtor mundial de vinhos. Estima-se que até 2058, a China liderará a produção mundial, “com Cabernets capazes de concorrer com os de Bordeaux”. Ela já possui os vinhedos, mas ainda não a técnica.
No mercado de vinhos finos, a presença chinesa não é nada sutil. Os novos ricaços do país não param de correr atrás dos grands crus franceses. Por conta dessa voragem, os preços dos Romanée-Conti e Lafite normalmente altíssimos, chegaram à estratosfera.
Jancis Robinson esteve na China em 2002, 2005 e recentemente, em março de 2008. Ficou impressionada com a baixa qualidade dos vinhos e com a grande proporção destes que buscavam lembrar, mesmo longinquamente, os tintos franceses. Em março, a grande crítica inglesa notou o grande número de chineses com aspirações crescentes pelo estilo de vida ocidental e como o vinho tornou-se um acessório cada vez mais familiar a esse estilo.
Hong Kong hoje já rivaliza fortemente com Londres e Nova York como um importante centro comercial de vinhos. Estima-se que os colecionadores da Hong Kong respondam agora por um quarto dos vinhos vendidos em leilões. A empresa no momento líder do mercado de leilões nos Estados Unidos, a Acker Merrall & Condit, realizou o seu primeiro evento em Hong Kong e a resposta foi exuberante: venderam US$ 8,2 milhões.
Há dez anos o consumo de vinho cresce no país: 50% na primeira metade dessa década e estima-se em mais 70% na segunda metade. Claro que produtores, comerciantes e outros luminares do vinho, no ocidente, começaram a ver o país mais seriamente. O “imperador” do vinho Robert Parker, o mais famoso crítico do ocidente, acaba de fazer a sua primeira visita ao país, que incluiu um jantar de US$ 2.300 por cabeça na Grande Muralha. O site de Jancis Robinson já está sendo traduzido para o chinês. Contam-se às centenas as visitas de diretores de vinícolas para apresentar seus vinhos. Inclusive, produtores brasileiros ofereceram seus vinhos na International Wine Exposition em Shangai, em março último.
Recentemente, um milionário chinês, David Li, participou de um badalado leilão em Napa, Califórnia, e adquiriu por meio milhão de dólares seis magnums do Screaming Eagle 1992 (é considerado o melhor Cabernet Sauvignon do país – e um dos melhores do mundo; uma garrafa custa a partir de US$ 1 mil, isso quando puder ser encontrada). David Li declarou que “os vinhos do Vale de Napa são os melhores do mundo”.
E muita gente torce para que para que os demais novos ricos chineses imitem David Li. O problema é que eles cobiçam mesmo apenas os grandes vinhos franceses, particularmente os de Bordeaux e Borgonha: são suas pedras de toque, suas referências mais importantes. Já começaram a comprar vinícolas em Bordeaux, como acaba de acontecer com a venda do Château Latour-Laguens (que não tem relação com o famoso Château Latour). O Château Lafite transformou-se numa obsessão para os chineses fãs de vinho. Segundo apurou Jancis Robinson, preferem o Lafite a outros de mesmo porte, como o Mouton-Rothschild, Margaux, Latour ou o Haut-Brion, pois seu nome é mais fácil de pronunciar em mandarim do que os de outras marcas francesas. Será?
O caso é que os novos ricos chineses não diferem muito dos nossos: compram mais pelo prestígio rótulo, bebem marcas famosas, o que está na moda (desde que seja em Paris, Londres ou Nova York).
