31.10.06

Análise sensorial dos vinhos

Para muita gente, muita mesmo, crítica de vinhos se resume a uma análise sensorial. Muitos, mas muitos mesmo, sugerem que o vinho só pode se avaliado em seus termos, ou seja: que a única coisa que realmente importa quando tentam determinar se um vinho é “bom ou não” é a sua combinação de aroma, textura, sabor, acidez, estrutura de taninos e complexidade.
O resultado desse tipo de análise sensorial (ou crítica de vinhos) é uma nota com três ou quatro linhas e um escore numérico. E, pronto, está feito o trabalho do crítico.
Não há dúvidas de que esse enfoque tem muito de verdadeiro. A análise sensorial é o coração da crítica de vinhos. O que está na garrafa importa muito. Mas não é a única coisa que importa. E quem não concorda com isso pode ser considerado pelo menos ingênuo dos contextos, dos ambientes em que se vive a experiência do vinho.
O entendimento, a avaliação e o pleno prazer de um vinho depende de muitas camadas desse contexto, cada uma delas ajudando a construir um quadro completo da bebida. E que camadas e que contexto seriam esses?
Os sentidos. Os analistas sensoriais (os críticos de vinho) começam colocando um pouco de vinho na taça. Fazem-na girar. Apreciam a cor, a viscosidade e os brilhos através do cristal. Inalam o vinho profundamente e avaliam seus aromas. Depois o bebem para sentir sua textura na língua e sentir seus sabores. Depois o engolem (ou cospem, se forem degustadores profissionais) e cuidadosamente avaliam aromas e sabores que ainda ficam na boca. Essa é a raiz de toda a apreciação de vinhos. Mas não é tudo. Falta alguma coisa.
Tipicidade. O mais teimoso dos críticos admitirá que uma avaliação apropriada do vinho compreende pelo menos uma camada adicional ao contexto puramente orgânico.
O conhecimento da variedade de uva utilizada na feitura do vinho e de onde elas cresceram permite ao provador avaliar melhor o vinho. O crítico poderá, ao menos, analisar se esse vinho é típico daquela uva e se é uma expressão do lugar onde ela cresceu. Mas faltam ainda mais camadas.
Humanidade e História. Além da garrafa e da uva, além da geografia da origem, todo vinho encerra sem dúvidas um contexto humano. Alguém preparou o solo e podou as vinhas. Certo que é mais de um alguém. Todos os vinhos têm uma história humana, a das pessoas que os criaram e cuidaram. Para entendermos completamente o vinho que provamos precisamos também considerar essa história.
Claro que o consumidor comum não tem obrigação de saber sobre quem fez o vinho, nada além do que está no seu rótulo, que muitas vezes não reconhece ou consegue pronunciar. Pode nunca saber da história de duzentos anos de uma família inteira de vinicultores. Ou a história pessoal de um produtor que começou no campo, colhendo uvas com as mãos. Essas coisas não são essenciais para o prazer de beber-se um vinho.
Mas são para mim. E deveriam ser para quem se considera um sério adepto da bebida. Uma crítica de vinho sem a história de quem fez e de onde veio o vinho é, em minha opinião, um mero exercício de juntar adjetivos (nem sempre inteligíveis) e um daqueles números, o placar final, a indefectível nota.
Cultura. Claro que a amiga já ouviu muitas vezes a frase: “Vinho é cultura”. Não poderia ser outra coisa. A bebida de reis e faraós, o salário dos soldados romanos, um sacramento secular, o ganha-pão de monges medievais e muito mais.
Na maioria dos lugares com uma história de mais de quatrocentos anos, a identidade dos seus vinhos está definitivamente emaranhada com as desses lugares. Os nomes (talvez complicados) dos vinhos franceses, italianos e alemães identificam ao mesmo tempo esses vinhos e suas cidades.
Quando colocamos um pouco deles em nossa taça estamos na verdade participando da evolução da cultura de um determinado lugar e de uma certa época.
Pense só: por que os Pinot Noir da Nova Zelândia, da Califórnia e da Borgonha têm sabores diferentes? Para responder a essa questão você tem que saber um pouquinho sobre as características do solo e do clima de cada um desses lugares e das leis que regulam a produção de vinhos em cada um deles e das práticas e tradições incorporadas pelos vinicultores dessas regiões. O produtor do vinho pode introduzir algumas diferenças estilísticas entre os vinhos, mas com freqüência elas são muito mais profundas do que essas práticas.
Ensopado de cordeiro e Chianti. Muscadet e ostras. Rioja e tapas. Essas combinações de vinhos e comidas não foram inventadas por nenhum chef, não resultam de nenhum experimento culinário. São produtos de um lugar específico e de uma época. Antes que o mundo do vinho ficasse globalizado, a maioria das pessoas bebia apenas os vinhos de sua vila, cidade ou, talvez, de suas regiões. Não surpreende, portanto, que aqueles vinhos tenham se apresentado com complementos perfeitos para as cozinhas e paladares locais.
Portanto, não é possível que os críticos de vinhos e mesmo os amantes da bebida ignorem a importância de entendermos de onde e quando vem o vinho no contexto da cultura mundial. Mas falta ainda uma camada nesse contexto.
Emoção e memória. Todas nós que gostamos de vinho tivemos, temos e vamos continuar a ter nossas experiências “perfeitas”. Aquele vinho no piquenique pra lá de simples, ao lado do namorado, aquela garrafa comprada na venda perto de casa resultaram num momento mágico. A luz da lua, o amor de sua vida (naquele momento) e o vinho que a cada gota parecia até melhor do que a hora desfrutada. São taças que você nunca esquecerá, mesmo com um novo namorado. Nunca deixe de fazer piqueniques.
Pois essa é a camada final do contexto que tentamos descrever. Ela compreende nossa psicologia, emoções e memória. Os melhores vinhos que provei foram quase sempre nas melhores companhias.
As amigas nunca me viram analisar sensorialmente um vinho na base de adjetivos e notas numéricas. Eu busco sempre um contexto que englobe os sentidos, as pessoas, a terra, as culturas, a história, a comida e a emoção. E dessa maneira não apago de minha memória vinhos fabulosos e namorados sofríveis. E vice-versa.

