30.6.10

Cartas na mesa

Cartas de Vinho: suas origens podem ter cinco mil anos, pelo menos. As cartas brasileiras agora premiadas pela revista Prazeres da Mesa representam uma senhora viagem.
Os egípcios já registravam seus vinhos. Na tumba de Tutancâmon, por exemplo, foram achadas dezenas de ânforas de vinho, todas com registros da região de origem, das safras, da qualidade (“vinho novo”, “vinho fresco” ou de “ótima qualidade”), do estilo (se o vinho era doce ou seco) e, muito importante, o nome do vinhateiro-chefe. Nas ruínas de Pompéia ainda se reconhecem centenas de tabernas, estabelecimentos simples que tinham em suas paredes listas de vinhos e seus preços. Ofereciam do mais ordinário ao famoso Falerno, o vinho dos imperadores.
O tempo passa, os romanos constroem suas magníficas estradas e nelas aparecem as estalagens, locais onde os viajantes podiam encontrar algum abrigo: uma refeição, uma cama, um estábulo para o seu cavalo. E vinho para matar a sede. Ao lado delas, as tavernas ofereciam bebidas (principalmente o vinho) e alguma comida.
No século III d.C., o barril substituiu a ânfora. Mais leve, resistente e fácil de deslocar, abasteciam aquelas estalagens e tabernas. Apenas, não havia muita variedade, serviam-se vinhos de apenas um tipo, da região mais próxima.
E essa situação não mudou muito até que os restaurantes fossem criados, na França do século XIX, tal como os conhecemos hoje. Mas séculos antes, os restaurants eram lugares aonde se ia apenas para restaurar as forças, tomar uma pequena xícara de caldo de carne. Era um termo “médico”, assim como o conhaque, o grão-de-bico e o chocolate exemplos de substâncias “restaurativas”.
As guildas pré-revolução francesa estabeleciam monopólios: as charcutarias eram fornecedoras exclusivas de salsichas, presuntos e outros derivados de carne de porco; os açougueiros só podiam vender carnes cruas de outros animais; os rôtisseurs só forneciam carne de caça; os vendedores de pão de mel, os fabricantes de vinagres, os pâtisseurs eram todos regidos por estatutos exclusivos. Um famoso restaurateur, Boulanger, foi processado por vender um prato de pata de carneiro ao molho branco que não era considerado um restaurant, mas um ragu (que não é um caldo e, além disso, preparado de vários ingredientes diferentes).
Dos caldos à prodigalidade dos restaurantes que transformaram Paris na capital mundial da gastronomia, precisou haver uma revolução, abolindo guildas e normas, abrindo caminho para lugares que se tornaram cumes da extravagância culinária, onde a palavra gastronomia foi criada e que tornavam Paris uma cidade “moderna”.
E as primeiras cartas de vinho que conhecemos datam dessa época. Em fins de 1800, os restaurantes serviam uns poucos vinhos, de umas poucas regiões. Havia Bordeaux, algum Borgonha, champanhe, talvez algum alemão. Não havia lá essas necessidades de especificações, pois todos sabiam que os vinhos eram feitos apenas de uma só forma. Por exemplo, sabiam que um Chianti só poderia ter 100% da Sangiovese. Hoje, pode ser assim ou ter a companhia de uma Cabernet Sauvignon e por isso passar a ser chamado de supertoscano. Um Bordeaux de “garage” é outro animal. Informar o cliente sobre o que ele pode escolher é hoje trabalho mais complexo, mais difícil.
Daí a importância de prêmios que incentivem as nossas cartas. Como andamos nesse capítulo?
A Prazeres da Mesa vem de premiar as nossas melhores cartas e o fez em três categorias: Excelência, Grande Excelência e Cartas Especializadas. A escolha foi coordenada pelo colunista Maurice Bibas. A revista, nesse oitavo ano de premiações, recebeu 360 inscrições.
O troféu Excelência, para as melhores cartas de 2010 com 50 a 200 rótulos, teve os seguintes vencedores: Adega Santiago (SP), Arábia (SP), Bacalhoeiro (SP), Buttina (SP, Charpentier (Campos do Jordão), Dalva e Dito (SP), Divina Gula (Maceió), Dressing (SP), Ecco (SP), Empório Alto dos Pinheiros (SP), Limonn (SP), Pobre Juan (SP) e Praça São Lourenço (SP), Komka (Rio Grande do Sul), Lake's (Distrito Federal) e Vinoclub Bistrô (Rio de Janeiro).
