31.12.06

De poça em poça

Tentei comprar pão na vendinha do seu Plínio, aqui perto de casa, em Secretário. Mas era 1º de janeiro e feriado para todos, inclusive para seu Plínio. Na volta, de mãos abanando, busquei assunto para a coluna, pulando de poça em poça, pois a chuva não para.
Vinho e Tratamento de Beleza. Taí um bom assunto para o Bolsa. Duas repórteres americanas perguntaram a estrelas de cinema quais os seus segredos de beleza. E colocaram tudo num livro, The Black Book of Hollywood Beauty Secrets . E lá descobrimos que Teri Hatcher toma banho com vinho tinto. Fiquei chocada, desperdiçar essa boa bebida na banheira? Teri Hatcher, 42, é quem faz a confusa e divertida divorciada Susan Mayer no Desperate Housewives. Indicada para melhor atriz num Emmy e um Globo de Ouro, ela já foi a Kiki Tango no filme Tango & Cash, Lois Lane, na série Lois & Clark: The New Adventures of Superman, entre outros papéis.
Melhor não. Já andei falando da Caudalie, o famoso spa francês que utiliza vinhos e seus subprodutos (cremes, óleos etc.) e é freqüentado por famosíssimas estrelas de cinema. Dei o nome de algumas delas aqui e uma até botou advogado atrás da Soninha. Não deu em nada, pois nossa referência era legítima. Curioso: elas fazem tratamento mas não querem que ninguém saiba.
Diferente da Teri, que conta tudo o que faz para continuar linda. Mas gastar todo aquele vinho numa banheira, menina?
Fico com a Susan Sarandon. Para ela, a felicidade é a verdadeira arma da beleza.
Splash, pisei numa poça!
Château Al Qaeda. Quem sabe apelar para sensacionalismos? Agora mesmo, no Natal, a polícia peruana apreendeu em Chiclayo, ao norte de Lima, o Champagne Bin Laden.
Custava apenas um dólar a garrafa. Pensa o quê? Que o espumante foi retirado em razão do seu nome? Nada disso: seu fabricante é clandestino e sua venda ilegal. Além disso, a polícia suspeita que o produto pudesse até cegar seus consumidores. Tenho certeza que, se o vinho continuasse no mercado, os franceses iriam protestar pelo uso ilegal da palavra champagne.
O mundo dos vinhos pode cegar, sem dúvidas. Na Itália, o produtor Lunardelli, vende vinhos com fotos de Hitler, Mussolini, Stalin, entre outros, desde 1995. Fatura direitinho, legalmente. Um casal norte-americano ligado à área de entretenimento lançou o vinho Jesus Juice, “Suco de Jesus”. No rótulo, um Michael Jackson desnudo, apenas com uma tanga, fazendo as vezes de crucificado.
Splash, splash! Pronto, acabei de ensopar minhas botinhas, mais meias e pés. Amanhã, é a lama, é a lama. É pau, é pedra! Diacho, as águas de janeiro já estão fechando o meu verão e ainda não encontro um bom assunto para a coluna.
Tá todo o mundo fazendo. Quem sabe não falo do questionário que o site de vinhos do casal De Long está passando para os seus leitores? Na linha das aberrações do Champagne Bin Laden e dos vinhos do Lunnardeli, o site pergunta quais foram os vinhos mais “ultrajantes” de 2006. É um bom assunto, que vez por outra abordo aqui.
No mundo dos vinhos, além da batalha de egos, temos também a moda da permutação: cantores, atores, modelos, socialites, treinadores de futebol, todos fazem ou se ocupam com a bebida. É um troca-troca já conhecido: cantores atuam, atores cantam, esportistas assinam grifes etc. O vinho é apenas uma nova fronteira. Assim, temos o da Madonna, do Francis Ford Coppola e até o da atriz pornô Savanna Samson (seu vinho, o Sogno Uno, recebeu nota 91 do supercrítico norte-americano, Robert Parker).
O casal De Long submete os seguintes rótulos:
Diesel Farm Rosso di Rosso 1999 – criado pelo magnata dos jeans pra lá de caros, o italiano Renzo Rosso, fundador da Diesel. É produzido por Roberto Cipresso, o mesmo que faz o “Sogno Uno”, de Miss Samson. Custa US$ 225,00, em NY.
Royal DeMaria 2000 Chardonnay Icewine. É feito pelo agora ex-cabeleireiro, Jospeh DeMaria, no Canadá. Custa hoje US$ 30 mil. Porém, perto da última unidade, DeMaria promete que seu preço chegará a US$ 500 mil por uma garrafa de 375 ml. O mais caro icewine “normal” (nota 100 de Robert Parker) é o Hermann Donnhof Riesling Eiswein Oberhauser Brucke 2001: US$ 250,00.
Gold – é um Chardonnay com a garrafa carregada de “flocos” de ouro 24 quilates, numa nova criação do vinhateiro americano Jackson Woodbridge, de Napa. O rótulo fala de líderes tribais, reis, lendas, batalhas, mistérios etc. – mas nada indica a safra, nem a região. Apenas que é feito na Austrália. Vende por 30 dólares. Nem tudo que reluz...
Mike Ditka Kick Ass Red. Já falei dele aqui: Mike Dikta, um famoso ex-treinador de futebol americano (aquele em que a bola parece um zepelim), ganhador do Super Ball, a Copa do Mundo deles, também lançou seu vinho. Claro que em parceria com um vinicultor da Califórnia. Seu nome poderia ser “Vinho Legal Tinto de Mike Ditka”. Ou, ao pé da letra, “Tinto Pé na Bunda de Mike Ditka”. Um pé na bunda e você ainda paga 50 dólares.
E tem mais o Kiss This, que comemora os 30 anos da banda de rock “Kiss”. É produzido pela americana Celebrity Cellars – que tem vinhos dedicados a Madonna, Pink Floyd, Rolling Stones etc. Cada beijo custa US$ 100,00.
Eu acrescentaria o espumante austríaco Kattus Hochriegel 2004, cuja garrafa vem adornada com 49 diamantes, e custa US$ 13.200,00. Um joalheiro vienense levou 38 horas para colar os diamantes na garrafa, que será vendida num leilão, no próximo dia 22.
Vinhos? Tá todo mundo fazendo. Melhor assoviar o Let’s do it, de Cole Porter. Ou Façamos, na comportada versão do Chico Buarque.
Enfim, cheguei em casa, completamente encharcada. Depois dos splashes, os atchins vêm aí, sem dúvidas.
Desejo às amigas entradas bem melhores que as minhas. Se tiverem sugestões para a coluna, por favor cliquem aqui para o Bolsa ou para a Soninha no soniamelier@terra.com.br