Sinais de mudança

Um amigo acaba de me presentear com um Cabernet chinês na certeza de que eu torceria o nariz. Não paro de ler sobre bons Chenin Blanc da Índia, sobre vinhos da Romênia, da Croácia, Grécia, Hungria, México, sem falar de conhecidos recém-chegados: os vinhos argentinos, chilenos, uruguaios, brasileiros, neozelandeses. E até da Inglaterra! Faz tempo que China e Índia produzem vinhos. A novidade é que indianos e chineses os estão consumindo mais e mais e os produzem com mais qualidade.
Meu amigo espantou-se quando disse que bebi com prazer o tal vinho chinês: um vinho honesto, uma demonstração de como equipamentos e técnicas modernas de produção se expandiram, resultando em produtos simples, baratos e decentes – em qualquer ponto do planeta.
O próprio presente do amigo já demonstra que alguma coisa está acontecendo. Noutros tempos eu ganharia um Bordeaux. Mas o chão de um sistema que parecia tão firme começa a tremer: vem aí uma reviravolta no mundo dos vinhos.
Tanto na Índia quanto na China o consumo de vinhos vem crescendo aceleradamente, em gordas taxas anuais de dois dígitos. Imaginem só uma fração dos bilhões de habitantes desses dois países em idade legal de beber transformando-se em fiéis consumidores de vinhos. Seria como jogar o Jô Soares num bidê cheio de vinho. Não sobraria uma gotinha.
Mesmo desconsiderando esses bilhões de novos admiradores de vinho, o mundo irá precisar de novos consumidores. Isso já está acontecendo se a França continuar a perder consumidores dentro de casa. Ela já foi o país que mais consumia vinho. Mas o francês hoje está bebendo 50% menos vinho do que em 1960, fato que está provocando uma pequena guerra civil entre produtores, governo e comerciantes. O aquecimento global é outro ator importante nessas mudanças: ele promete prejudicar bastante a produção do sul da França, sul da Itália, de toda Napa, Califórnia, e de toda a Espanha.
Essa revolução pode ser sentida também na mídia especializada, com as revistas bem estabelecidas, como a Wine Spectator, já sentindo os efeitos dos blogs. Existem na web hoje cerca de 20 milhões de blogs. E uma já influente parte desse novo meio é dedicada a vinhos. Só que seus autores e leitores apresentam atitudes e expectativas bem diferentes a respeito do vinho do que as adotadas hoje pelo coração da indústria do vinho (grupos de consumidores, críticos, restauradores, comerciantes). Vejam o que o filme “Sideways” promoveu na América: uma inesperada corrida atrás dos Pinot Noir. Vejam o crescimento dos vinhos orgânicos e biodinâmicos. O novo consumidor respeita, mas não adota os hábitos dos mais velhos ou do crítico laureado.
Sim, os recém-chegados também podem produzir vinhos simples, de qualidade e baratos. E daí? Mudanças acontecem sempre. E serão sempre bem-vindas. Então, leitor, brinde com vinho esses sinais. Mas evite os tênis chineses.