Já o Grande Prêmio de Excelência, que elegeu as melhores cartas com mais de 200 rótulos, foi para A Figueira Rubaiyat, Amadeus, Arola Vintetres, Baby Beef Rubaiyat, Bellini, Café Journal, Emiliano, Fogo de Chão, La Casserole, Olivetto, Porto Rubaiyat, Ráscal, Varanda Grill, Vento Haragano, Vicolo Nostro e Vinheria Percussi (todos de São Paulo), Durski (Paraná), Giuseppe Grill, Laguiole, Mr Lam e Terzetto (Rio de Janeiro), Taste Vin (Minas Gerais) e Pampulhinha (Rio Grande do Sul).
O release que recebi informa que essas duas categorias “avaliaram o compromisso dos estabelecimentos em manter oferta de vinhos acima da média, com bom acondicionamento, equipamentos apropriados, profissionais especializados e atenção à qualidade dos vinhos oferecidos”.
Com toda certeza, esses foram também critérios considerados na categoria Cartas Especializados, com casas que se destacaram por ter a melhor seleção de rótulos brasileiros, portugueses, argentinos e chilenos. As escolhidas foram Dalva e Dito (vinhos brasileiros – SP), Durski (vinhos portugueses – PR), Pampulhinha (vinhos chilenos) e Komka (vinhos argentinos), ambas do Rio Grande do Sul.
A premiação também considerou os profissionais do vinho. Daniela Bravin foi eleita Sommelière do Ano pelo seu trabalho à frente do paulistano Ici Bistrô; já o sommelier Manoel Beato, responsável pelas adegas do Grupo Fasano, ganhou o título de Personalidade do Vinho – não só pelo conhecimento aprofundado que tem da bebida, mas também por ser considerado pelo júri um verdadeiro “poeta do vinho”.
Alguns restaurantes (não falo necessariamente dos que compõem as listas acima) organizam suas cartas por variedade das cepas, outros por regiões e até os que destacam os vários estilos. Alguns, inclusive, ficam mais espertos e apresentam seus vinhos por critérios mais pessoais: “Vinhos para românticos”, “Vinhos para Celebrar”, “Vinhos Rebeldes”. Ou mesmo em função dos perfis de sabor: “Secos”, “Brancos com acidez”, “Tintos frutados”, “Vinhos para refrescar” (ou para aquecer). A apresentação pelo “corpo” do vinho não é incomum: “Brancos leves”, Brancos encorpados”, “Tintos de peso” etc.
Alguns optam por cartas pequenas, já outros podem apresentar tomos enciclopédicos. O lendário Tour d’Argent, em Paris, possui uma adega com mais de 450 mil garrafas, cujo valor foi estimado em 2009 em 25 milhões de euros.
Já fiz cartas para restaurantes com fotos a cores dos vinhos (saudades da minha Mavika), mais uma breve descrição dos mesmos. Fizeram sucesso. Além de facilitar e motivar os clientes, ajudavam o pessoal do salão a achar as garrafas. Mas hoje, temos restaurantes utilizando “tablets”, um pequeno laptop que vai à mesa do cliente através dos quais ele pode escolher milhares de vinhos, visualizando-os, informar-se sobre vinhedos, região, safra, vinhateiro-chefe, todas as características da bebida, enfim. E ainda fazer cruzamentos, como os pratos que melhor combinam com determinada garrafa. Veja aqui.
Ah, mas os preços nos restaurantes são sempre mais altos. O caso é que o vinho nessas casas é apenas uma peça do conjunto de itens que o restaurador cria para melhorar suas margens e poder cobrir os custos de estabelecimentos da categoria dos acima. Eles têm de pagar o açougueiro, o padeiro, a decoração do salão, sem contar os comerciantes de vinhos. Têm de pagar os salários do pessoal da cozinha e do salão. E, no que respeita os vinhos, têm de treinar seu pessoal para que possam oferecê-los com propriedade. Isso custa tempo, material (no caso, provar dos vinhos que ajudarão a vender) e dinheiro, claro. Além disso, temos os custos de adegas climatizadas, taças, baldes etc. Ah, acrescente aí aluguéis, taxas, impostos, seguros.
É certo que a leitora poderia comprar aquele Chianti num supermercado por um preço menor, ir para casa e, sem mais aquela, bebê-lo. Mas não vai gozar da experiência de um tempo agradável, muitas vezes inesquecível, num lugar que fez o possível para que seu vinho e comida combinassem tão bem.
