16.9.10

Pelo Nariz

Às vezes é bom brigar com namorados. Pelo menos, numa dessas ocasiões o lucro foi meu, pois ganhei um presentaço a título de reconciliação. Era o estojo básico do famoso “Le Nez Du Vin” (O Nariz do Vinho), que vem numa caixa coberta por um tecido vermelho que a fazia parecer um dicionário. Dentro dela, duas dúzias de frascos, cada um evocativo de um aroma específico de vinhos, tintos e brancos.
Na época, tinha acabado de me associar a uma loja de vinhos na Serra de Petrópolis. E, evidentemente, aprender sobre mais sobre a bebida era prioritário. Meu readmitido namorado deve ter gasto um bocado, pois esses kits custam um bocado. Ganhei o estojo com 24 aromas que custa hoje, lá fora, em torno dos 230 dólares. Já os vi por aqui, em muito poucos lugares, é verdade, na base dos 400 reais. Na Amazon estão custando hoje entre 400 dólares (o estojo mais completo, com 54 aromas) e 130,00, o mais simples, com 12 fragrâncias. Já pensou seus preços ao chegarem aqui?
Além dos frascos, o estojo contém dois manuais, ambos de autoria de Jean Lenoir, um famoso crítico de vinhos francês que há 30 anos criou O Nariz do Vinho, já com um certificado profissional em degustação de vinhos e com um diploma do Departamento de Ciência da Universidade de Dijon. Com base num dos cursos sobre sabor e aroma que dava na Borgonha (foi professor por 10 anos lá), aprendeu com a reconhecer aromas contidos em pequenos frascos, método utilizado por um de seus professores. E pouco a pouco começou a memorizar os aromas mais típicos em centenas de vidrinhos. E foi assim que chegou ao Le Nez Du Vin.
No primeiro manual, Lenoir introduz sua metodologia, explica sobre os aromas primários, secundários e terciários na bebida. Fala de notas de fruta, como cassis (ou groselha preta) e cereja, de notas florais, como as das rosas e das violetas, de notas vegetais (pimenta verde e trufas), notas de assados, como a dos defumados e notas de animais, como couro e almíscar (cheiro de peixe, de maresia). Ensina também que devemos desenvolver nossa “educação aromática” em ambientes livres de cheiros alheios, como os de cigarro ou mesmo de perfumes.
No segundo manual, Lenoir explica os aromas em cada um dos 24 frascos: limão, toranja (grapefruit), abacaxi, lichia, moscatel, pêra, morango, framboesa, cassis, groselha preta, amora, cereja, espinheiro (Fagara pterota), mel, violeta, pimenta verde, trufa, alcaçuz, broto da groselha, baunilha, pimenta, manteiga, torrada, amêndoa torrada e de defumado.
O autor explica como esses 24 aromas podem ser encontrados em muitas cepas. Um vinho com a italiana Sangiovese terá aromas de morango, framboesa, alcaçuz e algo de defumado. Já a Pinot Noir oferece cereja e violeta, groselha e alcaçuz. Vinhos de Bordeaux e da Borgonha exibirão notas de defumados. O manual sugere o óbvio: se conseguirmos praticar continuadamente com esses vidrinhos acabaremos por memorizar todos os seus aromas e, portanto, levar nossos narizes a identificar uma grande quantidade de vinhos.
Já falei sobre nariz por aqui (veja coluna Ai, o meu nariz). Exercitá-lo é importante, claro. Os perfumistas formados em Grasse, a 15 quilômetros de Cannes, França, conhecida com a capital mundial do perfume, são conhecidos como NEZ (nariz, em francês). São eles que criam, compõem os perfumes, as fragrâncias que tanto evaporam nossas bolsas quanto garantem nosso sucessoa partir de poucas gotas. Acho que Lenoir tirou daí o título dos seus estojos. (Saiba mais sobre o Le Nez Du Vin)
Quando ganhei Le Nez já tinha alguma prática. Comecei a aprender sobre aromas em vinícolas, com profissionais. O plá era ir para a ruas, para os mercados e começar a acostumar meu nasal a tudo que encontrasse: de alface ao limão, de manga às couves, cebolas, batatas. Meu aprendizado foi muito parecido como o da Meg Ryan na comédia romântica O Beijo, quando o seu par romântico, Kevin Kline, larápio e, ao mesmo tempo, vinicultor, lhe ensina a conhecer aromas dos vinhos. Ele tem uma mala velha e nela dezenas de frascos com fragrâncias de vinhos. Dentro da mala, havia folhas, galhos etc., tudo o que o francês conseguiu reunir para o seu próprio aprendizado.