24.10.06

Perguntas e Respostas

O título já diz tudo: aproveito para atualizar a pilha de perguntas que chegam via e-mail.
Pergunta: Leitora quer saber se é verdade se aquela concavidade na base da maioria das garrafas de vinho serve mesmo para ajudar no serviço da bebida, criando uma “pega” para o vasilhame. E também se é verdade que quanto mais profunda essa depressão melhor é o vinho, pois ela teria relação com pressão.
Resposta: Essa concavidade é uma lembrança dos tempos em que o vidro das garrafas era muito frágil e ainda feito artesanalmente por sopradores. Foram eles que criaram essa depressão pensando em fortalecer a garrafa. Esse recurso foi muito útil principalmente para as garrafas de Champagne, onde a pressão interna é muito alta e constante. O vidro moderno é muito mais forte e as garrafas são produzidas industrialmente, por máquinas, sem a necessidade dessas concavidades. Falam também que elas ajudam a reunir sedimentos do vinho ou facilitar servir a bebida (isso se o leitor tiver polegares muito fortes). Bobagem. A verdade é que são mantidas por uma tradição puramente estética, embora não duvide que, quanto maior for a concavidade mais forte parecerá a garrafa (e o vinho). Logo: uma questão de estética e de marketing.
Pergunta: Dois leitores brigam pela mais antiga região demarcada de vinhos: um diz que é a França, outro que é a Alemanha.
Resposta: Ninguém ganhou. A mais antiga região demarcada do mundo foi criada em Portugal, no Douro, e tem 250 anos. Vamos lembrar que na antiguidade Portugal exportava vinhos para o Império Romano. Os vinhos franceses vieram muito depois.
Selecionei essa questão de propósito, pois o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto vai realizar uma degustação de seus vinhos no Rio no próximo dia 6 de novembro, a partir das 16 horas, na Casa de Cultura Julieta de Serpa, um palacete no Flamengo. Um importante acontecimento que vai marcar justamente os 250 anos dessa primeiríssima região demarcada. Para degustar as preciosidades a serem apresentadas, os chefs Francesco Carli (do Cipriani), Frédéric de Maeyer (do Eça) e Mónica Rangel, (do Gosto com Gosto, de Visconde de Mauá) criarão entradas e sobremesas especiais.
Pergunta: O vinho das garrafas magnum é exatamente o mesmo das garrafas comuns? Ou seja, o leitor acha que o vinho colocado nas garrafas de 1,5 litros não é o mesmo do que vai nas garrafas de 750 ml.
Resposta: Leitor, é o mesmo vinho, pode ter certeza. E é sempre o mesmo vinho o que vai para as meia-garrafas ou para as de 187 ml (também chamada de Pony ou Split – utilizadas quase que exclusivamente para espumantes) ou para qualquer um tamanhos de garrafas de vinho. Alguns produtores usam a magnum ou a jeroboão (3 litros), a Balthazar (12 litros) ou a Soverign (50 litros) ou para qualquer dos 13 tamanhos dessas garrafas, pois acreditam que o vinho nelas amadurece mais lentamente (ou seja: um recipiente mais apropriado para a guarda dos vinhos). Além disso, a produção dessas garrafas é muito pequena e por isso conseguem preços mais altos junto aos colecionadores.
Pergunta: Qual a melhor maneira de removermos uma rolha que suspeitamos esteja muito saturada, perigando de esfarelar-se dentro da garrafa?
Resposta: Em primeiro lugar, eu esqueceria imediatamente o saca-rolhas comum. Depois, tentaria utilizar aquele outro, de duas lâminas. É só colocar cada lâmina entre a rolha e o vidro do gargalo da garrafa e delicadamente forçar os dois dentes até quase o limite do cabo (ou da empunhadura, onde os dentes estão fixados). Com jeito, torcer para direita e esquerda e ir puxando. A rolha costuma sair.
Outra maneira é utilizar o saca-rolhas de injeção de gás: com uma agulha através da rolha injeta-se gás inerte na garrafa, resultando na expulsão da tampa. Uma versão mais comum é uma “bombinha” que, também através de agulha, injeta ar que acaba fazendo sair a rolha (e às vezes explodindo a garrafa).