Da Adega
Copa e frio vendem mais vinho. A Copa do Mundo mais o frio resultam em mais consumo de vinho. O aumento em junho e julho deve ser de 10% em relação a 2008. O diretor de marketing do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), Diego Bertolini, acredita também que, entre outras razões, as pessoas podem beber vinho em dias e horários em que tradicionalmente não haveria consumo, como nos dias de semana. Além disso, 80% das pessoas assistem os jogos em casa. “Isso nos ajuda, pois o costume de beber vinho é um hábito mais residencial, e o frio da estação também influencia o consumidor”.
Leia a matéria toda aqui.

22.6.10

Não evite o melhor

Na coluna passada eu aconselhava “evite o melhor”, o oposto do que afirmo agora. Em pleno Dia dos Namorados tramei uma degustação pretendendo dar uma lição num candidato a namorado. Para mim, ele se apresentava como o bam bam bam do vinho. Cheia de brios, resolvi dar uma lição. Dei, mas o resultado foi o desaparecimento do futuro namorado. Faltou-me humildade. Eu deveria ter pensado mais em mim e menos nos vinhos. E a verdadeira combinação, no caso, não era vinho & comida. Era coisa muito melhor.
Volto ao assunto porque em plena semana dos Namorados, o chefão da celebrada Champagne Taittinger, Pierre Emmanuel Taittinger, afirmou que seu champanhe, indubitavelmente um artigo de luxo, não teme a concorrência dos Proseccos, Cavas e de qualquer outro tipo de espumante. O que ele mais teme é a concorrência do Viagra.
A afirmação foi feita num debate sobre o desempenho dos artigos de luxo nesse ambiente de crise econômica, que se abate mais dramaticamente sobre o hemisfério norte.
Pierre Taittinger explica que “nada é melhor do que uma taça de champanhe para ajudar a esquecer as tensões e pressões do mundo moderno”. Eu não pensei nisso.
“Estou preocupado com o débito dos países, o dinheiro será mais curto. Mas sempre haverá tempo para fazer amor e beber champanhe”. Eu também não pensei nisso.
Ao citar o Viagra como o grande concorrente, o presidente da Taittinger não fez mais do que lembrar o que não mencionei na coluna passada: vinho combina muito bem com sexo.
Enquanto a Soninha aqui ficou envolvida no grande debate mundial sobre harmonização de vinhos e comidas, sobre o que é melhor, selecionar primeiro a comida para depois escolher o vinho. Ou o inverso: primeiro escolher o vinho e só depois a comida. Ou não dar a mínima bola para isso tudo: comer e beber o que estiver na frente.
Pois é, mas como diz um colunista, “se o vinho é gostoso nos seus lábios é melhor ainda nos lábios do seu parceiro”. Combinar vinho e comida, portanto, não é o fim da história. É apenas uma pequena parte.
Os vinhos combinam muito bem com, digamos, “atividades”. Um vinho branco pela manhã, um Riesling, por exemplo, para animar o dia que vem pela frente. Um bom Pinot Noir à noite, aquecendo o papo com os amigos. Um vinho para refrescar, um vinho para animar, acompanhando uma leitura, um filme.
O tal candidato nunca deixou de lançar aqueles olhares. E a boba da Soninha incapaz de perceber que ele queria jogar o mais popular jogo dos casais que acabam de se conhecer. Papear sobre o que eles têm em comum. Quais seus restaurantes preferidos? E filmes, livros, passeios, moda? A lista é infindável. Era só não falar sobre vinhos que a coisa poderia engrenar.
Mesmo assim, fui convidada para jantar num Dia dos Namorados. O que fiz? Um jantar vegetariano para um sujeito que detestava esse tipo de dieta.
Eu deveria fazer o mais simples, pois combinar vinho com sensualidade ou sexo é bem mais fácil do que com comida, graças à versatilidade da natureza do sexo. Ele vai bem com qualquer vinho. Seu único trabalho é escolher.
Isto é, se no tal jantar acontecer aquele zumbido, aquela química e em seguida beijos e toques, você escolhe se o vinho vai ser antes ou depois do sexo. Apenas isso.
Eu poderia escolher um restaurante e aceitar qualquer vinho que ele me oferecesse. Se pedissem minha opinião poderia sugerir um tinto (parece que os tintos aumentam o desejo sexual nas mulheres, segundo os italianos). Contudo, minha escolha final seria champanhe. E nacional. Pronto.
Não acho que vinho ou catuaba tenham toda essa eficácia. Não dou bola para essas pesquisas. O que importa é a mágica, o clima que um encontro desses pode proporcionar. Boa vontade o meu parceiro teve, tanto que não se poupou jogando olhares e na primeira oportunidade me convidou. Logo o quê? Para um jantar de Namorados.