27.12.06

Não é água, não

Pensei que estava dançando até que alguém pisou na minha mão. Pois é, com muito álcool você vai dançar, de alguma maneira. O Natal na minha casa é pelo menos seis ou sete vezes melhor do que em qualquer outro lugar. Enquanto a maioria vê apenas um Papai Noel, vemos sempre seis ou sete. W. C. Fields (1880 - 1946), o famoso ator cômico e bebum.
O álcool está entre nós há milhares de anos. Não tem cheiro, cor ou sabor. E é venenoso, com exceção do etílico – tolerável em pequenas quantidades. O problema está nessas pequenas quantidades. Quando consumido, ele passa do nosso estômago para o trato digestivo de onde entra na corrente sangüínea, minutos após o ser bebido. Boa parte (90%) é absorvido em uma hora. Viaja por toda a parte de nosso corpo, especialmente o cérebro, o fígado e os rins. Já na corrente sangüínea, o fígado começa a eliminá-lo através dos rins. Uma pequena quantidade sai via nossa respiração, lágrimas, saliva e transpiração. Mas remédio algum vai ajudar a eliminá-lo mais rapidamente.
Quando você acha que o seu trabalho está interferindo com a sua bebida, quando você não consegue chegar até o fim dessa coluna, dorme e se cobre com o jornal, cuidado.
O álcool é um sedativo do nosso sistema nervoso central. Quanto mais bebemos maiores serão esses efeitos sedativos. Tudo vai depender de quanto bebemos, da rapidez com que bebemos e de nosso tamanho e quantidade de gordura.
Se não fosse pela azeitona de seu Martini, você morreria de fome? Com um ou dois drinques, ficaremos mais à vontade socialmente. Em quantidades ainda maiores, nossas funções mentais vão desacelerar, perderemos a memória, o poder de julgamento, a coordenação motora, teremos a fala enrolada, a visão turva, náuseas, vômitos e eventualmente até a morte.
Você acordou sentindo-se estranho porque não percebeu que não tinha ficado de ressaca?
A ressaca é causada por desidratação. O álcool é diurético e aumenta a saída de líquidos do nosso corpo, que fica seco e nos faz mais sedentos. Bebidas escuras (vinho tinto, uísque, conhaque) têm mais congêneres (subprodutos da fermentação), que contribuem para as piores ressacas. Se beber muito e rápido, maior será a quantidade de álcool no sangue e maiores os seus efeitos tóxicos no cérebro e a irritação em nosso estômago. Daí que beber de estômago cheio, bem forrado, vai ajudar a reduzir a taxa de absorção do álcool.
Seus amigos acham que você "fica estranho" sempre que o encontram sóbrio? Para cada drinque, um copo d’água. Sempre acompanhe a bebida com algo para comer. Beba devagar. Dilua seus drinques. Não misture bebidas. Antes de ir para cama beba pelos menos uns três copos d’água. E Feliz 2007. Você não sabe se fui eu ou você que disse isso?

26.12.06

Milhões de bolhinhas para você

Sabe mesmo qual a diferença entre Cava, Prosecco, Sekt e Crémant? Prefere seu Champagne brut, sec ou demi-sec?
Já que vamos brindar o 2007 daqui a pouco e quase que certamente com um espumante seria interessante falarmos um pouco mais sobre essa maravilhosa bebida.
Aquele monge. Claro que você já ouviu falar em Dom Perignon, um monge beneditino francês do século XVII tido como o “inventor” do champagne. Acontece que os espumantes já existiam muito antes do monge. O que ele fez foi melhorar muitos dos procedimentos utilizados na produção desse famoso espumante. Ele chefiava as adegas da Abadia de Hautvillers, em Epernay (região de Champagne). Aplicou suas idéias de colher as uvas seletivamente, durante um período de dias e não todas de uma vez; e também de misturar vinhos de diferentes variedades e vinhedos. Seus métodos são seguidos até hoje pela casa Moêt & Chandon (seu vinho principal tem seu nome) e por outras.
Mas de onde? Todo o Champagne é espumante. Mas nem todos os espumantes são champagne. O nome champagne pertence por tradição e direito aos espumantes feitos numa região do nordeste da França centrada em torno da cidade de Reims, bem perto de Paris. É uma área mais fria, as uvas são colhidas menos maduras e mais ácidas.
O nome Champagne, inclusive, foi protegido pelo Tratado de Versalhes, que deu fim à 1ª. Guerra Mundial. Só que os Estados Unidos já eram o que são hoje: não honraram o Acordo de Kyoto, sobre o meio ambiente, como não assinaram oficialmente o Tratado de Versalhes. Daí que muitos produtores americanos chamam o seu espumante de champagne – uma prática que a União Européia muito recentemente conseguiu abolir (é o que declaram).
A região de Champagne produz quase que 10% de todos os espumantes do mundo. Os borbulhantes franceses produzidos fora dessa região são chamados de crémant. Portanto, crémant du Jura, crémant d’Alsace, crémant de Bordeaux são Appellation d’Origine Contrôlée para suas respectivas regiões.
Nos Estados Unidos, os espumantes se originam principalmente da Califórnia e de Nova York e são produzidos (inclusive por muitas casas francesas) a partir de uvas colhidas mais maduras e, por isso, resultam mais frutados.
A Espanha é a terra dos deliciosos Cava, produzidos em sua maioria na região de Penedés, ao sudoeste de Barcelona. São produzidos pelo mesmo método de Champagne: uma segunda fermentação dentro da garrafa.
Na Itália, o nome é Spumante. Se for feito com a uva moscatel é chamado de Asti. O norte do país produz uma penca deles: o doce Asti, o seco Franciacorta e o frutado e nosso muito conhecido Prosecco.
Na Alemanha são chamados de Sekt, na maioria das vezes originários dos Vales do Reno e do Mosel. Temos Sekts feitos pelo mesmo método de Champagne ou pelo sistema do tanque (método Charmat). O alemão é o maior consumidor de espumante do mundo. Sekt é uma redução popular que substitui o “caminhão” Qualitätschaumwein-(“vinho espumante de qualidade”). Em vez de você pedir: “Me dá um Qualitätschaumwein”, pede um Sekt. Bem melhor, né?
Temos ainda a Austrália, com o Hot-Red (que tem uma cor rubi), feito com a uva Shiraz.Agora, você não pode esquecer dos nossos espumantes. Esse ano vou provar um prosecco da Casa Perini, feito em Garibaldi, RS. Confio muito nessa produtora, cuja enóloga, Vanessa Stefani, foi jurada (a convite da Associação Brasileira de Enologia) no VI Concurso La Mujer Elige, realizado em Mendonza na Argentina, em outubro. Considere alguns dos mais premiados nesse concurso. Veja aqui.
Por falar em uvas. Já viu que os espumantes se utilizam de diferentes uvas.
Quando no rótulo de um champagne você encontrar a palavra Cuvée, ela se refere a um “blend”, a uma mistura de vinhos. Em Champagne, as grandes produtoras criam os seus estilos exclusivos misturando vários vinhos antes de chegar ao produto final, ou seja: produzindo uma segunda fermentação dentro da garrafa, o chamado Méthode Champenoise. Cuvée deriva de cuve, tanque, denotando “o conteúdo de um tanque”.
Fora de Champagne, cuvée é também utilizado para vinhos parados (sem borbulhas). Pode significar vinhos com uvas de diferentes vinhedos, ou mesmo uvas de variedades diferentes.
Em Champagne, na grande maioria das vezes, temos um cuvée de três uvas: Pinot Noir (que dá corpo e estrutura ao vinho); Chardonnay (frescor e delicadeza) e Pinot Meunier (aromas de flores e de frutas).
Fora dessa região outras uvas são utilizadas, como vimos acima.
Os estilos. São três: o Blanc de Noir (Brancos de Pretos). As cascas da uva tinta Pinot Noir são prensadas de modo a ficar pouco tempo em contato com o suco – e daí não impregna-lo com a sua cor. O resultado, claro, é um vinho branco feito com uma uva preta.
Blanc de blanc: um branco de branca – que apenas utiliza a Chardonnay, uma uva branca e de cascas brancas.
Por fim, temos o Rosé: um vinho rosado feito com a adição de vinho tinto ao branco. Ou deixando-s as cascas da uva tinta um tempo maior em contato com o suco branco.
Os métodos. O segredo é prender as famosas bolinhas dentro da garrafa. Elas são formadas pelo dióxido de carbono, o gás resultante da fermentação. Para isso, os produtores se utilizam de dois recursos.
O histórico, muito trabalhoso, que implica numa segunda fermentação na garrafa, é chamado de Méthode Champenoise, Classique ou Traditionelle. O suco das uvas fermenta em tanques de aço inoxidável por duas ou três semanas. Em seguida é misturado com açúcar e fermento (chamado liqueur de tirage) e colocado em sua garrafa com uma tampa metálica. A segunda fermentação, que vai acontecer de um a três anos, captura as famosas bolhas na garrafa.
Quando finalmente esse sedimento é retirado, rapidamente o produtor coloca uma dose de açúcar na garrafa e só então a garrafa é arrolhada. É essa dosagem de açúcar (chamada de açúcar residual) que vai decidir pelas várias categorias da bebida, a partir da sua doçura.
Veja abaixo, tal como o Oxford Companion to Wine nos ensina (o que temos aí são gramas de açúcar residual por litro):
Brut nature: 3 gramas de açúcar;
Extra brut: 6 gramas;
Brut: 15 gramas;
Extra sec (extra seco): 12 a 20 gramas;
Sec (seco): 17 a 30 gramas;
Demi-sec (meio seco): 33 a 50 gramas;
Doux (doce): 50 gramas.