Contudo, talvez nada disso dê certo. Então, relaxe. Tente tirar com o saca-rolhas comum. O que de cortiça se desfizer dentro da garrafa pode ser retirado com um filtro de papel (aquele utilizado para coar café) ou uma gaze de musselina. Nesse caso, não esqueça do decantador.
Pergunta: Leitora quer remover rótulos de vinho para utilizá-los como referência. Já tentou com água quente e fria, sem bons resultados. Existem produtos específicos para essa tarefa?
Resposta: O caso é que alguns rótulos são colados (cola comum) e outros adesivados (cola industrial, mais potente). Os colados são mais fáceis de retirar, pelo menos para mim. Coloco a garrafa em água morna por 20-30 minutos e, pronto, o rótulo se solta.
Os adesivados são bem mais difíceis. Precisamos de alguma coisa que derreta o adesivo. Tento com o secador de cabelo, coloco a garrafa no forno do fogão (numa temperatura bem baixa) por uns 10 minutos e depois uso uma lâmina (uma gilete) e experimento com muita calma a retirada do rótulo.
O segredo principal é tentar tudo isso primeiramente no contra-rótulo. Se funcionar nele, funciona no principal. O único problema é se a leitora resolver colecioná-lo também.
Pergunta: O que significa VDQS?
Resposta: “Vin Delimite de Qualité Superieure” (mais ou menos “Vinho Delimitado de Qualidade Superior”) é uma designação exclusivamente francesa relativa à qualidade dos vinhos entre “Vin de Pays” e “Appellation Contrôlée”. A categoria VDQS responde por menos de 1% da produção de vinhos na França e serve mais como um campo de testes para pequenas regiões viníferas, muitas das quais poderão ganhar, mais tarde, o status de Appellation Contrôlée. “Vin de Pays” é o vinho regional, uma categoria criada para encorajar a produção de vinhos que sejam superiores em qualidade ao “Vin de Table” (vinho de mesa), o mais básico nível de vinhos no país (apenas 12% da produção nacional). Continuando na mesma letra, temos também o VDN, abreviação de “Vin Doux Naturel”, um vinho que, como diz o nome, seria doce pela própria natureza. Só que, interessante, eles são adocicados artificialmente. Isto é: o açúcar contido na uva, que viraria álcool pela ação dos levedos, tem a sua transformação interrompida pela introdução de alguma aguardente. O fermento morre e sobra vinho com muito açúcar.
Pergunta: Leitora quer saber se o crítico Robert Parker Jr. é mesmo a pessoa mais influente no mundo dos vinhos atualmente.
Resposta: Poderia citar uns 50 nomes que hoje possuem influência direta sobre o estilo de vinhos que consumimos. Eles são ora vinhateiros, produtores, escritores, críticos, comerciantes ou empresários. O que temos de considerar é a palavra “direta”. Por exemplo, temos o empresário Georg Riedel, criador das famosas (e caríssimas) taças Riedel, que revolucionaram a qualidade dos copos onde os vinhos são servidos. Pois o famoso Riedel tem grande influência apenas na maneira através da qual o vinho é apresentado. Mas nenhum controle sobre o estilo dos vinhos.
Quanto a Robert Parker: não se pode negar que ele continua a ter enorme influência nos paladares dos consumidores, em particular dos norte-americanos e na maneira com que alguns vinhos são feitos ao redor do mundo, principalmente os Cabernet Sauvignon e os clássicos blends de Bordeaux. Advogado, transformou sua paixão pelo vinho em ganha-pão ao lançar em 1978 a sua newsletter (“Wine Advocate”) com avaliações de vinhos. Ele criou uma escala de 100 pontos para pontuar os vinhos, um sistema digamos simplístico que caiu no gosto dos norte-americanos. Uma nota 90 ou acima é sinal de status e venda certa para o vinho – o que leva produtores a serem acusados de adaptar seus estilos para agradar ao paladar de Parker. Ninguém pode negar o poder da influência desse norte-americano. Mas ela vem preocupando muitos produtores, que agora se distanciam de Parker. Sua influência vem lentamente diminuindo.
Mas para mim a mais importante pessoa a moldar do mundo dos vinhos hoje é você, sou eu, somos nós os consumidores.