De qualquer modo, vinho e sexo combinam bem. E melhor ainda quando esse encontro produz faíscas. As faíscas do champanhe, primeiramente. Você percebe sua pele aquecer, o tempo começa a correr mais vagarosamente, seu coração parece repleto. Até aqui, a promessa de um romance. Se o sexo, depois, não for bom, não coloque a culpa na bebida ou no clima que antecipou a cama.
Como em qualquer harmonização, é importante ao combinarmos vinho e sexo manter em perspectiva as corretas proporções. Se beber pouco, nada vai acontecer. Se beber muito, pode haver lambança. Tenho certeza, amiga, que você saberá encontrar a dose perfeita.
O chefão da Taittinger se engana: o vinho será sempre mais romântico de que qualquer pílula. O Viagra não tem essa competência.
Da Adega.
Festa Junina pela melhor doceira de Sampa
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Pâtisserie Mara Mello e faça hmmmmmmm!
Os Melhores do Ano. A revista
Prazeres da Mesa promoveu dia 8 último a eleição dos melhores do ano da gastronomia nesse país. São 16 categorias. Eis a relação:
CHEF DO ANO (profissional que tenha se destacado no último ano): Roberta
Sudbrack, Roberta Sudbrack, Rio de Janeiro
CHEF REVELAÇÃO (jovem profissional
que tenha despontado na profissão nos últimos dois anos): Eudes Assis, Seu
Sebastião, Maresias, SP
RESTAURANTE DO ANO (casa que prima pela excelência de
sua cozinha, serviço perfeito e gostoso ambiente): Maní, São Paulo,
SP
SOMMELIER (profissional que se mantém atualizado e que é um grande devoto
dos melhores rótulos, nem sempre os mais caros): Daniela Bravin, Ici Bistrô, São
Paulo, SP
BAR DO ANO (casa que tenha um perfeito serviço etílico, mas que
cuida também com carinho da deliciosa baixa gastronomia): Bottagalo, São Paulo,
SP
BARISTA DO ANO (aquele que serve o melhor café do país): Yara Castanho,
Suplicy Cafés Especiais, São Paulo, SP
RESTAURANTE DE COZINHA BRASILEIRA
(prêmio concedido às casas que divulgam nossa cultura à mesa): Mocotó, São
Paulo, SP
BANQUETEIRO (profissional que comanda as festas mais comentadas do
país): Carlos Bertolazzi, C.U.C.I.N.A, São Paulo, SP
BRIGADA DE OURO
(restaurante que tem equipe afinadíssima, onde o serviço e as gentilezas são
pontos fortes): Fasano, São Paulo, SP
ARTESÃO DA GASTRONOMIA (aquele pequeno
e tradicional produtor que há anos abastece os gourmets de plantão com suas
delícias artesanais): Companhia das Ervas (ervas e temperos)
BARMAN (mestre
das coqueteleiras, profissional que sabe as alquimias dos drinques perfeitos):
Marcelo Vasconcellos, Pandoro, São Paulo, SP
CASA ESPECIALIZADA
(estabelecimento que apostou na tendência de vender um só tipo de produto):
Maria Brigadeiro, São Paulo, SP
CHEF PÂTISSIER (o grande artista do açúcar,
muitas vezes escondido nos bastidores das confeitarias): Marcello Magaldi,
Buffet Fasano, São Paulo, SP
PERSONALIDADE DA GASTRONOMIA (homenagem ao
profissional que venha fazendo algo de relevante pela gastronomia brasileira nos
últimos anos): Vicente La Pastina
RESPONSABILIDADE SOCIAL NA GASTRONOMIA:
Instituto Maniva
PERSONALIDADE DO VINHO (homenagem ao profissional que venha
fazendo algo de relevante pelo mundo do vinho nos últimos anos): Manoel Beato

8.6.10

Vinhos e Namorados: evite o melhor

Ah, eu namorei muito. Talvez para compensar, eu hoje namore quase nada. Mas continuo de olho no Dia dos Namorados. Ele tem de ser festejado, se possível em mais de uma data, todas as semanas, quem sabe? Mas é preciso tomar alguns cuidados. No meu caso, evitar falar sobre vinhos. Sair para jantar no dia dos namorados, um vinho à mesa, devidamente escolhido pelo homem que te convidou – seu namorado ou forte candidato a sê-lo. Tudo isso é clichê, eu sei, e muito pouco feminista. Mas é assim que será.