Como vê, amiga, demi confuso, não?
Já o método Charmat (nome do francês que o patenteou) é mais econômico e rápido. O vinho é submetido a uma segunda fermentação em tanques de aço e engarrafado sob pressão.
Para entender os rótulos. A maioria dos espumantes (isso vale particularmente para os de Champagne) não traz o ano da safra nos rótulos. São os NV (Non-vintage), pois dentro da garrafa temos uma mistura de vinhos de safras diferentes. Muitos NV são misturas de 30 ou 40 diferentes vinhos.
Mas quando no rótulo temos o registro do ano, o Champagne é Vintage, significando que aquele ano em particular resultou em uvas espetaculares. E o espumante é feito apenas com as uvas daquela safra.
Um Champagne Non Vintage reflete o estilo do produtor, enquanto o Vintage espelha o ano.
Cuvée, já vimos, é o termo francês para mistura, “blend”. A expressão Prestige cuvée significa que o produtor usou as melhores uvas de uma determinada safra: é um espumante de longa vida e normalmente custa mais.
Por falar nisso, os mais caros espumantes são os que têm as menores bolhinhas, cerca de 50 milhões delas, presas dentro da garrafa sob um pressão de 90 libras (o pneu de um carro médio leva umas libras). O que explica porque os vidros e as rolhas das garrafas de espumantes são mais grossos dos que os das demais garrafas.
Mas os espumantes não precisam amadurecer, ficar algum tempo na adega antes de serem consumidos. São vendidos prontos para beber.
Devem ser bebidos em torno dos 8º C. E abertos assim: segure a rolha com o seu polegar e uma toalha. Vagarosamente, gire a garrafa (e não a rolha). Não deixe a rolha se ejetada. É perigoso. Quanto mais silenciosa é sua retirada mais perfeito e elegante foi o seu trabalho.
E, pronto, dê vivas ao ano novo que chega. Ou a qualquer coisa que você ache que vale a pena brindar. Até mesmo o espumante que você escolheu. Você e todas as minhas amigas merecem.