19.10.06

Château Picard 2267

Sim, duas garrafas de um vinho da safra do ano 2267 foram vendidas por US$ 6.600,00 (R$ 14 mil). Mais caras do que o Château Petrus 2005 (US$ 3.300,00 a garrafa), considerado o vinho mais caro do mundo atualmente. Um absurdo de caras principalmente considerando que as garrafas do Picard 2267 estavam vazias. Sim, compraram apenas as garrafas. Mas como isso é possível? É que no mundo da ficção, amiga, tudo é possível. E, como veremos mais adiante, no mundo dos vinhos também.
Essas duas garrafas do século 22 pertenciam ao Capitão Jean-Luc Picard (na vida real, o ator Patrick Stewart), comandante da nave estelar Enterprise, da célebre série “Jornada das Estrelas”.
Elas aparecem como parte do cenário de uma seqüência festiva do 10º longa metragem da série, Nêmesis, filme de 2002. E conseguiram recentemente essa alta cotação num leilão da Christie’s de Manhattan, Nova York.
Só sei disso porque meu sobrinho, o Guilherme, é mestre em ficção científica. Sabe tudo sobre a “Jornada nas Estrelas”. Ele me revelou que o Capitão Picard nasceu e foi criado no vinhedo da família, em Labarre, França. Seu pai é um excelente vinicultor e cuida dos vinhos com seu filho mais velho, Robert. Labarre é um lugar naturalmente ficcional, embora exista um bocado de La Barre: nos departamentos de Jura, de Haute-Saône, na Vendéia (La Barre-de-Monts) etc.
Essas garrafas faziam parte do leilão 40 Anos de Star Trek: a Coleção, realizado de 5 a 7 de outubro passado para celebrar o quadragésimo aniversário da série. O leiloeiro reuniu mais de mil lotes com material da série na televisão e no cinema, com figurinos, objetos de cena (como as garrafas do Château Picard), cenários, modelos das várias Enterprises e das naves alienígenas e das estações espaciais. O destaque no leilão foi a cadeira do primeiro comandante da nave estelar, o Capitão James Kirk, estimada entre 8 e 12 mil dólares.
Mas, diacho, porque estou falando de garrafas vazias de vinho do século 22? Existe um mercado para elas, colecionadores vidrados pela “Jornada das Estrelas” e devidamente enricados que as compram. Com essas garrafas, objetos de cena etc. embarcam num mundo imaginário. Nada de mais nisso. Se gostassem de vinhos, as garrafas deveriam de estar cheias, penso eu.
Essa nota poderia servir apenas como uma curiosidade. Mas ela também funciona como uma lembrança que infelizmente nada tem de ficcional. Um símbolo que se origina do filme onde elas aparecem: Nêmesis.
Nêmesis é a deusa grega da ética, da retribuição, da justiça distributiva, que lutava contra, por exemplo, o excesso de riqueza ou de felicidade de uns e a extrema pobreza e o infortúnio de outros. Estaria desempregada no Brasil.
Pois no filme, a história é principalmente a das terríveis conseqüências que teria a trama de substituir o Capitão Picard, o nosso “mocinho”, por um clone. Claro que o “bandido” é o clone, cujo objetivo era o de levar à Terra uma forma de irradiação capaz de eliminar toda a vida em nosso planeta, me conta o Guilherme.
Onde entra a Nêmesis? Temos um Capitão Picard bom, que vive para salvar a Terra e planetas dessa e de outras galáxias. E tempos um clone seu: um Picard mau, capaz de nos destruir. A justiça distributiva, que impede excessos, equilibra tudo, funcionou: o Picard mau é destruído à muito custo.
Pois temos também clones no mundo dos vinhos. São as uvas e fermentos geneticamente modificados. É sempre bom sabermos o que estamos comendo e, no caso, bebendo. Um simples suco à base de soja, por exemplo, pode conter um elemento estranho, algo que não foi devidamente pesquisado e que ninguém pode afirmar que vai se entender adequadamente com o nosso organismo. O pequeno momento de prazer proporcionado pelo suco pode muito bem roubar anos de nossa saúde.
O próprio Picard, o verdadeiro, era criticado pelo seu irmão vinhateiro, Robert, por beber synthehol, nome genérico lá naquelas alturas para bebidas alcoólicas artificiais, cujos efeitos intoxicantes eram todos ilusórios e não químicos (isso no vasto repertório do mundo criado pela série). Segundo seu irmão, Picard teria perdido o seu paladar pela “coisa verdadeira”, o vinho, pelo fato de beber synthehol, a ilusão.