Para evitar que os chineses limpem as adegas de vinhos finos ocidentais só torcendo para que a indústria vinícola do país floresça. A China produz vinho desde a dinastia Han (206 a 220 A.C.). A bebida, porém, sempre foi estranha aos paladares chineses, tanto que a palavra mais usada para vinho é CHIEW, que significa genericamente bebida destilada e fermentada.
No fim dos anos 70, após a morte de Mao e a abertura da China para investimentos estrangeiros, um grupo de indústrias de bebidas ocidentais (Rémy Martin, Allied Domecq etc.) estabeleceram parcerias com vinícolas locais, que receberam equipamentos modernos e começaram a produzir vinhos ao nosso estilo, secos. Os vinhos chineses até então pareciam xaroposos e eram muito doces. Mais recentemente, verificou-se um aumento no número de pequenas vinícolas cujo objetivo é produzir vinhos com apelo internacional e, para isso, utilizam enólogos e consultores internacionais. Na província de Shanxi, um desses novos ricos, C. K. Chan, fundou uma vinícola que é réplica de um château francês, o Grace Vineyard (o nome está em inglês em razão da referência encontrada: seria “Vinhedo da Graça”). Produz um vinho com o blend clássico de Bordeaux (Cabernet, Merlot, Cabernet Franc), vendido a US$ 60,00 a garrafa.
No total, existem cerca de 450 vinícolas no país, da Mongólia, ao norte, até o Mar Amarelo, uma enorme faixa de terra compreendendo diferentes topografias, solos, climas e variedades de uvas. O sempre preciso crítico da Slate, Mike Steinberger, observa que não há razão para se pensar que o país não possa produzir vinhos de qualidade; a questão estaria em saber onde e com quais variedades. Mas a confiança é grande.
O fato é que para esse país continental e para a maioria dos mais de um bilhão de habitantes o vinho de uvas viníferas ainda é uma bebida estranha. Um experiente vinicultor inglês, Bartholomew Broadbent, sócio de uma vinícola a uns mil quilômetros a leste de Beijing, emprega um neozelandês como enólogo. Segundo ele, o maior desafio é “ensinar aos chineses a fazer vinhos adequados ao paladar ocidental. “Eles nunca provaram da comida ocidental e não existe ainda uma cultura do vinho. “Possuem a terra e o clima para fazer um grande vinho; agora é só uma questão de treino”. Essa vinícola já exporta vinhos para os Estados Unidos: um cabernet sauvignon, um riesling e um chardonnay, todos em torno dos US$ 13,00. Nenhum desses vinhos receberia uma medalha de ouro (ou 90 pontos de Robert Parker), diz Steinberger. Mas, acrescenta, “como diria Lao-tzu, uma jornada de vinhos de mil dólares começa com um simples gole”.
O chinês vai saber rapidinho o estilo de vinho do ocidental. Vai demorar mais tempo em ajustar suas comidas, normalmente mais doces, mais picantes e ácidas, aos vinhos – que não serão os tintos que tanto produzem. Mas os brancos delicados e elegantes: os Rieslings da Alemanha e os Gewürztraminer da Alsácia, por exemplo.
No lugar do Lao-tzu, fico com o nosso grande Haroldo Barbosa, que já sabia há tempos que “lá na China ninguém se chama João, e o china come sentado no chão”. É tudo diferente, menos a vontade de ganhar todos os ouros possíveis.

