1.5.12

O Vinho-Carroça


Ainda estou viva, gente. Desculpem pelo longo silêncio. Tinha que voltar para botar minha colher nesse grave caso das Salvaguardas. A essa altura, todos vocês já devem saber que a indústria gaúcha de vinhos (Ibravin, Uvibra, Fecovinho, Sindivinho) quer que o governo imponha cotas e aumente a tarifa de importação de vinhos. Querem proteger os vinhos nacionais das importações europeias e de países fora do Mercosul.
Vamos acabar ficando com um vinho-carroça. Lembram-se do Collor, quando ainda era presidente: “Comparados com os carros do mundo desenvolvido, os carros brasileiros são verdadeiras carroças”. A partir daí o mercado ofereceu carros com, pelo menos, um pouco mais de segurança, embora nossos carros populares continuem sendo carroças.
Minha opinião não é isolada. Ao contrário, está muito bem amparada. Vejam o que me disse o Ricardo Camignani, CEO da Winebrands (uma das mais importantes importadoras nacionais):
“Nossa posição é de perplexidade e surpresa com esta iniciativa de caráter essencialmente protecionista. Em favor de um grupo restrito de produtores do Rio Grande do Sul, todo o mercado Brasileiro vai sofrer com mais burocracia, restrições, impostos, e como consequência preços ainda mais altos. O pior de tudo é que estamos perdendo a perspectiva histórica. São as importadoras que, ao longo de anos, têm contribuído de forma inequívoca para o desenvolvimento do mercado eno-gastronômico no Brasil. Hoje, são milhares de profissionais que trabalham no serviço de vinhos em restaurantes, lojas, supermercados. Vários jovens seguiram pelo caminho do vinho e da gastronomia melhorando e qualificando os serviços. Para o Brasil, é importante que tenhamos restaurantes e comércio de nível internacional, na medida em que o país se credencia como um importante pólo turístico e centro de atração de grandes eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas). Medidas como a Salvaguarda nos remetem 20 anos atrás, para um tempo que, tenho certeza, nenhum Brasileiro tem desejo de reviver”.
Quando o Diretor Executivo da Winebrands fala que as tais Salvaguardas nos rementem 20 anos atrás, fala justamente dos tempos dos carros-carroças, do caçador de marajás, da corrupção desmedida do PC Farias, dos jardins da babilônia na casa da dinda e do inédito e tenebroso confisco da poupança. Bem lembrado: tempos que nenhum brasileiro tem desejo de reviver.
Salvaguardas que vão resultar em desastre não apenas para importadoras. Para todo e qualquer negócio ou serviço que produz, comercializa ou ensina sobre vinho no país. Vamos ter o desemprego de milhares de pessoas, a começar por São Paulo, que soma 50% do mercado brasileiro de vinhos. Sofrerá consumidor, principalmente. Ele deixará de saber das infinitas possibilidades de aromas, sabores e cores que os vinhos de outros pagos podem oferecer. Não poderá comparar, logo não poderá indicar aos produtores nacionais caminhos pelos quais produzir seus vinhos e possivelmente melhorar sua produção.
Para comparar, o passo inicial é duvidar, preliminar de qualquer descoberta ou melhoria. A faculdade de duvidar e questionar, sem a qual comparações e julgamentos seriam inúteis, é uma prerrogativa da razão. Vamos ficar sem o direito de duvidar.
Os vinhos gaúchos estão ameaçados? Pelos consumidores é que não estão. Pelos dados do próprio Ibravin, considerando todos os vinhos vendidos no país, de mesa, finos e espumantes, ficamos com invejáveis 77,40% do mercado. Os importados se contentam com um resto de 22,60%. São 265,2 milhões de litros contra parcos 77,6 milhões litros por ano. Veja o gráfico e leia matéria aqui.
Quando esses dados foram apresentados, excluíram espertamente os vinhos de mesa e os espumantes, quando então os nacionais ficam com 21,20% do mercado. Parece mesmo que o calcanhar-de-aquiles é o mercado de vinhos finos: 92 milhões de litros ano passado, 78,8% de importados (principalmente do Chile, Argentina e Itália).