Você deve ainda lembrar o bafafá que deu (e vai continuar a dar) essa história do governo aprovar o plantio de soja transgênica. Como é assunto que resulta na qualidade do que colocamos na mesa para comer e beber, que mexe com nosso prazer e saúde, achei que as amigas deveriam se interessar.
Frankstein. Esse você conhece: é aquela criatura, feita de partes de outros humanos, e que, ao final, se volta contra seu criador.
Parece um grão como qualquer outro. Mas inseriram nele um ou mais elementos que o transformam numa outra coisa, num transgênico – um alimento geneticamente modificado, resultado da transferência de um gene de um organismo para outro. Aqui também se opõem dois lados.
Cientistas descobriram como alterar diretamente os genes (unidades hereditárias ou genéticas situadas nos cromossomos e que determinam as características de um indivíduo ou de um alimento), permitindo que adquiram vantagens possuídas por outras espécies de plantas, animais ou humanos. Por exemplo, uma variedade de milho geneticamente modificada pode conter o gene tirado de uma bactéria que produz um tóxico químico que combate lagartas, larvas, dando ao grão uma defesa contra insetos nocivos. Essa tecnologia pode também promover colheitas mais volumosas que não necessitem de muitos pesticidas. Ou, ainda, conseguir plantas que se desenvolvam melhor sob condições difíceis, como as secas.
A oposição acha, porém, que a engenharia genética é uma tecnologia radical, que ultrapassa as barreiras genéticas entre humanos, animais e plantas. Ao combinar genes de espécies diferentes e não relacionadas entre si, comprometendo os códigos genéticos, criam-se novos organismos que passarão suas alterações adiante, através da hereditariedade. Os cientistas hoje estão retalhando, inserindo, recombinando, rearranjando, editando e programando material genético. Os genes de animais e mesmo humanos estão sendo inseridos em plantas ou animais, criando formas transgênicas nunca imaginadas. Pela primeira vez na história os seres humanos estão se tornando os arquitetos da vida. Engenheiros biológicos criarão dezenas de milhares de novos organismos nos próximos anos. Assim, a engenharia genética causa preocupação de ordem ética e social sem precedentes, fora desafios sérios para o meio ambiente, a saúde humana e animal e para o futuro da agricultura.
Onde está a Nêmesis?
Sempre cismamos com a tentativa de alterarem geneticamente as uvas. Mas será que o vinho feito de uvas geneticamente modificadas terá o mesmo sabor, o mesmo valor? Será que os alimentos em geral serão mais seguros? Os consumidores têm o direito e o dever de ter dúvidas e de saber mais. Na Inglaterra uma pesquisa consultou 37 mil pessoas. E 93% delas acharam que a tecnologia genética é movida por lucro e não pelo interesse público. Para eles, só produtores agrícolas (e seus fornecedores, os laboratórios) é que lucrariam com essa prática. Nós, consumidores, ficaríamos com os prejuízos.
Na Europa, Austrália e Nova Zelândia há séria oposição ao uso de uvas e fermentos (para uvas) geneticamente modificados. Mas nos Estados Unidos, o americano já consome soja e milho transgênicos. E recentemente colocaram no mercado um fermento (o ML01) que pode ser utilizado legalmente nas uvas (e, portanto, na produção de vinhos).
Ou seja, daqui um pouco vamos ter um clone do Capitão Picard em forma de uva e, naturalmente, sem que nada nos seja informado nos oferecerão um vinho dessa variedade mutante. Será uma Cabernet Franc ou Francstein? Será que passaremos algo parecido com o synthehol consumido na Enterprise?
Viu, amiga, como o mundo é pequeno e redondo, por mais distantes que sejam as galáxias? Começamos com um vinho do século 22, que não existe, mas que consegue aqui e agora um preço estratosférico.
Continuamos com a luta do Capitão Picard contra o seu clone. E já que falávamos de vinhos e seres falsos, aproveitamos o embalo (ou o empuxo, em se tratando de naves interestelares), para relembrar um perigo que ronda aqueles que, como nós e o irmão de Picard, o verdadeiro vinhateiro, insistimos em beber a “coisa verdadeira”.
Para dúvidas sobre bebidas e viagens especais clique para a Soninha Melier (e o Guilherme) via soniamelier@terra.com.br