12.8.08

O sabor que vem da terra

Terry Theise talvez seja pouco conhecido por aqui. Mas é importante personalidade do mundo dos vinhos nos Estados Unidos e na Europa. É um importador americano, renomado por descobrir vinhos de grande qualidade originários de pequenos produtores. Vive de importar vinhos da Alemanha, da Áustria e de Champagne. Anualmente publica um catálogo sobre suas novas descobertas, com comentários sempre provocantes, que valem nossa reflexão. O que apresento abaixo é parte de uma palestra que fez em San Francisco, EUA: uma “Meditação sobre a importância do Terroir”.
Terroir é um termo francês polêmico e para o qual não existe uma tradução específica. É mais do que “terra”. Seria a soma de solo, topografia e clima. Combinados darão a cada vinhedo o seu exclusivo Terroir, o que será refletido nos vinhos de modo mais ou menos consistente de ano para ano. É uma idéia mais aceita no Velho Mundo e menos no Novo. Vamos ao que Thiese tem a falar a respeito.
“Eu estudava na Alemanha quando entrei em contato com os vinhos. Explorei as regiões vinícolas e comecei a aprender por experiência e também pelo que as pessoas pensavam sobre os vinhos – que os sabores de um vinho vinham dos solos onde as vinhas eram cultivadas. Isso passou a ser simplesmente o meu entendimento de como o vinho era gerado. E fiquei muito chocado quando pela primeira vez soube que algumas pessoas não acreditavam nisso”.
“Na verdade, Terroir é algo pelo qual vale a pena lutar. E francamente essa luta tornou-se cansativa. Há dois tipos de pessoas nesse mundo. Aquelas que entendem que o solo faz o vinho; e aquelas que são idiotas”.
“Eis a minha definição de Terroir: é a causa e o efeito do relacionamento entre os componentes do solo e os sabores de um vinho, para os quais nenhuma outra explicação parece possível. É isso”.
“É obvio que existem fatores que influenciam o terroir: estrutura geológica, drenagem, o pH do solo etc. O clima age sobre o Terroir e naturalmente a mão do homem também”.
“Falar sobre a ação do solo é como dizer que em alguns anos Elvis (Presley) estava magro e gordo em outros. Os componentes estão lá, criando sabores, modificados por tudo o que acontece às uvas naquela safra, incluindo as nossas próprias ações. Mas os componentes estão lá”.
“Naturalmente, isso ainda não foi provado cientificamente. Mas é verdade. E verdade para mim significa que todos os corvos são pretos até que apareça um branco. Se eu encontrar evidência que contradiga essa minha hipótese mudo de opinião. Continuo esperando pelo corvo branco. Quando removemos todas as variáveis, verificamos que um tipo de solo resulta em determinados sabores e outros solos em outros”.
“Gosto de dizer que o texto escrito por um vinho está na terra. O viticultor determina a fonte. O sabor são as notas musicais e o produtor o maestro. A partitura é escrita antes que o mastro a conheça. Quem a escreve é a terra: o maestro apenas a interpreta. Uma vez perguntei a um produtor o que era mais importante para ele. Sua resposta: saber quando não fazer nada”.
“Fazer vinho é preservar o sabor que já existe”.
Traduzi aqui trechos de um artigo do blogueiro Alder Yarrow (“Vinography”) sobre a fala de Terry Thiese no referido seminário.

5.8.08

Que vinho é você?