Não estranhei que viessem de chefs e sommeliers renomados os primeiros protestos e ações concretas contra a proposta da Ibravin. Roberta Sudbrak e Alex Atala já retiraram os vinhos brasileiros das cartas de seus renomados restaurantes. Entidades como a Associação Brasileira de Sommeliers e a Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho (que há anos realizam a inestimável tarefa de fazer do vinho um produto amistoso, rico e valioso para o consumidor brasileiro) também disseram não às salvaguardas. Agora mesmo, leio que os maiores exportadores de vinho do mundo levaram queixas à Organização Mundial do Comércio contra essa imposição Chile, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, além de países europeus. Querem explicações sobre o motivo da medida protecionista. Sim, porque os produtores nacionais estão vendendo e lucrando como nunca.
Nos supermercados encontramos vinhos chilenos e argentinos, entre outros, por menos de R$ 10,00 a garrafa. São importados: pagam IPI, ICM, frete, garrafa, rolha, rótulo, caixas de vinho, fora despesas aduaneiras. São mais baratos que os nacionais porque aqui pagamos Funrural, PIS, COFINS, IR, ICM, IPI e não sei mais quantos tributos municipais, mão de obras etc.
Logo, a solução não é aumentar a carga tributária dos importados e sim diminuir a dos vinhos nacionais. Se o governo é capaz de reduzir impostos dos carros quando de uma ameaça às vendas da indústria, se está brigando com os bancos para que baixem suas taxas, porque não refresca o setor vitivinícola, que está em crescimento acelerado, dá empregos a milhares de pessoas e é hoje uma indústria que já cobre grande parte do território nacional.
Veja o caso dos Estados Unidos. Lá a indústria do vinho nasce pra valer depois que a Lei Seca foi abolida em 1933. Daí em diante, os vinhateiros americanos deram um senhor duro para fazer um vinho decente e converter os americanos. Em 2010, os Estados Unidos passaram a França e tornaram-se os maiores produtores de vinho do planeta. Ainda não são os maiores consumidores per capita: 8,9 litros/ano. O trabalho educativo continua, a liberdade de comércio é plena. Se você quiser conhecer vinhos gregos, libaneses, cipriotas, uma garrafa com uma uva com nome impronunciável cultivada num canto esquecido da terra, é só dar um pulo em Nova York. Garrafas de todo o mundo estão lá, à disposição, dispensando quaisquer tipos de salvaguardas.
Nossa indústria pra valer começa com a chegada à Serra Gaúcha dos emigrantes italianos em 1875. A partir daí só fizemos crescer. Mas nosso consumo per capita ainda é pequeno: mal chega aos dois litros anuais. Mas estamos crescendo, como vimos pelos números acima.
Tanto lá como cá, a maioria dos bebedores bebe vinhos simples ordinários. Esse cenário é geral, acontece da França à Geórgia. É esse consumidor quem não deixou a cachaça morrer. No Brasil Colônia, fomos proibidos de produzi-la. Mas ela servia como moeda de compra de escravos em terras africanas e para aliviá-los (se isso era possível) na travessia. Difícil obedecer a essa salvaguarda. Hoje, é o drinque nacional até por decreto presidencial.
Proibir, como prova a Lei Seca americana e a história da cachaça brasileira, não dá resultados. A solução está aqui mesmo. Baixar impostos, dar mais incentivos à produção e aos esforços de entidades com a ABS e SBAV. Argentinos com sua Malbec, Chilenos com sua Carménère e uruguaios com sua Tannat fizeram o mesmo e estão felizes com suas exportações. E nós, continuamos com essa história de 30 anos atrás, quando a melhor solução estava na ponta da bota: proibir?
Não podemos desconhecer o que os estrangeiros fazem. Sem a influência do jazz não teríamos bossa nova, sem o batuque africano, não teríamos samba, sem os italianos não teríamos Carlos Gomes e sem ele Villa-Lobos. Paul Valery enriqueceu Drummond, assim como Victor Hugo fez com Machado de Assis.
Para cada salvaguarda ou proibição estaremos criando imediatamente um ambiente clandestino, onde o primeiro a sofrer será o consumidor.
Pensei em tudo isso quando assinei a petição contra o aumento do imposto de importação para vinhos e tentar afastar de nós a possibilidade do vinho-carroça. Faça o mesmo, por favor. Assine já!