16.10.06

Hermitager

Volto a uma história, já contada aqui, apenas para cumprir o prometido na coluna passada, completando a série de “casos” envolvendo a uva Syrah. É com essa uva que são feitos os tintos mais famosos da mais famosa “appellation contrôlée” do norte do Ródano, o Hermitage.
Um dos contos de Cross Channel (“Através do Canal” – não sei se já saiu uma edição brasileira desse livro) do premiadíssimo inglês Julian Barnes (“O Papagaio de Flaubert”, “Metroland”, o recente “Um toque de limão”, entre outros) é sobre duas solteironas inglesas que sem querer se envolvem com a Syrah. Compram uma propriedade no Médoc, em Bordeaux, para lá passar o resto dos seus dias admirando a beleza da paisagem ao longo do rio Gironde, com suas imponentes e históricas propriedades, como Latour e Margaux.
Mas recuperar as videiras e voltar a produzir um bom vinho seria outra e importante atividade da dupla. Resolvem estudar a matéria a fundo e começam a conhecer a realidade da cultura local. Na época, início do século XX, Bordeaux sofria com os desastrosos impactos da phylloxera, a praga que devastou quase todos os vinhedos não só da França, mas em quase toda a Europa. A recuperação foi muito difícil. Safras boas e vinhos bons eram acontecimentos improváveis. Como saída, uma parcela de vinicultores bordaleses e principalmente os comerciantes, importadores e engarrafadores adotaram como prática misturar ao vinho bordalês o Hermitage – um vinho potentíssimo, encorpadíssimo, de vida longuíssima. O hábito gerou até o verbo hermitager, um sinônimo de fraude. Na época, os vinhos eram vendidos em barris e só engarrafados depois de devidamente batizados com a Syrah do Ródano. As inglesas recusam-se ao embuste e conseguem com muito trabalho e seriedade produzir vinho legítimo, com o sabor da sua terra. honrando a sua geografia.
Mas o embuste acabou? Se antes era hermitager hoje temos o parkerizar, onde os vinhos, utilizando-se de técnicas e manipulações as mais variadas, é levado a ter mais taninos, mais álcool, cor mais profunda, mais sabores de frutas, mais corpo. Tudo isso para cair no gosto do maior crítico de vinhos do mundo, Robert Parker Jr. E, assim, ganhar as notas mais altas, ter o preço elevado e vender mais.
Não que Parker compactue com essa prática. Mas os produtores sabem de seus gostos e da influência de suas notas. Logo, “parkerizam” seus vinhos. É o “hermitager” contemporâneo.
O nome Hermitage (“Ermida”), título do conto de Barnes, já mostra o gato com rabo de fora. Ermida em francês é “ermitage”, sem o H. O nome do vinho ganhou essa marca inglesa desde o século XVII: um rastro dos que praticavam o “hermitager”. Hoje, “parkerizar” é prática do mundo globalizado. Existe em qualquer hemisfério com o vinho perdendo os valores conferidos por sua terra, o que foi evitado pelas solteironas do conto de Barnes.

2.10.06

Como você escolhe um vinho?