“Sonia, venho guardando uns poucos vinhos numa velha geladeira, que deixei na lavanderia aqui de casa só para esse fim. Ouvi falar que isso não é bom, pois as rolhas ressecam. É verdade? Que outro lugar poderia guardar meus vinhos em casa?”
Querida leitora: ligada e numa temperatura constante a geladeira é o pior lugar possível para guardar vinhos permanentemente. Sim, as rolhas vão ressecar, deixar o ar entrar e o líquido sair. Funciona só se ficarem muito pouco tempo: digamos, uma semana. Além disso, as geladeiras comuns vibram – e os vinhos precisam ficar em paz, quietos, caso contrário os elementos que o constituem vão se confundir, se desestruturar. Pense num ônibus lotado, andando aos solavancos. Os climatizadores são, na verdade, geladeiras que “funcionam mal”, desligam-se mais vezes permitindo um ambiente com umidade controlada, de modo a não ressecar as rolhas (sabemos o que acontece ao deixarmos a porta de um refrigerador mal fechada: em três tempos, tudo lá dentro fica gotejando). Além disso, mal vibram. Na falta de uma adega climatiza, buscaria um lugar escuro, o mais fresco da casa, como aquele cantinho debaixo da escada. Num apartamento sem cantinhos ou escadas, eu evitaria fazer uma adega. Compraria vinhos apenas para o dia-a-dia ou para um jantar especial.
Qual o preço do conhaque Louis XIII Grand Champagne Très Vielle, da Remy Martin? Leitora possui uma garrafa deixada pelo seu pai, ainda no estojo original guardando uma bela garrafa de cristal Baccarat.
Apresar de ter procurado, não encontrei essa preciosidade em lojas brasileiras. Na França, numa loja especializada de Cognac, região onde o Louis XIII foi produzido, custa US$ 2.652,00. Imagine o seu preço ao chegar numa importadora daqui.
Por que tão caro? O Louis XIII é composto de mais de 1.200 dos melhores conhaques da Remy Martin, envelhecidos entre 40 e cem anos, em barris de carvalho da região de Limousin. Estima-se que cada garrafa teve a influência de pelo menos três gerações de mestres de adega (os encarregados pelos blendings) e do trabalho combinado de 10 mil pessoas. Cada garrafa é feita à mão e exclusiva. Falam que as impressões de seus sabores permanecem em nossas bocas por uma hora. Seu fosse a leitora, ficaria com o Louis XIII e aproveitaria cada gota dele, brindando sempre a lembrança do pai. Caso resolva vendê-lo por aqui, tentaria o ebay.
Meu marido, ao provar um vinho que ele mesmo comprou, o desqualificou, dizendo que o mesmo estava com a “doença da rolha”. Pediu que o jogasse fora. Mas será, Soninha, que esse mesmo vinho não daria para ser utilizado na cozinha? O tal do cheiro ruim não desapareceria na panela?
Amiga, só posso falar da minha experiência, que não foi boa ao tentar fazer o que você pretende. O molho que estava preparando era muito leve e o aroma de mofo, de jornal velho, ainda perdurou. Talvez, com molhos mais fortes esses aromas não fossem notados.
Um vinho com a doença da rolha (ou bouchonée, em francês) fica com aromas e sabores de mofo, para dizer o mínimo. Foi afetado pelo fungo do TCA (2,4,6 tricloroanisol), promovido ora pela exposição do carvalho a pesticidas ou pelo processo de esterilização de rolhas de cortiças, à base de cloro.
O crítico inglês Oz Clarke descobriu um método para eliminar o TCA. Ele envolve uma agulha de tricô num plástico de cozinha (desses que utilizamos para embrulhar e proteger comidas), introduz esse bastão encapuzado na garrafa e agita bem. Aparentemente, o plástico absorve o TCA. O vinho perde um pouco de sua estrutura, mas pode ser utilizado na cozinha, pelo menos.
Que tipo de vinho é você? Desta vez quem fez a pergunta foi o computador. Respondi a um teste na Internet e descobri que sou um vinho com a uva Chardonnay. Sou uma Chardonnay, amigas!
O teste consta de cinco perguntas muito simples. A primeira foi sobre o tipo de fundo musical que prefiro num bar: eclética, jazz, retro, clássica, exótica? Escolhi jazz.
A segunda, sobre a região de vinhos que escolheria para fazer um passeio. As opções compreendiam Austrália, África do Sul, Chile, França e Itália. Esqueceram do Brasil, Argentina, Uruguai, Estados Unidos, Nova Zelândia. Fiquei com a França.
Eu brindaria à amizade, paz mundial, alegria, vida ou à saúde? Fiquei com a amizade, nessa terceira prova.
E minha atitude quanto aos vinhos? Ela é casual (gosto, mas não faço muita questão); aberta (experimento qualquer coisa); moderna (conheço as novidades e sei o que experimentar em seguida); conhecedora (sei bastante a respeito e não me envergonho de ser um pouquinho esnobe)? Marquei a aberta: para um mundo tão diversificado quanto o do vinho, deixar de experimentar é perder tempo.
A quinta e última pergunta diz respeito a situações que lhe desagradem mais: infantilidades, sentir-se incompreendida; modas ultrapassadas, gente de baixo nível, falta de educação. Fiquei com a incompreensão. Para quem vive tentando se comunicar, a falta de entendimento é um sério problema, certo?
Daí que o resultado deu que sou um vinho com a Chardonnay. Sou: “fresca, espirituosa e clássica – sua personalidade tem muitas facetas. Você pode ser doce e leve. Ou profunda e complexa. Tem sempre algo a oferecer a qualquer pessoa: não espanta que seja tão popular. É acessível e jamais presunçosa, fácil de fazer amigos (e de amar). No fundo você é modesta, digna de confiança, educada e despretensiosa. Fica melhor em companhia de carnes frias ou de caça.”
Faça o teste você também, amiga. De minha parte tenho apenas um reparo: eu também sou chegada e muito a carnes quentes. De resto, sou uma feliz Chardonnay, pelo menos até o próximo teste.
Clique aqui, leitora, e saiba que tipo de vinho você é. E depois conte para o Bolsa ou para a Soninha para contar como se saiu.

