30.7.09

Paraísos artificiais

Talvez você já tenha lido: descobriram uma grande quantidade de cocaína em garrafas de vinhos. De 1020 garrafas do vinho boliviano Kohlberg, 952 continham cocaína líquida, o equivalente a 714 litros. Apenas 68 garrafas eram mesmo de vinho. A apreensão foi feita no porto de Varna, na Bulgária. A Vinos Kohlberg é uma das principais vinícolas bolivianas e exporta seus vinhos através do porto de Arica, no Chile.
A nota já correu o mundo e da forma como apareceu deixou-me a impressão de que pela primeira vez o vinho entrava no mundo das drogas. Contrabandear cocaína em formato líquido não é incomum: no início do ano um taxista londrino morreu após beber inocentemente cocaína contida numa garrafa de rum. Mas historicamente o vinho tem tido um papel de destaque nesse engodo, na maioria das vezes inocentemente.
Mas não faz muito tempo era legal consumir-se cocaína, morfina, heroína, ópio, anfetaminas etc. travestidos de poções medicamentosas, bebidas refrescantes, elixires salvadores ou vinhos compostos – destinados a todos os públicos, inclusive crianças. Quase todos eles foram grandes sucessos de vendas, sendo que alguns receberam até uma chancela papal.
Curioso e assustador é que alguns desses produtos ainda estão sendo comercializados legalmente, como veremos mais adiante.
Misturar ervas aos vinhos é coisa muito antiga. Os romanos já temperavam vinhos com ervas e antes deles os gregos também – esses inclusive utilizando a planta artemisia absinthum, ou losna ou sintro, erva-de-são joão, ou artemísia ou, por fim, absinto. Esses vinhos flavorizados eram tidos como curativos, particularmente indicados para problemas digestivos. Na Bavária, eram conhecidos como wermuthwein ou “vinho de wermuth”, nome alemão da artemísia e que chegou ao francês como vermouth e ao inglês como vermuth, o nosso vermute. É um dos precursores do Absinto, o destilado que fez sucessos (e grandes estragos) na França da Belle Époque.
O vinho boliviano foi “batizado” com cocaína líquida para lograr as autoridades aduaneiras. Ninguém pensaria, a essas alturas, em vender um vinho de cocaína. Mas em passado recente essa idéia resultou em grandes sucessos, pois, como vimos, é secular a tentativa de dar ao vinhos propriedades medicinais. E foi assim que o “Vinho de Coca” entrou no mercado, de meados do século 19 até início do seguinte. O nome era esse mesmo: “Coca Wine” ou “Wine of Coca’. Nos rótulos lia-se que era eficaz para a “fadiga da mente e do corpo”; bom para “nevralgia, insônia, desânimo”.
O Metcalf Coca Wine, feito de vinho, álcool e 30 gramas de erythroxylum coca (nome científico da planta da qual a cocaína é feita) era recomendado como um “tônico estimulante”, contra a fadiga, restaurador do apetite, adequado tanto para jovens, idosos e até crianças. A dose recomendada era: três copos ao dia. Num de seus rótulos, o fabricante, Theodor Metcalf, um próspero farmacêutico de Boston, EUA, explicava que “as folhas de coca têm sido utilizadas desde tempos primordiais pelos selvagens da América do Sul como remédio para quaisquer males, de uma simples dor de cabeça ou nevralgia...” (veja o produto e saiba mais sobre a Metcalf Coca Wine).
Enquanto o sucesso do Metcalf se limitava ao mercado americano, o Vin Mariani abafava em todo o mundo. Tônico criado por volta de 1863 por Angelo Mariani, um francês da Córsega, que se encantou com o potencial econômico da coca, era feito com vinhos de Bordeaux misturado a folhas de coca. O etanol do vinho agia como solvente do qual a cocaína era extraída, alterando os efeitos da bebida. Cada 30 ml de vinho continha 7,2 mg de cocaína. Foi tão popular em sua época que o Papa Leão XIII, que não saia do Vaticano sem ele, concedeu ao vinho de Angelo Mariani uma medalha de ouro. O aplauso do Papa era dividido com a rainha Vitória e o inventor Thomas Edison, entre outras celebridades, eram adeptas declaradas da bebida.