19.12.06

Evite as tarântulas

Já planejou o que vai servir na ceia de Natal? Já sabe que vinho ou vinhos deverão ser oferecidos para combinar com os acepipes?
Olhe, já li sobre como combinar vinhos e insetos! Pensa que foi algo ligado a treinamento de boinas verdes? Nada disso: o redator da revista especializada Wine Spectator, Nick Fauchald, relata uma experiência sua em 2004, quando até gostou de escorpião bem torradinho com Sauvignon Blanc. “Nada mau”, confessou. Ah, teve também uma tarântula que foi bem com um Chardonnay amanteigado. “Combinam muito bem!”, revela o herói. Pois ainda temos grilos com Pinot Noir. Eu estaria dependurada no lustre da sala, berrando por socorro, pedindo um copo de Listerine, pelo amor de Deus. Isso é matéria para os enochatos. “Ontem, comi uma centopéia com Cabernet, não qualquer um, mas um vero Bordeaux; a bichinha perfeitamente tostada. Experiência única, imperdível”. Fala de boca cheia e eu com ânsias de vômito. Veja aqui.
Alguns princípios. Tiro da frente a idéia de que combinar comidas e vinhos seja uma ciência misteriosa. Ela é até muito simples, basta que não paremos de experimentar – e de nos divertir. O que está abaixo vem de experiências pessoais, em casa e em restaurantes. Nessas experiências procurei repetir dicas de críticos e selecionei as que para mim deram mais certo. Entre esses críticos figuram: o inglês Jamie Goode e o jornalista Craig Schweickert (que escreve eventualmente para o site Wine LoversPage.com). Alguns princípios foram seguidos:
Tintos com carne vermelha, brancos com carne branca. Claro que você já ouviu isso centenas de vezes. Mas esse velho princípio funciona bem quando você tem um vinho tinto jovem, com muitos taninos, que vai suplantar um prato delicado de carne branca, um simples peixe, por exemplo. Ao mesmo tempo, um vinho branco, bem fresco e delicado, como o Viognier, vai sumir perto de um suculento rosbife.
Mas temos as exceções. Uma galinha assada não deixa de ser carne branca, mas em termos de paladar, presença e potência, funciona como carne vermelha. Logo, o melhor é optar por um tinto para acompanhá-la. O mesmo acontece com peixes de grande presença como o salmão.
Essas exceções acontecem também com o divórcio entre vinhos e comidas na gastronomia atual. Temos vinhos cada vez mais alcoólicos, potentes, “bombas de fruta”, incompatíveis com comidas. Por outro lado, a cozinha da moda ficou muito eclética. São mais ingredientes por prato, com grande participação de itens orientais, entre molhos e especiarias. É a tal da fusion. São cada vez mais pratos por refeição. Fica complicado (e caro) escolher apenas uma garrafa por refeição.
Iguais com iguais. Procure um vinho com sabores e aromas que lembrem os sabores e aromas de sua entrada. Se ele é ligeiramente doce, por exemplo, tente um vinho que tenha essas características. Não, ele não deve ser necessariamente um vinho de sobremesa, cuja doçura pode matar a sua entrada. Pode ser, por exemplo, um bom Chardonnay do Novo Mundo (quando acompanhando uma rica lagosta).
Os opostos se atraem. Aqui, colocamos a regra anterior de cabeça para baixo. Assim, um vinho ácido como o Sauvignon Blanc (do Loire) pode se dar bem com um peixe rico, de carne gorda, oleoso, como a anchova (não a de lata) ou a cavala.
Beba o que quiser. Agora, se você quiser beber o seu vinho branco preferido com aquele bife mal passado, ótimo! O privilégio é todo seu e não vai ter esnobe para dizer que você está errada. Cada um com a sua experiência e preferência. Revelo agora algumas dessas preferências – minhas, naturalmente.
Carne de Porco. Para mim, fica melhor com brancos bem ricos, como a maioria dos Chardonnays e Pinots Blanc. Um alsaciano com a uva Riesling ou Gewürztraminer: os dois também funcionaram (embora me custassem caro). E até mesmo um Pinot Noir e um Beaujolais Villages assentaram bem. Isso vale para carne de porco, bem como galinha e vitela.
Presunto. Difícil faltar um Tender na mesa natalina. Mas não é muito fácil achar um vinho para combinar com ele, que é muito salgado, sabor muito presente, que ainda por cima costuma vir temperado por cravos e calda de damasco. Procuro vinhos que não briguem com ele, como um Beaujolais, um Pinot Noir saboroso, mas discreto. Se optar por brancos, fico com Riesling ou Chenin Blanc.
Peru. Também não é muito simples escolher um vinho para ele, que oferece tanto carnes brancas como escuras. ambas um tanto oleosas, nem sempre muito amigas de vinhos secos. Minhas escolhas aqui são as mesmas para o Tender: Beaujolais se quiser beber com um tinto. E Riesling e Chenin Blanc caso prefira os brancos.
Bacalhau. Não sei qual das 365 receitas de bacalhau você vai utilizar. Mas, mesmo em Portugal, há um time enorme de gente que prefere o prato com um refrescante vinho verde (que dribla muito bem o sal que costuma ser abundante em qualquer uma das receitas do peixe). Ou um tinto até encorpado. E é fácil conseguir esses vinhos.
Na venda mais próxima aqui de casa, bem pertinho, seu Plínio voltou a vender vinho. Começou com o Periquita 2004 (tinha só uma caixa; seis garrafas ficaram comigo: o 2004 acabou logo e hoje só tem o 2003). Depois, teve uma recaída e passou a oferecer o “Nossa Ceia” (um “Cooler de vinho tinto e suco de uva”, diz o rótulo) que seu Plínio comprou aos montes e vende por R$ 4,50. Mas em seguida, como bom português, comprou o que classifiquei de “Seleção do Mandrake”: além do Periquita, o verde Acácio, o Porca de Murça (o branco e o tinto, da Real Companhia Velha, da região do Douro) e um Dão Terras Altas.
O Mandrake é o personagem principal do ótimo “A Grande Arte”, de Rubem Fonseca. Esse advogado mulherengo bebe vinho sempre que pode – e de preferência os portugueses. Seu Plínio não sabe, mas todos esses são consumidos no livro. Menos o tal do “Nossa Ceia”. E do Acácio ao Terras Altas todos vão bem com bacalhau.
Saladas. Em qualquer dia, inclusive no Natal e Ano Bom, temos saladas lá em casa. Ideal para o calorão. Mas todo mundo sabe que vinagre é um inimigo natural do vinho. Eu raramente tempero minhas saladas com vinagre: uso azeite e sal – no máximo uma ou duas gotinhas de limão. A solução é não tomar vinho durante a salada. Ou criar uma mais amistosa com os vinhos. Por exemplo, a “Caesar Salad”, que leva alface, azeite, pão francês, alho, filés de anchova, um tantinho de mostarda, um tantinho de suco de limão, um pouquinho de pimenta do reino, sal, gemas de ovo, queijo parmesão. Nada de vinagres ou molhos vinagretes. Com esse tipo de salada, a minha escolha é a de um vinho rosado – da Provence ou, mais baratos, alguns da Argentina, com a uva Malbec (mas preste atenção para o volume de álcool: nada que ultrapasse os 13%).
Agora, um bom espumante, dos Champagnes, às cavas, os premiados nacionais – todos eles suportam bem acompanhar todos esses pratos. E podem até fazer par com suas sobremesas – desde que estas não sejam aquele banho de açúcar e chocolate.
Boas Festas, amigas. Evitem as tarântulas e fiquem com os vinhos.