4.8.08

Ponto e vírgula

Numa solenidade oferecida pela embaixada francesa em Buenos Aires foi servido o espumante Chandon brasileiro, conta Daniela Pinheiro numa matéria sobre o jornalista argentino Jorge Lanata (revista piauí, julho). Noblesse oblige. Os espumantes nacionais são ótimos mesmo. Mas servido por franceses para argentinos? Estranho.
Não estranharia, contudo, se nossas embaixadas servissem espumantes importados. O governo não apóia o setor. Nossos vinhos estão sofrendo com o aumento da importação e do contrabando, principalmente dos países do Mercosul. Pode ir à Lidador ou à rede Pão de Açúcar, entre outras: os vinhos importados saem mais em conta do que os equivalentes nacionais, pois pagam muito menos impostos que os brasileiros. Aqui, onde o vinho não recebe quaisquer subsídios, como acontece com a maioria dos importados, só 5% do seu valor refere-se ao líquido, como lembra o crítico Carlos Cabral. “O resto é frete, garrafa, rótulo, caixa de papelão, salários, insumos e impostos”. Duas vezes mais do que os impostos cobrados dos importados. Estes, como diz o crítico e autor da “Presença do Vinho no Brasil”, são “um bom mal necessário, pois nos dão a oportunidade de constatarmos que porcaria se faz no mundo todo”. Há três anos, 53% dos vinhos vendidos no Brasil eram nacionais; hoje, de cada dez garrafas à venda, somente três são brasileiras; das sete restantes, quatro são sul-americanas. Não dá para entender.
Na França, encontramos até maiores estranhezas. Em St. Emilion, por exemplo, onde uma reclassificação das vinícolas é promovida pelo governo a cada 10 anos, em 1996 foi realizada a penúltima. Quem perdeu posição apelou e em julho uma corte reconsiderou a reclassificação. Quem desceu voltou a subir. Mas quem estava em cima, já com o vinho de 2006 engarrafado, pronto para ser vendido tomou um grande prejuízo. Muito dinheiro foi gasto em rótulos, garrafas, caixas. E mais dinheiro será perdido, pois o vinho não poderá ser cobrado de acordo com o padrão conquistado. É de pasmar.
Um eminente produtor do Beaujolais, Jean-Paul Brun, proprietário do Domaine des Terres Dorées, não poderá colocar o rótulo de Beaujolais nas 5 mil tantas caixas do seu “l’Ancienne 2007”. É que as autoridades francesas acharam que o vinho é “atípico” da appelation. Os burocratas de lá experimentaram o vinho e verificaram que o mesmo não estava no mesmo nível de mediocridade produzida na região. Vários críticos e especialistas experimentaram o vinho e o louvaram. Comentam que os burocratas querem padronizar a bebida por baixo; quem faz um “gran vin” está fora; incompreensível.
Lá o vinho já está sendo tratado como pornografia, e como tal estará também fora da Internet, onde não poderá mais promovê-lo ou vendê-lo. Além da ação dos burocratas, como vimos acima, temos o lobby antiálcool dominando o legislativo do país. Não é de estranhar, portanto, que os jovens adultos franceses (20 anos e mais) abandonaram o vinho por outras bebidas como cerveja e destilados, segundo pesquisa da Universidade de Montpellier. Acham que vinho é para gente velha; não entendem seus rótulos; o bom vinho é muito caro e o barato muito ruim; cerveja é mais fácil e em conta. É de assustar.
Na França, hoje, se debate (e calorosamente) o destino do ponto e vírgula, um “mero parasita, coisa insípida, denotando apenas incerteza, falta de audácia, pensamento impreciso”, segundo o autor e editor François Cavanna, favorável à eliminação do “point-virgule”. O sinal seria uma influência da língua inglesa. Logo, nocivo. Leia a divertida reportagem do inglês The Guardian aqui .
Por outro lado, o americaníssimo hambúrguer é agora très chic em Paris. Conhecemos países assim, envoltos em debates inúteis e fartos de burocracias destrutivas. Daí que, tentando homenagear o mestre Machado de Assis, que usa essa pontuação à perfeição, a empregamos à farta nesta coluna; representa apenas uma pausa maior que uma vírgula, evitando um ponto final para essas questões, pois temos esperanças por soluções que espantem os nossos espantos; os daqui e os de lá.