Decidir sobre a compra de um vinho não é nada simples. Numa loja, você fica diante de uma quantidade e variedade imensa de garrafas, centenas de rótulos, uvas, cores, estilos, safras, regiões e preços bem diferentes.
O preço pode limitar a sua escolha. Mas hoje as ofertas são inúmeras para qualquer nível de preço. Você, então, apela para o quê? Regiões, estilos, um rótulo um pouco mais ousado, a dica do vendedor?Afinal, o que nos leva a comprar um vinho do qual nunca ouvimos falar? Um blogueiro americano, Tom Wark fez essa mesma pergunta aos seus leitores, através de uma pesquisa online. Eis as respostas.
Para 33% deles, o produtor do vinho (a vinícola ou o vinhateiro) é o mais importante. Para 31%, é a uva, a varietal, o que vale mais. A região vem em terceiro lugar, com 18%, e o preço logo em seguida, com 17%. Curiosamente, o rótulo só é importante para 1% dos leitores. Contudo, rótulos com animais, por exemplo, vendem como água nos EUA. Esse resultado talvez possa ser atribuído ao nível de informação dos leitores do blog.
Quanto ao preço: para um vinho de até 15 dólares (R$ 32,00), 42% disseram que a uva é o que conta. Mas a partir daí tudo muda. Para os vinhos entre 15 e 30 dólares, 52% escolhem pelo produtor. Acima de US$ 30,00, 71% também confirmaram o produtor como primordial. Nos EUA (ou pelo menos para os leitores do blog) nota-se a influência do produtor e, portanto, do poder de uma marca.
Intrigado com a pobre colocação do item região, o blogueiro insistiu e fez uma pergunta extra: “Você está disposto a pagar mais por vinhos simplesmente porque eles são de uma região em particular?” E 67% disseram que sim e 33% que não. Os primeiros declararam-se como tendo um conhecimento mais profundo sobre a bebida.
Nesses tempos de globalização, de grandes conglomerados, o mundo dos vinhos também sofre o impacto da produção de massa, de marcas cuja origem passa a não ter importância.
Porém, o que interesse mesmo no vinho é a sua diversidade, onde a região, o seu solo de origem é primordial. É o tal do “terroir”.
Por séculos, a cultura global do vinho foi feita em torno de sua identidade geográfica, onde nasceu, cresceu e foi feito. Talvez porque a consciência de lugar ainda seja o processo mais básico e natural do aprendizado humano. Saber onde estamos é fundamental para a nossa segurança psicológica. Mas a aventura de conhecer novas plagas também é fundamental.
“Uma vez que tenhamos provado e conhecido 20 ou 30 varietais (quase 100% dos vinhos no mercado), o passo seguinte na escala educacional é a região”, afirma Roger Dial, editor da Appellation America, importante site sobre vitivinicultura nos EUA. “É impossível conhecer todos os produtores de vinhos com uva Merlot. O mais fácil é começar a distinguir entre Merlots de Bordeaux, da Itália, do Chile etc.”
Confere com a minha experiência pessoal. Numa loja de vinhos que tive em Petrópolis, RJ, cerca de um terço dos clientes (os mais “sabidos”) comprava vinhos pela região, outro terço pelo preço e os demais humildemente pediam nossa opinião. Eu os adorava.
Acho que há muitas maneiras para resolver essa questão. Para começar, a mais simples (e quase sempre eficiente) é começar a perguntar aos atendentes das lojas (de um supermercado até uma loja especializada, digamos, numa determinada região).
Você tem a impressão de que gosta de um determinado tipo de vinho (tinto, branco ou rosado etc.) e tem um limite de preço. Já é uma grande ajuda para o atendente - que com certeza lhe dará uma dezena de sugestões: uma delas será do seu gosto e do tamanho do seu bolso. Pronto, não foi difícil.
Outra dica é entrar para um clube ou uma confraria de vinhos. E lá você começará a aprender, aprender provando vinhos dos mais variados estilos – e descobrir quais os seus preferidos.
A Impexo, um importante importador e exportador de vinho, com sede no Rio e filial em São Paulo oferece um Clube do Vinho. Veja aqui.
Basta você se cadastrar para receber uma newlettter relacionada ao setor vinícola, com informações sobre degustações e promoções dos vinhos vendidos pela casa. A poderosa rede Pão de Açúcar tem as suas “Confrarias Pão de Açúcar”, que se propõem a “desvendar os mistérios da degustação de vinhos”. Você vai a qualquer filial da rede e se informa com o atendente da seção de vinhos como aderir a um desses grupos. Essa rede tem uma das maiores e melhores seções de vinhos do país, para esse tipo de loja. O que não é surpresa, pois a direção da casa entregou a parte de vinhos (das compras, à seleção e à promoção e educação) a um dos maiores especialistas em vinhos do Brasil, o crítico e historiador Carlos Cabral. Ele é um renomado especialista e historiador de vinhos (é autor da imperdível Presença do Vinho no Brasil) e fundador da mais antiga confraria de vinhos do país, a SBAV – Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho, com sede em São Paulo (e hoje com filiais em vários estados).
Visite o site do Pão de Açúcar e saiba mais como inscrever-se nessas confrarias.
Existem sites na internet que se apresentam como clubes de vinho. É o exemplo do winept.com.
De qualquer modo, é mesmo difícil para qualquer um estabelecer a diferença, digamos, entre um vinho da uva Merlot de R$ 20,00 e outro de R$ 120,00, da mesma uva, do mesmo produtor e da mesma região. A primeira impressão é de que o mais caro é melhor.
Nem sempre, amiga. Existe uma fórmula fácil de aplicar: o custo de produção mais a quantidade quase sempre determinam o preço dos vinhos. Pagando muito por uma garrafa de vinho não significa que ele será bom. Pode apenas significar que o seu custo de produção foi alto – e, claro, quem vai cobrir esse custo é você. Considere também que esse custo não dita a qualidade do vinho.
É por isso que muitas vezes as pequenas vinícolas oferecem ótimos vinhos por preços bem mais convidativos.
Então, leitora, não se impressione com os preços e não pare de considerar a incrível variedade dos vinhos. Experimente o máximo que puder – de preferência aprendendo o que cada região tem a oferecer. E, sempre que possível, pergunte.
Hoje, a oferta de informações sobre vinhos na mídia é mil vezes maior do que nos tempos em que eu tinha a loja. Você tem todas as chances de fazer uma compra muito mais bem informada.