12.12.06

Festas à brasileira

Não entenderia alguém não gostar de receber uma garrafa de vinho cuidadosamente escolhida. Também passo ao largo das questões de etiqueta: o vinho presenteado deve ser servido logo ou o pode ser guardado para uma outra ocasião? A craquérrima Jancis Robinson, inglesa crítica de vinho, Master of Wine etc. e tal, fala de sua experiência: Se alguém me traz um vinho branco ou um espumante, já resfriados, ou um tinto já decantado, entendo que o presenteador espera que o seu vinho seja bebido na ocasião. Já se o convidado coloca a garrafa de lado, sem comentários, você não está obrigada a abri-la. Contudo, a anfitriã perfeita iria desembrulhá-lo, agradecer e perguntar se o seu convidado gostaria de degustá-lo...
Mas o que comprar? As ofertas são tantas, tão variadas que esse é o menor dos problemas. Você estabelece os seus limites: por preço ou por algum diferencial: garrafas assimétricas, com rótulos intrigantes, vinhos com uvas deferentes ou de regiões poucos conhecidas. Ou que pretendam uma redefinição nos hábitos de beber vinhos.
Esse é o caso, por exemplo, do novíssimo Shuttle, uma garrafinha de 187 mililitros que tem como tampa uma taça (também de plástico). Basta girar, virar todo o vinho na taça e pronto. É um lançamento da australiana Hardy Wine Company, no momento em teste apenas no país. Mas se você estiver nadando em dinheiro, quase se afogando nele, pode também tentar comprar uma garrafa (na verdade, meia-garrafa, 375 ml) do canadense Royal DeMaria Chardonnay Icewine, que vai custar 330 mil euros ou meio milhão de dólares.
Pode ainda escolher Champagne – sempre apreciada. Se quiser gastar dinheiro, e achar que a pessoa a ser presenteada é daquelas que bebe o produto francês desde criancinha, tente as Bollinguer, Louis Roederer, Cristal ou as mais caras ainda Krug e Dom Pérignon.
Quais as minhas escolhas? Repito o que venho pregando há tempos: minha grana é curta e o produto nacional melhorou substancialmente. E não apenas os já consagrados espumantes da Serra Gaúcha, mas também tintos e brancos.
Agora mesmo acabo de receber nota informando que nossos vinhos conquistaram 69 medalhas (sendo duas Grande Ouro, 59 de Ouro e oito de Prata) no 3º Concurso Internacional de Vinhos do Brasil, promovido pela Associação Brasileira de Enologia. 420 vinhos de 13 países foram inscritos e 125 receberam medalhas.
Recebemos mais da metade dos prêmios. O júri foi formado por 42 especialistas de oito países, que analisaram vinhos da África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, Brasil, Chile, Espanha, França, Itália, México, Nova Zelândia, Portugal e Uruguai. O evento acaba de acontecer em Bento Gonçalves, RS, e os premiados brasileiros estão abaixo:
Cavalleri Cabernet Sauvignon (Adega Cavalleri Ltda.) - PRATA
Adega Chesini Gran Vin Cabernet Sauvignon (Adega Chesini) - OURO
Boscato Reserva Merlot (Boscato Indústria Vinícola Ltda.) - OURO
Boscato Gran Reserva Cabernet Sauvignon (Boscato Indústria Vinícola Ltda.) - OURO
Boscato Gran Reserva Cabernet Sauvignon (Boscato Indústria Vinícola Ltda.) - OURO
Calza Cabernet Sauvignon (Calza Júnior Ind. e Com. de Vinhos) - PRATA
Fabian Reserva Merlot (Cantina de Vinhos Fabian Ltda.) – PRATA
Casa Valduga Espumante Brut 130 Anos (Casa Valduga Vinhos Finos Ltda.) - OURO
Casa Valduga Espumante Brut Premium (Casa Valduga Vinhos Finos Ltda.) - OURO
Casa Valduga Cabernet Sauvignon Premium (Casa Valduga Vinhos Finos Ltda.) - OURO
Casa Valduga Duetto Cabernet Sauvignon / Merlot (Casa Valduga Vinhos Finos Ltda.) - OURO
Casa Valduga Identidade Arinarnoa (Casa Valduga Vinhos Finos Ltda.) - OURO
Casa Valduga Gran Reserva Cabernet Sauvignon (Casa Valduga Vinhos Finos Ltda.) – PRATA
Família Piagentini Espumante Moscatel (Cia Piagentini de Bebidas e Alimentos) – OURO
Família Piagentini Prosecco Espumante Brut (Cia Piagentini de Bebidas e Alimentos) – OURO
Décima Gran Reserva Vinho Tinto (Cia Piagentini de Bebidas e Alimentos) – OURO
Aurora Espumante Brut (Cooperativa Vinícola Aurora Ltda) – OURO
Conde de Foucauld Espumante Brut (Cooperativa Vinícola Aurora Ltda) – OURO
Aurora Reserva Chardonnay (Cooperativa Vinícola Aurora Ltda) – PRATA
Garibaldi Chardonnay Espumante Brut (Cooperativa Vinícola Garibaldi Ltda) - OURO
Garibaldi Prosecco Espumante Brut (Cooperativa Vinícola Garibaldi Ltda) - OURO
Castellamare Chardonnay Espumante Brut (Cooperativa Vinícola São João Ltda) - OURO
Aliança Espumante Moscatel (Cooperativa Viti-Vinícola Aliança Ltda.) - OURO
Aliança Varietal Chardonnay (Cooperativa Viti-Vinícola Aliança Ltda.) - OURO
Dal Pizzol Tannat (Dal Pizzol Vinhos Finos) – GRANDE OURO
Dal Pizzol Espumante Brut (Dal Pizzol Vinhos Finos) - OURO
Dal Pizzol Espumante Brut Charmat (Dal Pizzol Vinhos Finos) - OURO
Estrela do Brasil Prosecco Espumante Brut (Estrelas do Brasil Com. e Ind. de Vinhos) - OURO
Estrelas do Brasil Espumante Brut (Estrelas do Brasil Com. e Ind. de Vinhos) - OURO
Dall Agnol Superiore Vinho Tinto (Estrelas do Brasil Com. e Ind. de Vinhos) - OURO
Terranova Shiraz (Fazenda Ouro Verde Ltda.) – OURO
Miolo Fortaleza do Seival Tempranillo (Fortaleza do Seival Vineyards) - OURO
Fortaleza do Seival Sauvignon Blanc (Fortaleza do Seival Vineyards) - OURO
Mistela Reggio di Castela Moscato Giallo (Irmãos Molon Ltda.) - OURO
Il Vino Venerabile Cabernet Sauvignon (Sakura Nakaia Alimentos) - PRATA
Panizzon Espumante Moscatel (Sociedade de Bebidas Panizzon Ltda) - OURO
Panizzon Prosecco Espumante Brut (Sociedade de Bebidas Panizzon Ltda) - OURO
Panizzon Moscato Giallo (Sociedade de Bebidas Panizzon Ltda) - OURO
Terrasul Espumante Moscatel (Terrasul Vinhos Finos Ltda) - OURO
Cave Antiga Espumante Moscatel (Vinhos Finos Velha Cantina Ltda) - OURO
Cave Antiga Gran Reserva Cabernet Sauvignon (Vinhos Finos Velha Cantina Ltda) - OURO
Valdemiz Reserva Touriga Nacional (Vinhos Monte Reale Ltda) – OURO
Rendeiras Cabernet Sauvignon / Syrah (Vinibrasil) - PRATA
Luiz Argenta Espumante Moscatel (Vinícola Argenta Ltda.) - OURO
Luiz Argenta Cuveé (Vinícola Argenta Ltda.) - OURO
Amadeu Espumante Brut (Vinícola Cave de Amadeu Ltda) - OURO
Cordelier Espumante Moscatel (Vinícola Cordelier Ltda) - OURO
Granja União Espumante Brut (Vinícola Cordelier Ltda) - OURO
Cordelier Reserva Cabernet Sauvignon (Vinícola Cordelier Ltda) - OURO
Cordelier Reserva Merlot (Vinícola Cordelier Ltda) - OURO
Courmayeur Espumante Demi-Sec (Vinícola Courmayeur Ltda) - OURO
DC Merlot Dom Cândido (Vinícola Dom Cândido Ltda) - OURO
Don Abel Merlot (Vinícola Don Abel Ltda) - OURO
Gheller Cabernet Sauvignon (Vinícola Gheller Ltda.) - OURO
Giacomin Espumante Moscatel (Vinícola Giacomin Ltda) - OURO
Quinta do Jubair Chardonnay (Vinícola Góes e Venturini Ltda) - OURO
Miolo Espumante Brut (Vinícola Miolo Ltda.) - OURO
Miolo Reserva Chardonnay (Vinícola Miolo Ltda.) - OURO
Miolo Reserva Merlot (Vinícola Miolo Ltda.) - PRATA
Casa Pedrucci Millesime Espumante Brut (Vinícola Pedrucci Ltda) - OURO
Casa Perini Espumante Moscatel (Vinícola Perini Ltda) - OURO
Casa Perini Marselan (Vinícola Perini Ltda) - OURO
Casa Perini Ancellotta (Vinícola Perini Ltda) – OURO
Fino Peterlongo Espumante Demi-Sec (Vinícola Peterlongo S.A.) – GRANDE OURO
Armando Peterlongo Espumante Brut (Vinícola Peterlongo S.A.) - OURO
Salton Espumante Brut (Vinícola Salton) - OURO
Salton Espumante Moscatel (Vinícola Salton) - OURO
Salton Volpi Merlot (Vinícola Salton) - OURO
Salton Volpi Chardonnay (Vinícola Salton) – OURO

Pronto, a sua lista de vinhos está pronta. Pode presentear ou dar uma festa prestigiando a premiada produção nacional. São comprovadas delícias, fáceis de encontrar e com preços pra lá de competitivos.