Esses kits ajudam, tenho certeza. Mas é fundamental sair por aí obrigando o nariz a sair da preguiça e a tornar-se mais musculoso. Vamos aprender a diferenciar uma couve mineira de uma nabiça e temos de conhecer os vinhos, de todas as regiões, de todos os hemisférios. É uma missão interminável.
Sim, o nosso senso de olfato precisa ser educado. Ele é, quase sempre, subutilizado. Precisamos gastar um tempo cheirando e fazendo livres associações. Não é muito diferente de aprender letras: saber sobre literatura russa ou sobre os pintores expressionais ou até como ouvir o Rigoletto.
Uma vez, meus sobrinhos começaram a brincar com os frascos. Um deles pegou o de pimenta verde e disse: “Tem cheiro de salada”. Bem, pensei, está no caminho certo. No frasco de framboesa, ditou: “Parece iogurte de morango”. Entendi que ele não tinha a referência direta da fruta, mas o aroma lembrava as sobremesas de iogurte que consumia com freqüência. Nada mal. Seu irmão, mais novo, pegou o de “Defumado” (que para mim cheira como bacon ou carne defumada) e decretou: “Cheira como salame”. Eles estavam se utilizando do banco de dados de sua memória olfativa.
O crítico inglês Jamie Goode, que é PhD em biologia, explica que o vinho tem propriedades físicas que podem ser medidas, são reais. “Se diferentes pesquisadores examinarem um mesmo vinho utilizando ferramentas analíticas, como a da espectrofotometria, devemos esperar deles os mesmos resultados”.
Acontece que o vinho tem um grande número de componentes aromáticos que podem ser detectados pelo nosso sistema olfativo. Possui ainda elementos químicos que induzem a uma resposta do paladar.
Só que a composição química é uma propriedade do vinho, mas o sabor do mesmo não é, pois resulta da interação entre o provador e a bebida. E o provador vai trazer para essa experiência algo dele que alterará significativamente a percepção do vinho. Eu jamais percebi um cheiro de salame naquele frasco. Mas meu sobrinho, sim. E ele não estava errado.
Sim, nós não provamos da mesma maneira que os instrumentos de medição. A informação sensorial que recebemos durante uma degustação é codificada através de sinais elétricos pelos receptores olfativos, papilas gustativas e fotoreceptores visuais. Tudo isso passa por um processamento complicado em nosso cérebro antes de alcançar uma versão devidamente editada da realidade – a percepção consciente do vinho.
Assim, o que nós chamamos sabor do vinho não é propriedade do vinho, mas algo dependente do que processamos em nosso cérebro. E todas nós apresentamos diferenças quanto ao nosso repertório olfativo. “Cada um de nós tem o seu próprio mundo de sabor e aroma”, afirma o crítico inglês.
Daí que exercitar nossos narizes é muito bom, com ou sem Le Nez Du Vin. No meu caso, do jeito da Meg Ryan, ora brigando, ora fazendo as pazes com seu amor de ladrão. Mas sempre metendo o nariz onde nem sempre era chamada.
Por falar nisso, essas fragrâncias têm 10 anos de validade. Nem me lembro do nome completo do namorado gastador, mas as fragrâncias que me deixou ainda funcionam. Vivo birrando com namorados. E eles comigo. Mas presente como Le Nez Du Vin, nunca mais! Estou deixando passar as oportunidades pelo meu nariz.
Da Adega
Deise, Zona Sul e neozelandeses.
Pois o Zona Sul promoveu quinta-feira, dia 16, uma degustação de vinhos da Nova Zelândia, apresentados pela respeitada sommelier, consultora e crítica de vinhos Deise Novakoski e pela proprietária das vinícolas
Te Mara e Auntsfield, Janiene Bayliss. Dos Te Mara, estão Pinot Gris, Riesling, Sauvignon Blanc e Pinot Noir. Da Auntsfield, Chardonnay, Sauvignon Blanc e Pinot Noir. A apresentação aconteceu no Zona Sul da Dias Ferreira, Leblon.