As crônicas da época afirmam que foi esse tônico (ou semelhantes) que inspiraram o norte-americano John S. Pemberton, em 1885, a criar uma imitação, o Pemberton’s French Wine Coca. Pemberton, como já se sabe, foi o criador da Coca-Cola. Quando, ainda em 1885, a cidade de Atlanta, origem do produto, estabeleceu uma legislação de temperança, um ensaio da Lei Seca que tomaria o país em 1919, Pemberton rapidamente criou uma versão não alcoólica do seu produto. Era uma mistura carbonatada onde se destacavam as folhas de coca e as nozes de cola. Irônico que apenas o álcool era proibido, mas não a cocaína.
Em 1904, os fabricantes removeram a cocaína do refrigerante, embora o nome “Coca” fosse mantido. Talvez seja a mais valiosa marca do mundo.
Quando escreveu sua biografia, “Confissões de um comedor de ópio”, em 1821, o inglês Thomas De Quincey criou um conceito perigoso: o do uso de drogas como recreação, fuga. Ele fala dos “prazeres” que o ópio lhe dava. E também das dores resultantes dessa dependência.
O livro foi um grande sucesso e aparentemente quem o leu e divulgou só registrou as partes dedicadas aos prazeres. Enquanto isso, de 1821 em diante, o desenvolvimento da farmacopéia acelerou-se.
Em 1862, a Merck começou a produzir cocaína e um dos seus primeiros advogados foi o jovem médico vienense Sigmund Freud. “Repetidas doses de coca não produzem o desejo compulsivo para que se use o estimulante repetidamente”. Pois sim.
A diacetilmorfina, também conhecida como heroína, foi primeiramente sintetizada em 1897. A descoberta foi feita por Felix Hoffman e Arthur Eichengrun, que umas duas semanas antes inventaram a aspirina. E, espante-se, por alguns anos era possível comprar heroína livremente em qualquer farmácia, enquanto para a aspirina uma receita se fazia necessária. Depois, entramos na era dos barbitúricos, começando com o Veronal em 1903, e das anfetaminas, que a Smith, Kline colocou no mercado em 1932 com o nome comercial de Benzedrina.
A “recreação” corria solta no início do século. A Stickney and Poor’s, empresa com mais de 150 anos, que ainda hoje vende temperos, colocou no mercado um xarope para ajudar no sono dos bebês. Ele continha ópio. Se não era o bastante, seus 46% de álcool dariam conta do recado, sem dúvidas. Caso o produto estivesse em falta, as mamães poderiam comprar o “Mrs. Winslow”, um xarope com 65 miligramas de morfina. Era tiro e queda.
A Benzedrina apareceu mais na forma de inalantes nos EUA entre 1940 e 50. E vendeu como água. O tratamento com o vaporizador National Vapor-OL incluía ópio. Era indicado para asma, mas na verdade transformou-se numa maneira de consumir ópio. E, para não nos estendermos demais, nossas avós dispunham até de dropes de cocaína para dor de dente.
(Veja aqui fotos e textos sobre essa série de produtos).
E não vamos esquecer do famoso Elixir Paregórico, uma tintura canforada de ópio, utilizada em casos de diarréia e como analgésico. Era um remédio caseiro entre os séculos 18 e 19. Mas seu uso foi regulado e o ópio substituído, pois o produto provocava dependência.
Elementos químicos do vinho podem até ter propriedades medicinais, mas a bebida jamais poderia suportar esse emprego. Os vinhos misturados a ervas tiveram em sua origem esse aspecto. Mas o que se quer vender hoje não é mais uma eventual qualidade curativa.
Achei uma notícia na internet sobre uma empresa inglesa, Mariani Amalgamated Ltda., que estaria para lançar “orgulhosamente” um vinho tinto feito com cocaína. O vinho seria produzido no Peru. A nota é de 20 de setembro de 2007. A nota afirma que a empresa não tem nada a ver com o “Vin Mariani”. Afirma também que as folhas de coca serão desnaturadas, ou seja: terá a sua natureza alterada. Se for assim, qual o motivo de utilizá-las? Veja a nota aqui. Vou continuar a pesquisar. Para mim, essa Mariani é mais uma a querer uma carona não do vinho, mas da cocaína e da fantasia prometida por ela.