5.12.06

Você está descrevendo quem?

Eis a série de sabores que o imperador do vinho Robert Parker descobriu em algumas garrafas que degustou (num artigo para “Executive Life”, de 4 de setembro): flores, passas, ameixa, figo, incenso, temperos asiáticos, cedro, ervas secas, creme de cassis, alcaçuz, grafite, azeitonas pretas, cenouras pretas (uma especialidade originária da Turquia: nota minha), amora-preta, fumaça (ou fumo), tempero de churrasco, tapenade (pasta de azeitonas, uma especialidade da Provence), acácia, carne assada, “pain grille” (como o francês chama a sua simples torrada).
Aprendemos muito no uso de caracterização criativa com os críticos de vinho. Recomendo lê-los, principalmente para quem estiver interessado em escrever ficção.
Ao descrever um Châteauneuf-du-Pape La Reine des Bois 2004, o crítico lascou: Uma usina de força para a sua idade ... maravilhosamente equilibrado apesar do seu peso. Tá falando de vinho ou de um velho? Sobre um Finca Mirador, Mendoza 2004: Adorável, mas requer paciência. A moça não deu no primeiro encontro? Paciência. Sobre uma garrafa do Rio Negro 2004, também de Mendoza: Encantadora, densa ... seu paladar continua a nos prender a atenção graças à sua excelente acidez. Está falando da futura esposa? Suculenta, profunda, camada por camada formando um todo coerente. Tem um tremendo estilo, intensidade e longa vida pela frente. É uma “femme fatale” ou o Shiraz Barrossa Valley 2002?
Um Malbec Alfa Crux 2003, do Vale do Uco, tem um estilo floreado, com bastante torrada e bacon, sem perder o foco. Ótimo na boca. Se fosse um homem, mudaria de calçada.
Nossa boca apenas transmite o doce, o salgado, o amargo, o ácido e o novo e misterioso umami. Sabores mais complexos, até mesmo o de uma simples maçã, é na maioria das vezes aroma. Não sabemos ainda quantos componentes de aroma somos capazes de identificar, mas por sorte parece que seu número está na casa das dezenas de milhões. Sem esses aromas nossas vidas seriam horrivelmente mais chatas, em particular para quem gosta de comer e beber.
Será que o Robert Parker e os demais críticos (a maioria aqui da revista Wine Spectator) conseguiram perceber tudo aquilo? A resposta é sim. Só porque eu nunca provei “cenouras pretas” não quer dizer que algumas pessoas não o tenham feito. Acho que a mesma coisa percebeu Proust, ao provar das madeleines de Combray e sua memória disparou em busca do tempo perdido. O poder dos aromas é tal que podemos perceber algo que nem está mais presente, na nossa frente, sob nossos narizes.
Troçar dos críticos, desses “superprovadores”, com os sentidos de olfato afiadíssimos, é facílimo. Mas tente lembrar-se de como você ficou emocionado ao sentir um restinho de aroma há muito esquecido, aquele fac-símile de vida que nos chegou pelo nariz. Voltaremos aos aromas e ao papel dos críticos.

O calor da festa

As festas chegaram, você vai servir vinho – para as amigas (ou para você mesma). E quer que tudo funcione direitinho. Entre outras coisas, isso quer dizer que você precisa armazenar e servir seus vinhos nas temperaturas corretas.
Agora, atenção que servir o vinho na temperatura correta é uma coisa; degustá-lo na temperatura ideal é outra.
A temperatura certa de servir um vinho produz um senhor efeito nos aromas e sabores da bebida. Cada estilo de vinho deve ter a sua temperatura de serviço apropriada (vai realçar os pontos positivos e esconder os negativos da bebida).
A maior parcela de prazer ao bebermos vinhos está relacionada com seus aromas. Sabor mesmo, o que está na boca, só oferece quatro possibilidades: o doce, o amargo, o salgado e o ácido. É o nosso nariz que faz todo o restante da festa. Eles precisam sentir aqueles vapores que saem da taça.
E tais vapores são criados na medida em que o vinho vai aquecendo.
Quanto mais alta a temperatura, mais facilmente os componentes de sabores se evaporarão da superfície da bebida na taça. Daí que servir um vinho lá entre os seus 16 e 18oC (já um tanto lépido) faz sentido, pois estaremos enfatizando os aromas da bebida.
Com temperaturas acima de 20oC, o álcool começa a evaporar-se de tal modo que desequilibra a bebida. Assim, temos: excessivamente gelado, ele vai perder todo o seu sabor e aroma. Muito quente, ficará intragável, apenas o sabor de álcool se destacando.
Um vinho muito gelado liberará muito pouco de seus sabores e aromas. Os defeitos gustativos de um vinho simples, de má qualidade, podem ser mascarados pela baixa temperatura de serviço.
As temperaturas mais frias deixam nosso paladar mais sensível à doçura, daí que se recomenda servir vinhos doces, os de sobremesa, mais frios.
Já esse mesmo paladar é mais suscetível a taninos e ao amargor em temperaturas mais quentes. Os vinhos tânicos ou amargos, como muitos italianos e qualquer tinto jovem de qualidade, devem ser servidos relativamente lépidos.
A temperatura influencia também vinhos contendo dióxido de carbono: os espumantes em geral. Quanto mais gelado, mais gás será liberado. Ou seja, nossos espumantes podem se tornar intragáveis lá pelos seus 18oC.
Em resumo: esses vapores são criados, como vimos, na medida em que o vinho se aquece. Daí que ele precisa estar alguns poucos graus abaixo de sua temperatura de degustação para que possa liberar seus aromas.
Temperatura de serviço. Eis aqui uma tabelinha para a sua orientação (a temperatura está em graus Celsius):
Temperatura (Celsius)
19º - Vinho do Porto Vintage
15 – 18º - Bordeaux, Syrah (vinhos tintos tânicos, complexos)
17º - Borgonha tinto, Cabernet Sauvignon
16º - Rioja, Pinot Noir
15º - Chianti, Zinfandel
14º - Porto Tawny e Non Vintage
13º - Temperatura ideal para armazenar qualquer vinho
12º - Beaujolais e vinhos rosados.
11º - Viognier, Sauternes
9º - Chardonnay
8º - Riesling
7º - Champagne, espumantes em geral
6º - Ice Wines
5º - Asti-Spumanti

E a temperatura para beber o vinho? A crítica americana Lisa Shea pesquisou, testou, pesquisou, testou e chegou a esta tabela (a temperatura está em Celsius e é a de uma geladeira comum). Os tempos marcados são os minutos decorridos de uma garrafa retirada da geladeira.
Retire o vinho da geladeira e sirva depois de ...
0:10 (dez minutos depois) - 8º - Chablis/Riesling
0:30 - 12º - Sauvignon Blanc
0:50 - 13º - Chardonnay
1:00 - 14º - Zinfandel/Chianti
1:50 - 17º - Pinot Noir
2:00 - 18º -Cabernet Sauvignon
Mas, por favor, entendemos que a “tal temperatura ambiente” do local onde você está servindo seus vinhos não se refira ao Amapá, logo ali perto da linha do Equador. Se for esse o caso, você deve tomar seus vinhos dentro da geladeira mesmo.
O que essa tabela diz é que os vinhos não devem ser servidos na temperatura em que saíram da geladeira. E não tão quentes quanto a falada “temperatura ambiente” comentada acima.
Climatizadores, geladeiras e principalmente os baldes com gelo fazem um ótimo trabalho gelando e conservando nossos vinhos. Mas para aquecê-los, prefiro o calor de minhas mãos em cada taça.
Assim, amiga, para manter o calor da festa, sua ou dos amigos, o melhor é gelar o vinho (na temperatura certa para cada estilo) e deixá-lo entre suas mãos até ficar no ponto. Aromas e sabores vão justificar a presença das garrafas que você com tanto cuidado escolheu.