Era uma vez a Soninha, sócia de uma loja de vinhos em Itaipava. Minha parte não era a comercial, eu apenas palpitava nas compras, no estilo da loja, de seus serviços e ajudava no atendimento.
Entre em cena um certo cliente, mais maduro do que eu (e isso importava?). Chegou num carrinho esporte, desses sem capota, uma antiguidade bem cuidada, aparato regular entre homens maduros que querem fazer bonito com as mulheres. Deu uma demorada olhada na vitrine e entrou. Só que chegou no momento em que eu estava degustando um Fleurie, com um, velho freqüentador da loja. Pudera, o Cru Beaujolais era uma novidade, na minha e em qualquer loja. Tínhamos comprado uma leva com mostras de todas as 10 sub-regiões de Beaujolais.
O cliente entrou, cumprimentou e logo se dirigiu ao balcão com ar de pidão. Claro que ofereci uma taça ao cavalheiro. Imediatamente segurou a taça pela base, com o polegar e o indicador, girou-a cuidadosamente. “É preciso deixar o ar entrar, fazer o vinho respirar”, falou, notando que eu e meu amigo segurávamos nossas taças pela haste, bebericávamos sem maiores compromissos. Mas o visitante continuou na sua interpretação de connaisseur. Levantou a taça contra um ponto de luz para apreciar as sutilezas da cor. Em seguida, mergulhou o nariz na taça para aspirar o seu bouquet. E só então provou do vinho. “Até que tem alguma coisa de aromático”, concedeu. Ia comentar mais quando pediu para ver o rótulo. E descobriu que era um Beaujolais. “Até que esse não é dos piores”, lascou. Meu amigo tentou explicar: “Olha, esse é um verdadeiro Cru, nada a ver com o Nouveau; é um vinho sutil, com bastante fruta, flores e até um tanto picante...” e foi por ai elogiando o Cru.
O novo cliente sorriu, e explicou que não iria perder tempo com os Beaujolais. Contudo, passou a freqüentar a loja. Dava uma olhada nas prateleiras, comprava uma ou outra garrafa. Tínhamos Borgonhas simples, mas bons, Bordeaux simpáticos, interessantes alemães e dignos alsacianos, australianos, argentinos, chilenos, norte-americanos, portugueses, espanhóis, italianos, austríacos, sul-africanos. E não poderiam faltar, os brasileiros da Miolo e da Dal Pizzol.
Além da boa coleção de Crus Beaujolais, conseguimos outra novidade, um supertoscano, um Sasso Al Poggio 2004, da Família Piccini, Toscana. Naquela época, os supertoscanos ainda eram uma das sensações no mundo dos vinhos. Vinhos potentes, que desrespeitavam as clássicas regras da DOC/DOCG por misturarem a obrigatória e veramente italiana Sangiovese com cepas “estrangeiras”, no caso as estrelas de Bordeaux: Cabernet Sauvignon e Merlot. Vendíamos com pouquíssima margem, mais pelo prestígio que poderiam trazer para a loja.
Nosso novo cliente parecia interessado apenas em vinhos pontuados, chancelados pelos papas da época, de Robert Parker (já então considerado o maior crítico de vinhos do mundo, o “nariz de um milhão de dólares”) e a revista Wine Spectator. Pecado esperar encontrá-los na nossa loja. Os vinhos bem pontuados por Parker (criador do sistema de qualificar vinhos metricamente, com os seus 100 pontos) eram quase que completamente comprados pelas grandes casas, exportadoras, colecionadores, comerciantes do hemisfério norte. Seus preços atingiam alturas insuportáveis.
Para um homem com uma relíquia importada sobre rodas, uma Mont Blanc brilhando no bolso da camisa e que citava Parker, assinava a Wine Spectator, e que só queria saber de pontos era de se esperar que só escolhesse as garrafas mais caras. E ao longo de uns poucos fins de semana levou todos os nossos Sasso Al Poggio 2004, que, claro, tinha ganho 90 pontos da Wine Spectator. Outra curiosidade: não me poupava com seus olhares mornos.
Não escondia também demonstrações do que achava fosse alto conhecimento. Falava de aromas de couro, de frutas cristalizadas, notas de chocolate, dizia que estava na lista de espera do Stag’s Leap, que acabara de comprar em leilão uma caixa do Château Lynch-Bages 1985. Comentava sobre o “retrogosto” e até dava exemplos de quantos segundos o sabor de alguns vinhos ainda ficavam na boca, tal como Parker. Os Bordeaux da loja eram medíocres (ele não dava a menor bola para os nossos Mouton Cadet, campeões de venda), não tolerava os Chardonnay (era moda na época entre os seres dessa tribo não beber dessa uva), os Beaujolais, já sabemos, ele desprezava. Os Borgonhas eram “da mais baixa categoria”. Tínhamos exemplares de “Côte de Beaune”, penúltimo lugar na hierarquia da região. Eram excelentes, na boca e no bolso.