O grande poeta francês Baudelaire, escrevendo sobre drogas em 1858, notou que elas representavam uma fuga para um “paraíso artificial”. Paraísos podem ser divertidos. Só que esse, em particular, além de falso, arruína a vida das pessoas.
Não precisamos nos preocupar com o paraíso. Afinal, quando tudo começou fomos expulsas dele, não é? E estamos vivendo numa boa desde então (sei, com altos e baixos etc.). E melhor ainda quando juntamos uma taça de vinho.

22.7.09

Está frio, está quente

Frio. Embora o chamem de “ouro líquido”, uma delicada delícia, extraordinária edição do néctar dos deuses, a doçura veemente e calorosa desse vinho raro, vem do gelo. É assim chamado: “Vinho do Gelo”, ou “icewine”, em inglês, uma tradução direta do alemão Eiswein, país tido como pioneiro desse estilo de vinho.
Pois essa preciosidade já está em produção em Santa Catarina, pela Vinícola Pericó, a 1.300 m de altitude, em São Joaquim, considerado o município mais frio do Brasil.
Porque frio, muito frio, é fundamental para se produzir o icewine. Para fazê-lo, deixam que as uvas já bem maduras congelem no vinhedo e só quando a temperatura chega perto dos 10º C negativos é que são colhidas, à mão, uma a uma, normalmente à noite para que o calor do dia não altere seu estado. As uvas são imediatamente prensadas: os cristais de água, devidamente congelados, ficam na prensa, enquanto o suco da uva, rico em açúcar, e outros elementos permanecem em estado líquido. Apenas esse suco, a essência concentrada da fruta, escapa da prensa e vai direto para o tonel, onde é fermentado. No final, temos um vinho intensamente doce e como alto nível de acidez, o que previne que se torne enjoativo e garante a sua longevidade. Em resumo: o processo de congelamento desidrata os frutos e concentra seus açúcares e ácidos, o que intensifica e acrescenta complexidade aos sabores do vinho resultante.
No início de junho a equipe da Vinícola Pericó registrou em seus vinhedos da fazenda Menino de Deus, Distrito de Pericó, São Joaquim, SC, temperaturas de 8º C negativos – o que tornou realidade a colheita de uvas congeladas, fazendo da vinícola a primeira do país a produzir o icewine.
Como a roda, não se sabe com segurança quem inventou o icewine. Na Wikipedia lemos que já se tinha notícia de uvas congeladas para a produção de vinho desde os tempos da Roma antiga. Mas os detalhes de sua produção são desconhecidos. Acredita-se que o primeiro “vinho de gelo”, depois dos romanos, foi produzido na Alemanha, em 1794. A partir do século XIX é que começam a surgir registros de safras e de produtos acabados do eiswein.
A partir dos anos 60, os eiswine alemães e austríacos começaram a ser aclamados internacionalmente. E uma década depois, os icewines canadenses surpreenderam o mundo pela sua excelência (e preços altíssimos).
As cepas tradicionalmente utilizadas são a Riesling, na Alemanha, e a Vidal, no Canadá, onde também utilizam a Cabernet Franc. Mas muitas outras são experimentadas em outras regiões do Novo Mundo, como a Seyval Blanc, Chardonnay, Kerner. Veja o que a Wikipedia escreve a respeito.
Muitos produtores de regiões onde a temperatura não consegue chegar à marca desejada congelam os frutos artificialmente num grande freezer, num processo chamado de cryoextraction (um termo francês para “concentração congelada”; cryo refere-se a temperaturas muito baixas). Essa prática é proibida na Alemanha e no Canadá, mas utilizada na Califórnia e Austrália, entre outros países. Essa versão é chamada ora de “icebox wine” ou “glaciovinum”.
Esses vinhos, porém, perdem em intensidade e complexidade para o verdadeiro icewine, um vinho licoroso natural, com grande quantidade de açúcar residual. Ele passa 60 dias fermentando, após o que é estabilizado e colocado em barris de carvalho francês. A Vinícola Pericó não pode ainda informar quando serão comercializados.
