3.1.08

Pit Stop

Acho que vou começar o ano com o pé direito. Fiquei quase duas semanas sem beber, sem colocar nada, nadinha de álcool na boca. Só voltei a beber na antevéspera do Natal. Estava com problemas? A fim de me “livrar das toxinas”, de purificar meu corpo? Não, nada que passasse perto do Ganges.
Em primeiro lugar, finalmente, fiz o meu grande exame clínico, que deveria ser anual. Só que estava devendo uns bons três anos ao médico. Marquei para meados de outubro, fiz as malas e passei duas semanas no Rio, em casa de amigas – preocupada com meus cachorros e minhas galinhas em Secretário. Mas fiz todos os exames possíveis.
Entrei confiante. Afinal, colocava grande crédito nos vinhos que consumo há anos: meia garrafa diariamente. Esperava que ou o resveratrol ou as procianidinas dos tintos estivessem funcionando, como antioxidantes e drenos para minhas artérias. Meu estilo de vida é saudável, acho eu. Não fumo, como frugalmente, muita fruta e vegetais, evito frituras, carne só de vez em quando etc. Minha lida no sítio, correndo atrás de galinhas, limpando o terreno, arrumando a casa etc. contam como exercício físico regular. Não sou nem obesa, nem sedentária.
Bem, os resultados foram um tanto decepcionantes. Minha pressão está supimpa. Mas o colesterol, tanto o bom (LDL) quanto o ruim (HDL) estão altos. Um resultado ao mesmo tempo ruim e bom. Os triglicerídeos (que armazenam gordura) oscilam para cima e para baixo – mas na média estão perigosamente no limite (exatos 150 mg/dl).
E, novidade para mim, o médico, desta vez, pediu um exame adicional. É o que determina uma tal de Proteína C-reativa (PCR). Ela é produzida pelo fígado: aumenta quando temos alguma inflamação causada por doenças, acidentes ou estresse. O médico fala que é o único indicador de inflamação que sozinho prediz o risco de um ataque cardíaco. Não há riscos, mas o médico confessou que gostaria que os marcadores estivessem melhores, mais baixos (mais uma vez, o nível estava no limite: 1.0 mg/L. Abaixo disso, é baixo o risco de desenvolvermos alguma encrenca cardiovascular. Acima disso, bandeira amarela. Se passar de 3.0, o risco é muito grande.
Ele não condenou minha dieta, nem meu estilo de vida. Mas me receitou pílulas de estatina, para colocar os níveis de meu HDL em ordem. Não sei se vou tomá-las. Falam que as estatinas podem causar problemas nos músculos e no fígado. Com a quantidade de vinho que tomo, elas podem até ser fatais. Tenho a meu favor não fumar e um exemplar estilo de vida.
Mas muita coisa não conseguir responder ao médico. Quanto de vinho tenho de consumir para o resveratrol fazer efeito: uma taça, uma garrafa, um galão, uma caixa? Não adianta argumentar com as procianidinas, pois elas são encontradas em maiores quantidades nos tintos com a uva Tannat, da Gasconha, região do sudoeste francês. Teria de me mudar para lá.
E agora temos um estudo ligando colesterol com etanol, o álcool do vinho. O Departamento de Doenças do Fígado da Escola de Medicina da Universidade de Nova York pesquisou o consumo de etanol por ratos. Aparentemente, eles inibem a secreção de um ácido produzido pelo fígado e que, quando chega aos intestinos, funciona como um detergente para ajudar na absorção das gorduras.
Se não formos moderadas no consumo de vinho, estaremos contribuindo para aumentar os níveis de colesterol. Taí, o nó da questão. Estou torcendo para que essa pesquisa não dê em nada. Pobre dos ratinhos!
Meu médico concorda que o consumo moderado de vinho é recomendável. Mas pediu-me que considerasse melhor o meu, digamos, estilo de moderação. Também não me pediu para parar com as bebidas. Sugeriu, contudo, a alternativa de uma “descansada”. Em primeiro lugar ele quer ver os índices caírem, em particular o do tal PCR.