Eu replicava: para quem está em busca de status, essa hierarquia pode até funcionar. Mas para quem quer custo-benefício, o negócio é encontrar prazeres nos vinhos “menores”. Os nossos tinham preços em conta e eram deliciosos, podem acreditar. O importante não é o fetiche, mas o prazer encontrado numa taça. Apesar disso, os olhares continuaram.
Além desse calo mental criado pelos sistemas de pontuação de vinhos, o nosso cliente adotava também clichês, do tipo vinho tinto com carne vermelha, vinho branco com carne branca, vinho com vegetais nem pensar. As taças Spiegelau disponíveis na loja seriam inferiores às suas preferidas Riedel (certamente celebradas por Parker). Ficava penalizado por só dispormos de taças para Cabernet Sauvignon e Chardonnay, que vendíamos como genéricas para tintos e brancos. E piorava o nosso dia ponderando que se vendíamos Borgonhas, tínhamos de ter taças abalonadas típicas daqueles vinhos.
Eu ia levando. Até que um dia o limite dos olhares foi ultrapassado. O elegante cliente resolveu me pontuar também. Convidou-me para um jantar e justo no Dia dos Namorados. Ali tinha coisa. O homem queria mais do que vinho.
Com um amigo, o Dudu, chef de um restaurante de comida italiana não muito longe da loja, tramei um “jantar de namorados”. Ele seria o mais vegetariano possível e os vinhos servidos às cegas (um saco de pão cobrindo a garrafa). Dudu é um craque: passou bom tempo fora do Brasil e cozinhou em restaurantes londrinos e italianos. Ele entrou com as comidas e até com alguns vinhos.
Meu candidato a namorado chegou à hora marcada, trazendo com ele um sorriso superior, tal como James Bond diante do Dr. No.
O primeiro prato era uma sopa, a Ribollita, famosa na Toscana, derivada do minestrone. Em seguida, pimentão vermelho recheado com queijo de cabra, cozido com molho de tomate, lascas de pimenta malagueta. E, por fim, aspargos frescos com molho hollandaise. Para sobremesa, também de origem italiana, “Seios de Virgem” ou Minni di virgini, bolinhos dedicados a Santa Agatha feitos de ricota coberta com marzipan e decorados com duas cerejas, uma em cada bolinho (ou em cada “seio”). Para elas, um vinho doce, um Late Harvest chileno.
Já vimos que o nosso candidato a namorado não admitia vegetais com vinho, com aspargos, então, era um atentado (“são o inimigo número um dos vinhos”, dizia, repetindo dezenas de críticos). Vinhos doces, ou de sobremesas, aceitava apenas os franceses (os Sauternes liderando) e alguns Rieslings.
Com a Ribollita, servimos um ótimo Chianti Classico, com 100% da grande cepa toscana, a tinta Sangiovese. Como a degustação era às cegas, estranhou um vinho tinto na taça. Com sopa? Pois é, explicamos, é que temos um prato forte, denso. Logo, um vinho um pouco mais potente para acompanhá-la.
Com o pimentão recheado, um prato mais picante, uma harmonização por oposição: um branco austríaco com a Grüner Veltliner, que tinha em casa, com notas florais, excelente acidez e também algo de pimenta do reino branca.
Não fomos rigorosamente vegetarianos, como se pode ver pelo queijo de cabra e pelo molho hollandaise aveludando os aspargos. Como esse prato experimentamos um Sancerre da vila de Bué, delicioso com seus aromas minerais e cítricos.
O vinho de sobremesa era um Late Harvest chileno, da Concha & Toro: alguma fruta, damasco e mel, a doce e prolongada lembrança desse jantar-degustação. Pelo menos na boca seria assim.
Meu pretenso namorado mal comeu. Provou daqui e dali. Estava sem graça. Não quis palpitar sobre os vinhos e nem se interessou em olhar os rótulos; insistia em que nada combinava com legumes e vegetais.