Um bom “vinho do gelo” é rico, viscoso, escorrega na língua, enche nossa boca de prazer e nos aquece como uma lareira, promovendo uma sensual experiência entre sua acidez e doçura. Os icewines feitos com a Vidal (ou Vidal Blanc) oferecem notas de frutas tropicais, como manga, pêssego, pêra, melão. Com a Riesling são mais minerais, mais ácidos, com aromas de limão, laranja, tangerina etc.
São vinhos que devem ser bebidos ainda novos, com menos de quatro anos depois de engarrafados, pois conseguem manter aromas e sabores de frutas frescas. Sirva-os frios, uma hora ou duas na geladeira, lá pelos 10º C.
Já que estamos falando de vinhos de sobremesa, logo devem entrar em cena ao final das refeições. Normalmente, os icewines aparecem apenas em meias garrafas. Sirva em de taças de vinho branco, mas apenas uns 60 ml.
Os “vinhos do gelo” combinam bem com patê, foie grãs, sobremesas como strudels, flãs, tortas, chocolate, bolos. Muita gente adora o contraste com o salgado quando os combina com queijos azuis ou cheddar.
Quente. Agora, se a leitora está preocupada com o peso, a cinturinha, mas faz como a Bridget Jones e não abre mão do seu Chardonnay, não se preocupe com experimentar o icewine. Vinho não tem colesterol, sódio ou gordura e poucos carboidratos. Uma ou duas taças por dia praticamente não afetam o ganho de peso. Um estudo feito pela Universidade de Harvard, em 1991, quando pesquisaram 138 mil mulheres durante 10 anos, revelou que o consumo de álcool não foi responsável por aumentos de peso. Ao contrário, no geral as mulheres analisadas perderam cerca de 15% do seu peso corporal, no período estudado.
Não deixou de ser uma surpresa, pois o vinho de fato acrescenta calorias. Porém, o nosso corpo trata o álcool como uma toxina. E, ao contrário da maioria dos alimentos, o vinho é processado pelo fígado e não pelo estômago, e rapidamente eliminado do nosso sistema. O fígado converte a maior parte do vinho em acetato (qualquer sal ou éster do ácido acético), que é liberado na corrente sangüínea. Muito pouco é transformado em gordura, pois o corpo queima esse acetato como um combustível. Além disso, acredita-se que os antioxidantes (como resveratrol) e os flavonóides do vinho possivelmente aceleram a decomposição da gordura.
Qualquer bebida alcoólica, inclusive o vinho, contém sete calorias por grama. Menos que a própria gordura, que tem nove e mais que as quatro calorias do açúcar. Uma taça de vinho tinto ou branco secos tem em média 110 calorias. Mas o total de calorias por taça depende também da quantidade de álcool e de açúcar residual.
E o álcool contribui com mais calorias do que o açúcar. Por exemplo, um vinho doce alemão (um dos citados eisweine ou icewines canadenses) feito com a Riesling tem em média apenas 7% de álcool. Quer dizer: muito menos calorias do que um vinho seco com 14% de álcool por volume.
Veja só no site da BBC a tabelinha que conta as calorias por tipo de bebida, inclusive vinhos. Uma taça pequena de vinho soma apenas 115 calorias.
Doces e vinhos doces formam uma combinação bem calórica. Eu substituo as sobremesas por vinhos doces. E estou ansiosa esperando pelos “vinhos do gelo” da Vinícola Pericó.
Da Adega
Leblon Jazz Festival
. Enquanto escrevo, o piano do genial Bill Evans me leva por caminhos de tão românticos que chegam a doer. Mas em seguida, sacudo a poeira com o ágil Erroll Garner, um clássico, pra lá de “oldie”, suingando sem parar. Pois gosto muito de jazz e não poderia deixar de lembrar que no sábado, dia 25, a partir das 13 h. vai acontecer o
Leblon Jazz Festival. Fecharão um trecho da Dias Ferreira (a veia cava do Leblon), entre a Guilhermina Guinle e a Ataulfo de Paiva para apresentações do grande guitarrista Victor Biglione, do Marcelo Camelo, vocalista e guitarrista do Los Hermanos, da cantora Mallu Magalhães, do saxofonista George Israel (do Kid Abelha) e de muitos mais. E vinho é o que não vai faltar, pois a butique de vinhos Confraria Carioca também estará presente com um belo estande, saciando nossa sede. Não falte.