28.11.06

A Dieta do Vinho

Tem um guru novo na praça, que promete vinho, chocolate e vida longa e boa para os seus seguidores. Já estamos na estação de grandes comilanças e muitos copos; na época de mostrar os corpinhos sarados nas praias. Logo, não custa contar para vocês as novidades do professor Roger Corder, um respeitadíssimo cientista inglês, que acaba de lançar em Londres o livro The Wine Diet, a Dieta do Vinho.
O professor é especialista em doenças cardiovasculares e propõe uma dieta eclética e liberal que vai de vinhos de Rioja, Espanha, aos Cabernets sul-americanos. Ele lembra o que as pessoas sabem há séculos: o vinho pode ser bom para nós. E cita Paracelso, o físico, alquimista, astrólogo suíço do século XVI: “vinho é um alimento, um remédio e um veneno – é só uma questão de dose”.
Roger Corder é professor de terapêutica experimental no Instituto de Pesquisa William Harvey, pertencente à Escola de Medicina de Londres. Passou anos reunindo evidências dos benefícios médicos, potencialmente gigantescos, dos vinhos tintos. Acrescente-se que ele não esqueceu do que se anda falando a respeito do chocolate preto, com qualidades similares. E, pronto, temos a ciência preferida dos gourmets.
O professor conseguiu inverter o antigo provérbio dos nutricionistas: “Se é delicioso, deve ser nocivo”. Ele começou suas pesquisas em 1999. E já em 2001 anunciou que, com sua equipe, tinha descoberto que o vinho tinto conseguia botar um freio numa das moléculas mais importantes a causar doenças coronarianas. É a tal de endotelina-1. Descobriu que certos tipos de polifenóis (um elemento químico das plantas), chamados de procianidinas, promovem saúde e são chaves do vinho. Não só existem abundantemente nos vinhos tintos como também no chocolate e de algumas frutinhas vermelhas - principalmente o arando (em português) ou cranberry (em inglês), ou canneberge (francês) e ainda arándono rojo (em espanhol).
Em sua essência, o professor afirma que se bebermos vinhos com alto grau de procianidinas estaremos melhorando a função de limpar os vasos sangüíneos e, assim, nos protegendo de doenças cardíacas, enfartos, diabetes, demência e possivelmente de alguns tipos de câncer. “Os bebedores de vinho são geralmente mais saudáveis e com freqüência vivem mais tempo”, afirma o professor. “Isso não é um sonho. Passei muitos anos pesquisando os benefícios do vinho para a saúde e posso afirmar que são esses bebedores que sofrerão menos com doenças cardíacas, diabetes e demência”.
Como é a dieta. Ela é diferente das demais: nada de contar calorias. É muito simples: apenas procura repetir o que fazem alguns dos povos mais longevos do mundo – da Sardenha, Creta e do sudoeste rural da França. Não existem serviços básicos de saúde nessas regiões. E, no entanto, as pessoas vivem bem e por muito, muito tempo. Se cuidam apenas tomando vinho todos os dias e comendo comidas frescas, não processadas.
O caso é buscarmos vinhos tintos com quantidades decentes de procianidinas. Mas os vinhos não são rotineiramente analisados pelo conteúdo dessas substâncias. O recurso é simples: basta sabermos o conteúdo total de polifenóis. Mas como?
Os produtores cada vez mais mencionam um tal de IPT (do francês Indice des Plyphénols Totaux) em suas informações técnicas, que podem ser achadas na internet e em algumas revistas especializadas.
Em geral, quanto mais alto o IPT, maior a quantidade de procianidinas num vinho. O professor criou uma escala, que vai de * (um asterisco) até ***** (cinco asteriscos), onde a maioria dos tintos tem pelo menos um *. Uma taça de um vinho com *****, super rico, contem pelo menos 120 mg de procianidinas. Uma taça com *** terá entre 60 e 90 mg. Um vinho médio poderá conter entre 30-45 mg da substância.
O professor cita os vinhos do Madiran, região do sudoeste francês, um santuário do vinho tinto. E os cabernet sauvignon argentinos, que o cientista toma como padrão. Assim, fica mais fácil nos abastecermos para essa dieta. Agora, pode ter como certo, amigas, que nossos tintos estão em pé de igualdade, são ricos em polifenóis. Não precisamos de *****. A turma em Creta e na Sardenha bebe direto do barril. São vinhos caseiros. Lá, ninguém se importa com asteriscos e procianidina é palavrão.
Ele reprova vinhos com alto teor de álcool (ficamos com a média tradicional de 12% de álcool por volume) e recomenda que só os bebamos às refeições, moderadamente (uma ou duas taças).
Um outro grupo de alimentos apresenta-se como fonte alternativa de procianidinas. Exemplos: o chocolate preto, maçãs, as frutinhas vermelhas citadas acima. A romã é fonte muito rica de diferentes polifenóis e pode substituir muito bem as procianidinas do vinho. Para quem não pode consumir álcool, temos, portanto deliciosos substitutos.
As maçãs contêm quantidades modestas de vitamina C, potássio, ácido fólico e fibras. Recentemente, descobriu-se que são uma fonte rica em procianidinas. As boas cidras, feitas ao modo tradicional, podem conter altos níveis desse elemento, mais alto até do que muitos vinhos e com apenas 6% de álcool. São boas alternativas (e mais baratas) do que o vinho tinto. Mas cuidado com as cidras industrializadas (as que vemos chegar aos montes nas prateleiras de supermercado, para as festas): o suco de maçã é rotineiramente filtrado, removendo grande parte das procianidinas. Melhor ficar com uma maçã por dia, cujo conteúdo médio desse polifenol é equivalente a uma taça de 125 ml de vinho tinto.
A arando (ou cranberry etc.) é fonte rica de procianidina, além de prevenir infecções do trato urinário, como a cistite. A recomendação do cientista é a de fazermos nós mesmas nosso próprio suco, pois o industrializado leva muito açúcar.
De um modo geral, a maioria das frutinhas vermelhas forma uma rica fonte de vários polifenóis. Na média, 100g dessas frutinhas podem conter uma quantidade de polifenóis igual a uma taça de 125 ml de vinho tinto rico em procianidina.
E também temos as nozes. Elas aparecem aqui como uma surpresa, pois são ricas em gordura. Pois o professor Corder descobriu que pessoas que costumeiramente comem nozes apresentam um índice de doenças cardíacas mais baixo do que as que nunca ou raramente as comem. Um estudo investigou 34 mil adventistas do Sétimo Dia, na Califórnia. Os que comiam nozes mais de cinco vezes por semana apresentaram um nível de doenças cardíacas 50% mais baixo. É que esses frutos são uma das mais ricas fontes de polifenóis.
Outra grande fonte de procianidinas é a canela, aquela mesma da Gabriela. É um tempero versátil, tanto para pratos doces como para os salgados.
O chá, preto ou verde, tem também bons níveis de polifenóis. O cientista cita estudos concluindo que três xícaras de chá diariamente podem reduzir o risco de doenças cardíacas em apenas 11%. Outras pesquisas, feitas em hospitais, demonstraram que 900 ml de chá preto por dia, durante quatro semanas, melhoraram a condição de pacientes com doenças coronarianas.
Assim, jogando com uma dieta mediterrânea, com muitos legumes, frutas, azeite, pouquíssima ou nenhuma fritura, chocolate e muitas das frutinhas citadas aqui e uma ou duas taças de vinho tinto por dia, podemos seguir adiante com mais saúde e por mais tempo.