Mas foi elegante o tempo todo. Mal a mesa foi limpa, agradeceu, inventou uma desculpa e se retirou. Não cheguei a usar de umas citações que pretendia lascar em cima do candidato a enólogo e a namorado. Uma, do Einstein, contra a sua numerologia: “Nem tudo que pode ser contado, conta. E nem tudo que conta pode ser contado”. Outra, do Voltaire: “O melhor é o pior inimigo do bom”, para abrir-se mais: vinhos baratos não são ruins necessariamente. E não interessa o rótulo, a origem, o brasão: o que vale é o que está na taça.
O caso é que fiquei sozinha. A frase do Voltaire cairia como uma luva para mim. Ele era um enófilo empedernido. Nove fora a ladainha sobre vinhos, não chegava a ser um chato. Seus comentários podiam azedar meu dia, mas quase sempre eram corretos. Claro que tínhamos que melhorar nosso acervo.
Ele poderia não ser o melhor par, um esnobe etc. Mas poderia tornar-se um bom parceiro, um amigo. Talvez o jantar do Dia dos Namorados tomasse outro rumo se eu não saísse por ai querendo dar lições ou a pregar peças nos outros. Num certo sentido, eu fui a chata.
Perdi o cliente. Perdi a pose. Perdi o namorado. Só não perdi as esperanças. Em outros encontros, os vinhos nunca mais entraram na minha agenda. Só os bebi e com gosto.
Da Adega
Areje seu namorado. Já que estamos no assunto, considere presentear seu namorado com um Wine Finer, acessório que promete aeração e filtração do vinho em poucos minutos. Além disso, serve como corta gotas e tampa da garrafa. Dê só uma olhadinha no
site.
Aliás, no site temos depoimento de sommeliers e empresários do vinho elogiando o novo aerado. Uma de suas utilidades é tirar da nossa frente o tradicional decantador, sempre útil, claro, mas de difícil limpeza.
Segundo a demonstração no site, o vinho já chega à taça devidamente “respirado” e sem resíduos, já filtrado.

3.6.10

O saca-rolhas vai se aposentar?

O blogueiro e influente crítico de vinhos Dr. Vino (o PhD Tyler Colman) perguntou aos seus leitores sobre o tipo de tampas de vinhos que mais detestavam. Os leitores tinham cinco opções de voto: a rolha de cortiça tradicional, a chamada “rolha técnica” (grãos de cortiça aglomerados, com discos também de cortiça em cada extremidade), a rosca metálica, a rolha sintética (de plástico) e, por fim, um voto neutro: “não me importo”.
Até ontem, para meu conforto, a pesquisa era liderada pelas rolhas de plástico, detestadas por 72% dos leitores do blog. Em segundo lugar, bem distante, as roscas de metal, com 13%. Os que estão se lixando para o tipo de tampa de seus vinhos somavam 6%. Em quarto lugar, as ditas “técnicas”, com 4%. As rolhas de cortiça ficaram em último, nessa escala invertida de preferência: apenas 5% não as aprovam. Ora, graças!
Em pesquisas mais elaboradas, as de cortiça continuam sendo as preferidas de consumidores e vinicultores em todo o mundo. Aqueles, pela tradição, costume. Estes pela capacidade da cortiça em comprimir-se e expandir-se, de formar um fecho seguro e ao mesmo tempo permitir que o vinho respire por longos períodos (receba micro quantidades de oxigênio ao longo de sua vida). A grande queixa contra elas é a possibilidade de contaminar-se com o fungo da TCA (2,4,6-tricloroanisol), que resulta na “doença da rolha””, no “gosto de rolha”, em sabores e aromas indesejados no vinho, inutilizando-o. Sabe-se que as causas dessa infecção não estão necessariamente nas rolhas, mas também nos barris de carvalho, na madeira existente nas adegas das vinícolas, no transporte utilizado para as rolhas etc. São as rolhas, porém, que pagam o pato: sobre elas recaem a maioria das reclamações. Falam que até 7% das garrafas colocadas no mercado apresentam esse problema. Um senhor prejuízo, para o consumidor e para o produtor, que não sabe que sua garrafa foi infectada. O resultado é que o produtor perde a garrafa, o cliente e seu vinho perde reputação.
Daí que, dos anos 90 para cá, a indústria começou a testar tampas alternativas. Temos as já citadas “técnicas”, eficientes em preservar o dióxido de enxofre (um conservante utilizado há séculos) na garrafa e mais utilizadas em vinhos destinados ao consumo em no máximo dois, três anos.
As rolhas sintéticas imitam as de cortiça quanto à forma e função, mas são de plástico e não apresentam risco de contaminação. São difíceis de remover, bem como de serem recolocadas na garrafa (diria que essa operação é impossível). E, pior: são mais permeáveis ao oxigênio do que as rolhas naturais. Derivadas do petróleo, não são biodegradáveis e, por isso, representam um sério dano para o meio ambiente.