Uma dica extra: não vá de carro. Como aconteceu ano passado, perto de 15 mil pessoas deverão estar por lá. E o improviso jazzístico começará no trânsito, com desencontrados solos de buzinas. Sem o carro, você poderá fazer o seu aquecimento calmamente no estande da Confraria. E voltar para casa sem problemas.
Menu Di Vino. Continua rolando a 9ª edição do Menu Di Vino. Desde o dia 16 (e até o dia 30, quinta-feira), a paulista
Vinheria Percussi está servindo um cardápio especialmente harmonizado com vinhos da vinícola chilena Maycas del Limari. Os pratos são criações exclusivas da chef Silvia Percussi, com os vinhos selecionados pelo sommelier e co-proprietário do restaurante Lamberto Percussi.
A
Maycas Del Limari é talvez o mais novo braço da Concha y Toro, a maior vinícola chilena. Está localizada no Vale do Limari, ao norte de Santiago e será representada nesse festival por dois tintos (Cabernet Sauvignon e Syrah) e um branco (Chardonnay). A Wine Spectator fez uma resenha elogiando a Maycas e seus vinhos. Veja aqui. Para reservas ligue para (11) 3088-4920 ou veja no site.

17.7.09

Fiascos

1. O presidente Obama levou um simpático presente para o seu colega italiano, Giorgio Napolitano, na conferência do Grupo dos 8, (os chamados países ricos), realizada entre 8 e 10 de julho, em L’Aquila, Itália. Ofereceu uma caixa feita com madeira do assoalho do famoso Salão Oval, da Casa Branca. A caixa continha uma variedade de vinhos norte-americanos. Entre esses a garrafa de um Vermentino 2008, variedade branca, originariamente italiana, muito utilizada na ilha da Sardenha, na costa ocidental da península. A Vermentino é uma variedade branca, no caso cultivada e produzida pela vinícola Raffaldini, em Wilkes County, na Carolina do Norte. A garrafa foi muito bem escolhida, pois os Raffaldini fazem vinho na Itália desde 1348. Só no século passado é que a família decidiu experimentar o Novo Mundo, criando uma filial norte-americana.
Só que agora entra na história um apressado repórter. Citou erradamente o produtor da vinícola, que teria dito ser a “uva Vermentino é uma variedade da Sardenha, portanto é nativa da ilha da sardinha”. Veja a nota original. A sardinha correu por conta do repórter.
Sardenha, pelo que sei, teve entre seus colonos os Sardos, dos quais deriva a sua língua, o sardo. Embora seja uma ilha cercada pelo Mediterrâneo e farta de peixes por todos os lados, sardinha é o que menos conta por lá. Saiba mais sobre o sardo e a Sardenha.
Enfim, uma senhora mancada.
2. Sempre soube que aquela gorda e empalhada garrafa de Chianti se chamava (e continua se chamando) “fiasco”. É uma palavra que nos coloca às portas de um fracasso, de um vexame, de um embaraço. Sua origem é italiana e em sua raiz também sempre significou frasco, garrafa. Mas como fiasco, a garrafa, chegou a significar também fiasco, o vexame? Encontrei uma explicação aparentemente plausível num dicionário etimológico online, o Etymonline. Segundo seu fundador, o autor, crítico e jornalista Douglas Harper, “fiasco” (o vexame) já era uma gíria teatral por volta de 1855. Pouco depois, deixou o âmbito do teatro e ganhou um sentido geral, consolidando a expressão “far fiasco” (literalmente fazer uma garrafa), cometer um vexame, fracassar. Contudo, porque “fazer uma garrafa” chegou a significar fiasco?
Douglas oferece duas teorias. A primeira envolve os célebres fabricantes de vidro de Veneza, artesões mestres na técnica de moldar o vidro por meio de sopro e movimentos manuais, resultando em peças belíssimas, exclusivas e valiosas. Quando alguma coisa dava errada, a peça era descartada para uma reutilização como uma garrafa ordinária. Nesse caso, o artesão fare il fiasco, tinha “feito uma garrafa”, no sentido de fracasso que tem até hoje.