Aurora com novo Millésime. A poderosa Cooperativa Vinícola Aurora está lançando o seu Aurora Millésime 2008, o quinto de sua história. É um tinto 100% Cabernet Sauvignon. Millésime é francês para a data da safra. É normalmente utilizada quando a cepa ou cepas utilizadas no vinho foram todas colhidas no mesmo ano e quando essa particular colheita mostrou-se excepcional. As outras safras da Aurora de igual qualidade (e que tiveram, portanto, o seu Millésime) foram as de 1991, 1999, 2004 e 2005. Esse Cabernet passou por maceração prolongada e descansou em carvalho francês por 10 meses. Antes de sair para o mercado, ficou em garrafa por mais 12 meses. Chegará ao consumidor com 13% de álcool, mas bem equilibrado, potente e em torno dos 50 reais.
Saiba mais.

3.9.10

As taças de Helena e de Clara

Como segurar taças de vinho? Se a Taís Araújo segura as taças que tomou durante a novela pelo bojo, então é assim que devemos fazer, não é? Mas, olha, a Clara (Mariana Ximenes), que diferente da “Helena” de “Viver a Vida” é uma periguete, segura pela haste. A Clara seria mais bem educada, pelo menos enologicamente? Aparentemente, não. Já a Helena, Top Model, vem de uma família bem preparada, sua mãe é dona de uma pousada, sabida nas artes de servir bem. Helena tem vivência internacional, gira em ambientes refinados. Quem estará certa? E quem vai apostar que Helena já não tenha segurado a taça pela haste e Clara pelo bojo?
O caso é que as novelas, ao contrário do que se pensa, acabam sendo escolas eficientes. Há alguns anos, a italiana Eliana La Ferrara, economista de desenvolvimento, baseada na Universidade Bocconi, em Milão, analisando pesquisas antropológicas, reparou que brasileiras pobres começaram a decidir ter famílias menores (portanto, ter menos filhos), a partir do que viam nas nossas novelas.
La Ferrara e mais dois outros economistas, Alberto Chong e Suzanne Duryea, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, partiram então para verificar se as novelas tinham realmente o poder de promover grandes alterações demográficas. E verificaram que, região por região brasileira, a partir da chegada das novelas da Globo, a taxa de nascimento decresceu. E descobriram mais: as crianças começaram a ser batizadas com nomes dos personagens da novela. Os telespectadores se identificavam fortemente com seus personagens, praticamente transformando-os em membros de suas famílias, contagiando-se com seus comportamentos. Daí, talvez, esse excesso de Maicons e Deivids.
Isso não acontece apenas com as novelas da Globo. Dois outros economistas e catedráticos, os americanos Emily Oster e Robert Jensen, verificaram que também na Índia, com o crescimento do acesso à TV a cabo, o índice de fertilidade dos casais também decaiu. E, mais, as indianas começaram a ter mais autonomia, a protestar com veemência contra a violência de seus maridos e a autorizar que suas filhas se matriculassem em escolas.
Na Índia, como no Brasil, as novelas costumam retratar vidas em centros urbanos e entre gente de classe média alta, na qual os personagens femininos trabalham fora e são donas de seus narizes – vidas que lá, como aqui, acabam se tornando aspirações.
Além do menor número de bebês, as novelas seriam a origem de um número maior de divórcios, de uma consciência maior contra abusos, violências. É de se louvar que estejam sendo utilizadas por grupos ativistas como os principais veículos educativos, para tratar de assuntos como preconceitos de várias ordens (racial, religioso e social, entre eles), para educar melhor sobre problemas de saúde e de comportamento (HIV, tetraplegia, síndrome de Down, homossexualismo etc.).
Não importa se as novelas acabem sendo a enésima versão de Romeu e Julieta misturada com Hamlets, Macbeths, Lears, Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira no liquidificador criativo dos seus autores. São ainda o principal entretenimento do público em geral, com o poder de influenciar o cotidiano das pessoas. Antes, o núcleo dos ricos só bebia uísque e, nas festas, champanhe. Entre os pobres, só cerveja e as branquinhas. A partir dos anos 90, o vinho começou a aparecer e hoje os bens de vida tomam seus vinhos com freqüência e espumantes a toda a hora.
Bem, acho que me alonguei demais. Quem quiser ler mais sobre o poder das novelas procure aqui.