As roscas metálicas, feitas de alumínio com um revestimento interno de plástico, são, sobretudo, práticas, basta uma ligeira torção na tampa para abrir a garrafa. São eficazes quanto à passagem do oxigênio e contra o TCA; Mas a ausência total de oxigênio resulta na supressão de suprimir aromas, resultando em outro e grave problema, o da redução.
A expressão técnica é “redução de sulfito”. As roscas de metal são praticamente anaeróbicas, não permitindo que o vinho respire, podendo deixá-lo com aromas detestáveis (borracha queimada, ovo podre). Para evitar isso, os produtores que adotaram essas roscas, “preparam” o vinho com uma solução de sulfato de cobre. E aí o que deveria permanecer natural, o vinho, cessa de existir. O tratamento com um aditivo potencialmente tóxico vai “reduzir” ou temporariamente eliminar os sulfitos, mas também alterará várias das características do vinho, como seus aromas e sabores. Esse problema está aparentemente sendo solucionado por uma nova geração de tampas de rosca, que permitem alguma passagem de ar.
As tampas de rosca metálica predominam na Nova Zelândia e, em parte, na Austrália. Seu uso está aumentando nos Estados Unidos. O consumidor está aos poucos se acostumando a elas. As roscas Zork derivam delas: seu exterior é de plástico, mas quando retiradas fazem aquele “pop” tradicional nas de cortiça. Algo, para deixar o consumidor mais confortável.
As rolhas de cortiça continuam incomparáveis se examinadas da perspectiva ambiental. Elas são as únicas derivadas de uma fonte renovável e é completamente biodegradável. As fábricas que as produzem são alimentadas pelos seus restos. Assim, tanto a produção como a reciclagem delas exigem pouca energia.
Quanto ao aquecimento global, as florestas de sobreiro (espécie do carvalho, o Quercus suber), fonte da cortiça, são regenerativas. Levam uns dez anos para amadurecer e suas cascas (súber) são colhidas a cada onze anos. Conseguem produzir por bem mais do que um século. E, importante, podem continuar produzindo em habitats secos, desolados, inférteis. Num futuro próximo, as florestas de sobreiro no Norte da África, Espanha e Portugal serão as únicas barreiras naturais a conter o Deserto de Saara.
Nelas vivem os famosos porcos “pata negra”, que se alimentam das sementes dessa espécie de carvalho (“bolotas”), uma dieta que determina o sabor e a textura marcantes do famoso presunto espanhol. Essas florestas dão emprego àqueles que criam os porcos e aos que cuidam dos sobreiros. Fazem isso há séculos. Comunidades inteiras deixariam de existir, fugiriam para as grandes cidades, se de repente, a indústria do vinho optasse em massa por outro tipo de tampa que dispensasse a cortiça.
As alternativas necessitam, para a sua produção, de muita energia, com o uso intensivo de petróleo, da mineração da bauxita para o fabrico do alumínio, com um grande gasto de energia elétrica. No final, vamos ter plástico e metal, um lixo de difícil absorção.
As rolhas de cortiça continuam sendo o modelo de qualidade, pelas quais as tampas alternativas são avaliadas. Nenhuma até agora conseguiu igualar sua capacidade de selar, sua flexibilidade e a propriedade liberar mínimas quantidades de oxigênio, razão pela qual o vinho poderá desenvolver-se e envelhecer graciosamente, sem problemas de oxidação ou de redução. Ou seja, o vinho comprovadamente vai amadurecer graças a essa gradativa admissão de mínimas quantidades de oxigênio. (veja pesquisa realizada pela Universidade de Bordeaux). Sabemos de vinhos selados com rolhas de cortiça podem ser bebidos depois de 20, 30, 50 anos de engarrafados. Não existe ainda uma prova dessas por parte de vinhos com tampas alternativas.
Por seu lado, os produtores de rolhas de cortiça estão tendo sucesso na prevenção do problema do TCA. Leia sobre as estratégias do produtor líder, o Grupo Amorim.
Do ponto de vista ambiental, a nossa escolha ficaria entre a mina de bauxita, o poço de petróleo e a floresta de sobreiro. Bauxita, petróleo ou sobreiro: quem você teria no seu quintal? Quem vai querer beber um vinho “curado” com sulfeto de cobre?
Enfim: o nosso bom e velho saca-rolhas ainda vai levar muito tempo para se aposentar. Felizmente.