A segunda teoria, a preferida de Douglas, é que havia no passado a expressão italiana fare Il fiasco (“fazer uma garrafa”), utilizada num jogo onde as pessoas que perdiam pagavam a próxima rodada, ou a garrafa de vinho seguinte, o que é bem plausível
Ou seja, nem sempre o fiasco é uma perda total, mas apenas um erro, algumas vezes descomunal. Um comediante de cuja piada ninguém riu, um Hamlet que se confunde ao recitar o “ser ou não ser” ou um Chianti empalhado. Aliás, empalhado para que a garrafa conseguisse ficar de pé, pois foi mal feita. Alguma coisa deu errada quando o artesão soprou o vidro. E... fare il fiasco.
3. Passamos das garrafas de vinho os que servem a bebida. Dizem que a primeira citação a um deles está no primeiro livro do Pentateuco, o Gênesis. Fala da prisão do padeiro-mor, do copeiro-mor pelo Faraó. José, também preso, interpreta o sonho do copeiro-mor o que leva à sua restauração como o responsável pelo serviço de vinhos no palácio do soberano egípcio.
No Livro de Jó existe também uma referência ao copeiro-mor do Inferno, uma besta gigantesca, Behemoth.
Mas existe uma terceira referência, talvez até mais antiga que a da Bíblia, na mitologia grega. A encontramos logo em Homero, na Ilíada. O primeiro copeiro-mor, encarregado de servir água, vinho e principalmente o néctar aos deuses, em particular ao supremo Zeus teria sido Hebe, filha de Minerva, esposa do deus dos raios (Hebe não era filha direta de Zeus, pois Minerva a concebeu logo que tocou numa folha de alface; nas minhas saladas alface é o que não falta, mas ainda não emprenhei).
Mas eis que entra em cena Ganímedes, filho do rei Tros, que deu nome à cidade de Tróia. Em seu tempo foi considerado o mais belo jovem do pedaço. Zeus um dia o avistou e caiu de amores por ele. Transformou-se numa águia e o raptou, levando-o para o Olimpo. Ganímedes transformou-se numa companhia de cama e mesa de Zeus. Tornou-se imortal e foi nomeado copeiro-mor, em lugar de Hebe, para desespero de Minerva.
Na antiga Roma, boticularius era o título do encarregado das bebidas entre os ricos e poderosos. Essa origem latina resultou no francês bouteiller, que originou em inglês primeiro boteler e por último butler.
Em português, temos escanção, a pessoa encarregada de servir vinhos (em particular nas casas nobres). Ela deriva do frâncico “skankjo”, através do francês “échanson”, em todos os casos apontando para a “pessoa versada em bebida”. Hoje, seria simplesmente um sommelier.
Desses três lendários copeiros, o da história de José é um grande fiasco em termos de caráter: prometeu a José falar por ele para o Faraó e, depois de liberto, resolveu deixar pra lá. Do monstro de Jó nem vamos comentar.
De todos, se salva Ganímedes. Trabalhou tão bem que, em sua homenagem, Zeus o colocou entre as estrelas como Aquário, a constelação zodiacal. Ele continua lá, carregando água (e certamente outras bebidas).
E se alguém pensou em alguma troça para as preferências sexuais de Zeus e do jovem troiano, pensou bobagem. Quem cometeria esse fiasco? Acho mesmo que foi Homero o responsável por fazer com que, heróis, mortais e imortais, reis e rainhas, deusas e deuses saíssem do armário. Todos são filhos de Zeus, não é mesmo?

3.7.09

De termômetro na mão

Um frio de lascar, aqui na Serra. Ou pelo menos uma forte sensação de frio. O que é bom para os vinhos que guardo na minha improvisada adega (um grande vão de escada, bem escuro e protegido, com práticas prateleiras de madeira). O que me lembra das temperaturas de serviço dos vinhos. Dois críticos do New York Times, Eric Asimov (de vinhos) e Tony Cenicola (culinária) reclamaram do (mau) costume de servir vinhos brancos “estupidamente” gelados.