Afinal, quem está certa, Helena ou Clara? Segurar pelo bojo ou pela haste? Se dependermos das novelas, estamos fritas. Já vi novela com um protagonista fazendo um verdadeiro enochato. Ele desprezava “vinhos com a Pinotage”, não deixando de deitar regra ensinando que Pinotage é um cruzamento das francesas Pinot Noir e Cinsaut.
Sei que muito do que os personagens fazem, dependem de marcações da direção, da produção etc. Mas resulta também do trato social ou da base educacional de cada ator.
Tenho várias razões para preferir segurar pela haste. Em primeiro lugar, eu, Helena, Clara e todas nós teríamos dificuldades em apreciar as cores de nossos vinhos segurando a taça pelo bojo. E, fora a beleza dos matizes, a aparência dos vinhos diz um bocado sobre eles.
Por exemplo, se o vinho é de um branco pálido, provavelmente trata-se de um branco jovem e foi maturado em tanques de aço e não em carvalho. Você saberá de cara que a ausência do carvalho será sentida no sabor.
Já se o vinho é de um dourado profundo, quase com certeza será um branco com alguma idade ou oxidado (assim como o marido rico da Helena).
E se Helena continuasse a segurar o vinho pelo bojo, arriscaria dele ficar mais aquecido do que o recomendável. Seria que ela iria querer provar de um branco morno? A haste foi criada exatamente para isso: evitar que nossas mãos aquecessem a parte bojuda da taça, fazendo o mesmo com o vinho.
Fora isso, tenho mais uma razão, essa de matar: segurar pela haste é um bocado mais elegante. Talvez você conclua que as Top Models, na vida real ou nas novelas, têm lá seus tropeços. Ponto para a bandida da Clara: elegância é fundamental. E não se importe muito, amiga, pois no final sabemos que o lobo mau vai morrer e vamos todas brincar novamente na floresta.
Da Adega
Yosef e o Palhete de Ourém
. Um leitor, provavelmente espanhol, Yosef Arad, achou uma coluna publicada, imaginem, em julho de 2006, O que houve com o Clarete? Ele está procurando
"...el divino Clarete como lo conoci por primera vez en Portugal hace mas de 25 anios - Color Rubi, dulzon y suave como el terciopelo, igual a la mujer amada que lo compartio conmigo con queso cremoso portugues, uvas moscatel heladas y caviar rosado, en fin una tarde de amor y clarete...quiero recordarme de ese sabor pero no lo puedo encontrar en ningun mercado, sera que desaparecio como muchas otras cosas del siglo pasado ?"
Como na coluna falo de vários tipos ou de interpretações de Clarete (Claret, Clairet, Clairette, Clarete propriamente), o fato de ter provado desse vinho cor rubi, doce e suave, difícil de achar, acho que ele está se referindo ao Palhete de Ourém, uma especialidade portuguesa cuja produção tem séculos de história. Brancos, tintos e palhetes possuem uma linha cronológica de 800 anos, dos tempos em que D. Afonso Henriques celebrou uma série de acordos com a Ordem dos monges de Cister.
Mas para consegui-lo talvez Yosef precise viajar até Ourém, na sub-região da Alta Estrematura, Portugal. Falar em vinhos de Ourém é falar do “Medieval de Ourém”, é falar no vinho palhete. Um “vinho branco pintado com uvas tintas”, produção tradicional nas regiões dominadas pelos monges da Ordem de Cister e que se tornou, com o tempo, exclusivo da zona de Ourém.
Este vinho, hoje, fez com que se criasse uma DOC, denominação de origem controlada. Os produtores têm que ter as suas vinhas registradas. Para produzir o “Medieval de Ourém” são necessários 80 por cento de uvas brancas Fernão Pires e 20 por cento de uvas tintas da casta Trincadeira. As uvas brancas são colocadas em vasilhas de madeira. As uvas tintas são esmagadas e permanecem entre cinco a oito dias em grandes vasilhas, curtindo, de modo a que o líquido absorva a cor escura da casca. Após este processo, as duas qualidades são misturadas, permanecendo cerca de um mês nas barricas. Depois da fermentação, o vinho é passado a limpo. Existem 12 produtores deste vinho, sendo o maior a “Divinis” com o seu “Medieval”.
Yosef: o melhor é
viajar até a Estremadura. Tenho certeza que, lá, você encontrará o doce Palhete cor de rubi e terá mais uma tarde de amor.