Acho que ele também quer saber se sou dependente, seja de vinhos ou de qualquer outra bebida alcoólica. Por quase toda a minha vida adulta venho bebendo diariamente. Moderadamente, afirmo eu!
Portanto, decidi aceitar o desafio. Logo após ter retornado a Secretário, com uma senhora pulga atrás das orelhas, fiquei as duas primeiras semanas de dezembro a seco. Apenas água, água, sucos e sucos, café e chás e mais café e chás.
Não tive problemas, pois me submeto a esse “descanso” há muito tempo (e, se não me engano, já escrevi sobre isso aqui). Não, não sou uma dependente física do álcool, nada de tremedeiras. Até agora, estou conseguindo parar sem precisar que me tranquem num quarto.
Claro, que, principalmente nas refeições, sentia a falta da minha taça de vinho. Mas olhava o copo com água com muito carinho e seguia em frente. À noite, a saudade do vinho aumentava. Televisão não é a fogueira da minha caverna, para lembrar o Veríssimo. O escritor disse que a fogueira deve ter sido a TV do homem das cavernas. Ele ficava lá hipnotizado pelo fogo, assim como se faz hoje quando se assiste TV, esperando o sono chegar.
Bebo vinho por puro prazer. E o prazer, como ensina o filósofo espanhol Juan Antonio Rivera, é um fenômeno cinético, que consiste na viagem da falta de comodidade para a comodidade. Sem dificuldades, encontrei ótimos e cômodos substitutos.
À noite, costumo beliscar uma fruta, tomar umas duas taças de vinho e prosseguir na leitura do livro da vez.
Nas duas semanas de abstenção, à noite, substitui o vinho por chás e a minha leitura foi a de “Milênio”, do Manuel Vázquez Montalbán, que criou o detetive Pepe Carvalho.
Pepe me colocou à prova. Ele, além de detetive e gourmet, é um sabido bebedor. Pois, amiga, o detetive espanhol me ajudou muito nessas duas semanas. A nossa imaginação concebeu um paliativo astuto e sutil para resolver o divórcio entre a vida real e os nossos apetites desmedidos: a ficção. Através dela, somos mais, somos outros, sem deixarmos de ser nós mesmas. É uma espécie de droga que consumo sem moderação.
Nada de tremedeiras, alucinações, aranhas gigantes nas minhas costas. Ótimas noites de sono profundo, uma sensação de mais tempo sobrando, pois não tinha que provar desse ou daquele vinho, não tinha que tomar notas etc.
Há muito tempo, li uma entrevista com o mestre Maynard A. Amerine, professor de enologia da Universidade da Califórnia, em Davis. Ele pesquisou aspectos técnicos do cultivo da uva e da produção de vinho. Seu trabalho é considerado peça fundamental pela sucesso da indústria vitivinícola em todo o mundo. Morreu aos 86 anos em 98.
Pois o professor Maynard dizia que se, num mês, pudermos parar de beber uma semana, ou “descansarmos” um mês inteiro num ano, então podemos estar certas de que temos um relacionamento saudável com o vinho.
Se eu bebo regularmente, não custa tomar um ou dois cuidados. Estou consumindo agora de duas a três taças por dia. Sei que não vou sair viva desse mundo (só para lembrar uma música do cantor country Hank Williams: “I’ll never get out of this world alive”). Agora, o vinho está entre as coisas que fazem esse mesmo mundo mais palatável para mim.
Se algumas das leitoras for uma bebedora regular de vinhos (ou de qualquer outra bebida alcoólica), porque não faz um teste, um pit stop ao contrário: parar para desabastecer. É só uma semana por mês. Faça isso e em seguida anote as suas reações e conte tudo aqui para a Soninha

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