Eric Asimov, inclusive, reclama que os norte-americanos têm o hábito de resfriar e beber os brancos em temperaturas baixas demais. Ele acha que os Estados Unidos são um país que “ama coisas geladas”. Seu colega de jornal, Tony Cenicola, lembra que a temperatura pode fazer a diferença entre um vinho comum e um grande vinho. Eric Asimov explica que “a ciência deixa claro que aumentar a temperatura de serviço de um vinho (branco, no caso) permite que vários componentes de sabor possam evaporar-se e, assim, serem percebidos, contribuindo grandemente para o prazer de nosso paladar”.
A questão não envolve apenas os vinhos brancos. Todos os vinhos podem beneficiar-se (e nós também) com a correta temperatura de serviço. Utilizo uma tabela apresentada em The World Atlas of Wine (“Atlas Mundial do Vinho”, 5ª edição, ISBN 1 84000 332 4).
Lembram os autores do Atlas, os mestres Hugh Johnson e Jancis Robinson, que o nosso sentido de olfato (e em grande parte o nosso sentido de gosto) é sensível apenas aos vapores. “Os vinhos tintos têm em geral maior peso molecular e são por isso menos voláteis – ou aromáticos – dos que os brancos”.
O objetivo de servir um vinho tinto “chambré” (à temperatura ambiente) é de torná-lo aquecido ao ponto em que seus elementos aromáticos começam a evaporar-se. Quanto mais sólidos, substanciais, esses tintos, mais altas devem ser as temperaturas de serviços. Já tinto leves, como o Beaujolais ou o Chinon, podem ser tratados como brancos: são bem voláteis. “Por outro lado, um tinto bem maduro pode precisar da temperatura ambiente, da sua mão aquecendo a taça e possivelmente da própria boca para volatilizar seus complexos elementos”.
Os taninos, explicam os autores, são muito mais óbvios em temperaturas baixas. “Por isso, quanto mais tépido servimos um tinto jovem, mais macios, mais generosos e envolventes serão seus sabores”. Outra boa dica: “Por exemplo, podemos criar uma ilusão de maturidade num jovem Cabernet ou num tinto de Bordeaux, ao servi-lo um pouco mais aquecido, o que aumentará a sensação de sabor e reduzirá sua adstringência. Os tintos com a Pinot Noir ou os borgonhas tendem a ter menos taninos e são naturalmente mais aromáticos, o que explica a longa tradição de servir os tintos da Borgonha um pouco mais frios do que os de Bordeaux”.
Eis aqui um apanhado da tabela do Atlas. Todas as temperaturas estão em graus centígrados e sugerem as marcas de serviço ideais para uma gama bem representativa de vinhos. Os limites são: de 4º (temperatura de uma geladeira), passando pelo nível ideal de uma adega (10º), até 18º, acima da qual temos a chamada “temperatura ambiente”.
Os brancos:
Muscadet (7º); Chablis (9º); Grand Cru Chablis (10-12º); Macon (9º); os melhores brancos da Borgonha e de Graves (12-14º); Gewürztraminer e Pinot Gris (6-8º); brancos de Bordeaux (8-10º); Sancerre/Pouilly (7,5-8,5º); Sauternes (9-11º); Gros Plant (4-6º); Alsace Riesling (7-9º); Jurançon (7-9º); brancos do Ródano (10-12º); Sylvaner (6-8º); Aligoté (4-6º); Tokaji (4-6º); Champagne não safrada (6-9º); espumantes como o Sekt e a Cava (4-6º); os melhores de Champagne (8-10º); Eiswein (5-7º); bons brancos alemães e austríacos (8-10º); os melhores secos alemães (10-12º); os melhores vinhos doces alemães (12-14º); Liebfraumilch e que tais (4-7º); doces do Loire e Chenin Blanc (5-8º); Frascati (6-8º); Asti (4-5º); Orvieto 6-8º); Soave (8-10º); Vinho Verde & Rias Baixas (6-7º); Verdichio (8-10º); brancos da Hungria (10-12º); Moscato e Moscatel 94-6º); Fendant (7-9º); Chenin Blanc sul-africana (7-9º); Tokaji Aszu (11-13º); Retsina (4-6º); Chardonnay (7-10º); os melhores Chardonnays da Califórnia e da Austrália (10-13º); os melhores Moscatos e Moscatel (4-7º); Sauvignon Blanc da Nova Zelândia (7-9º); Sauvignon Blanc da Califórnia (9-11º); Riesling (6-9º); vinhos maduros com a Semillon Blanc do Hunter Valley, Austrália (12-14º); Riesling do Vale do Barossa, Austrália (7-9º); vinhos rosados em geral (6-10º).
Os tintos:
Chinon (10-12º); tintos da Borgonha (14-16,5º); Beaujolais Nouveau (9-11º); Cru Beaujolais (11-14º); tintos do Ródano (12-14º); os melhores tintos do Ródano (14,5-16,5º); tintos do Languedoc-Roussillon (12-14º); Fino & Manzanilla (8-10º); Porto Tawny (10-12º); Cream Sherry ou Jerez Creme (12-14º); tintos genéricos de Bordeaux (14-16º); Amontillado (10-12º); Montilla (10-12º); Madeira (12-14º); Cahors (14-16º); Madiran (14-16º); vinhos finos de Bordeaux (16-18º); Bandol (15-17º); Valpolicella (10-12º); Chianti (12-14º); Chianti Classico (14-16º); os melhores tintos portugueses (16-18º); tintos da Sicília (12-14º); Barbera/Dolcetto (12-14º); Supertoscanos (15-17º); Barolo (15,5-17,5º); tintos da Puglia (13-15º); Ribera Del Duero & Priorato (16-18º); Rioja Reservas (15-17º); Valdepenas (10-12º); tintos chilenos (14-16º); Lambrusco (7-9º); Dole (10-12º); Zinfandel leve (12-14º); tintos argentinos (16-18º); Pinot Noir da Califórnia, da Austrália e do Oregon (14-17º); Pinot Noir da Nova Zelândia (13-15º); Pinotage (15-17º); os melhores Cabernets e Zinfandels da Califórnia (16-18º); Tannat uruguaio (14-16º); Liqueur Muscat (10-12º); os melhores Shiraz e Cabernets australianos (16-18º).
O crítico Eric Asimov diz que não sugere que fiquemos com um termômetro na mão para lá e pra cá tomando a temperatura da taça. Seria, de fato, uma senhora trabalheira. Os brancos e os tintos sempre um pouco mais frios do que manda a tabela.
Você pode aquecer uma taça com a sua mão, como dissemos acima, e ir domando o seu vinho até chegar à temperatura do seu gosto. No caso dos tintos, se achar que estão muito quentes, não esqueça e levar a garrafa de volta para o balde com gelo (a maneira mais rápida de resfriar um vinho).
E não esqueça também que, no passado, quando as adegas dos castelos tranquilamente ficavam constantes nos 10º C, os vinhos chegavam ao salão de jantar lá pelos seus 12, 14, 17º C. Era essa a temperatura ambiente. Isso no hemisfério norte. Agora, temos que recorrer aos baldes com gelo e até às geladeiras.
No caso dos tintos, devemos considerar que sele ele sair do climatizar com 10º e pode levar até algumas horas para sua temperatura atingir, digamos 14º. Jancis Robinson sugere que coloquemos a garrafa numa tina com água morna. Ou até mesmo utilizemos um microondas (tomando cuidado para tirar eventuais itens de alumínio cápsula).
De qualquer modo, será sempre útil ter um termômetro por perto. Se o caso é conseguirmos o máximo da bebida (e o máximo de prazer para nós), acho que não é um problema.
Da Adega
Cave Geisse em primeiro. O espumante brasileiro Cave Gesse Terroir Nature chegou em primeiro lugar, inclusive, à frente de grandes champagnes francesas, num teste cego promovido pela SBAV Brasília. Quatro espumantes nacionais e mais quatro franceses foram degustados. E o Cave Geisse levou 75,66 pontos, à frente da Moët Chandon Imperial (2º), da Taitanger (3º), da Banaut Grand Cru (4º). Em 4º também ficou a brasileira Dal Pizzol Champenoise. Casa Valduga Extra Brut, Chandon Brut Reserva, outras nacionais, ficaram respectivamente em 5º e 60 lugares. A francesa Veuve Clicquot ficou em último. A Cave Geisse é produzida pela
Vinícola Cave de Amadeu/Geisse, na região de Vinhos de Montanha de Pinto Bandeira, município de Bento Gonçalves, RS.