21.11.06

Os esnobes do vinho

A maioria da crítica o chama de enochato. O esnobe do vinho leva com ele uma mancha negativa, tão negativa quanto a definição do Aurélio para a palavra: esnobe é quem pratica o esnobismo, por sua vez, a pessoa com “tendência a desprezar relações humildes, a aferir méritos pelas exterioridades, e, pois, a admirar e/ou respeitar exageradamente os que têm grande prestígio ou alta posição social. Esnobismo é um “exacerbado sentimento de superioridade”, uma “afetação de gosto e/ou admiração excessiva ao que está em voga”.
Os esnobes do vinho existem em diversas vestes, em várias subespécies e são fáceis de identificar. Num jantar, será ele quem vai contradizer a pessoa tida como a mais conhecedora de vinho na mesa. Ao cheirar o vinho, vai identificar não apenas a região e a vinícola, mas também o que o vinicultor decidiu no dia em que as uvas foram colhidas. Fala demais.
Uma outra subcategoria é representada pelo tipo acima que começa a vomitar jargão técnico. Toca a falar de “fermentação malolática”, “maceração carbônica”, “micro-oxigenação”, “pneumatage”, “batonage”, “pigeage”. É o tipo técnico.
Ao seu lado, desfila o colecionador: possui todas as grandes garrafas de todas as grandes safras. “Também tenho esse vinho” é o seu refrão. E suas regiões queridas são sempre Bordeaux e Borgonha. Conhece todos os chateaux e domaines, sem falar de seus donos e donas e de seus produtores como se os conhecesse desde criancinha. Não adianta visitá-lo em casa na esperança de provar algumas daquelas maravilhas. Só estarão “prontas” daqui há dez, vinte anos. Vão às lojas e procuram os vinhos mais caros, fazem o mesmo nos restaurantes. Entre eles, temos os endinheirados de verdade e os caloteiros.
A crítica Natalie MacLean ainda identificou mais uma subespécie: a do “maníaco por saúde”. Não gosta de vinho necessariamente, mas o consome como remédio. “Em vez de uma tabela de safra, carrega uma lista com o nível de resveratrol de vários vinhos. Recalculou sua expectativa de vida baseado num reduzido risco de ataque cardíaco, pois bebe uma taça e meia de vinho diariamente”. É o eno-hipocondríaco.
Mas esnobes e esnobismos são parte fundamental desse mundo, tanto quanto as formigas em piqueniques.
No dicionário Webster, snob é uma pessoa tida como “arrogante, desagradável; um indivíduo que se arroga méritos que não possui...”; “aquele que tem um ar de superioridade ofensivo, em matérias de conhecimento ou gosto”. Ou seja, o Webster está semelhante ao do Aurélio e da maioria das definições.
Contudo, o dicionário de Cambridge acrescenta uma qualidade na definição: esnobe é uma pessoa “dotada de altos padrões e que não está satisfeita com as coisas que as pessoas comuns gostam”. Se há uma desaprovação, por outro lado acrescenta uma explicação para o esnobismo: a insatisfação com os padrões adotados pela galera.
Se a amiga viu o filme Sideways (que não cansa de passar na televisão) notou que o personagem principal, Miles, é vidrado em vinho, mas não tem nada de esnobe: é um humilde professor, escreveu um cartapácio que os editores recusam, sua esposa o abandonou. Está duro, mas surrupia dinheiro da mãe para visitar vinícolas no Vale de Santa Ynez, na Califórnia. Viaja com um amigo, ator, que não entende nada de vinhos, apenas gosta de bebê-los, e tenta encontrar o melhor Pinot Noir que a terra pode oferecer.
Miles é um personagem inseguro, carente. Mas é vidrado em vinhos, está absolutamente apaixonado e sabe quase tudo sobre a bebida. É o que os americanos chamam de wine geek.
Tenho um amigo, o Eduardo Courreges, engenheiro, possui uma gráfica aqui na Washington Luis, e roda o novo Jornal do Brasil. Ele é capaz de passar todo um dia conversando a respeito de serifas e pontos e se uma letra em particular tem o formato correto para a sua fonte. O Eduardo, na sua especialidade, é um geek, palavra que até o Shakespeare usou e que em seu tempo tinha o significado de tolo, idiota. Mas que chegou ao século XXI associada a computadores e à internet designando “uma pessoa com um talento e um interesse por tecnologia e programação acima do normal”. Bill Gates e Paul Allen, os fundadores da Microsoft, são geeks em suas origens. Ainda muito jovens criaram um sistema operacional que puxou o tapete debaixo da então poderosa IBM e mudaram a face da informática em todo o planeta. Hoje os dois são apenas bilionários, que não dão jeito nas “windows” do meu computador. O sistema deveria ter mais “gates”.
Um wine geek, tal como um geek da informática é completamente consumido pelo seu campo de interesse, o vinho. Ele experimenta de tudo, quer saber tudo sobre vinhos, sem preconceitos. Prova vinhos secos e doces, brancos, tintos e rosados, vinhos do Velho e do Novo Mundo, degusta uvas pouco conhecidas, está sempre em busca de aventuras enológicas. Em português, ele seria um CDF (sabe, aquele menino chato, de óculos, que vive estudando, tira nota máxima em todas as matérias). Mas um CDF não necessariamente chato, quase sempre casual, que não se importa em saber o que vai comer para escolher o vinho. Ele primeiro escolhe o vinho e a harmonização pouco importa.
Mais uma vez os americanos têm uma expressão para definir o que nós, no começo da nossa conversa, chamamos de esnobe, no sentido negativo.
É o cork dork, mais ou menos, “o idiota da rolha”, uma pessoa tola e presunçosa – a respeito do vinho. É ele quem vai segurar a taça pela base. Não admite nem pega-la pela haste. Vai girá-la até a exaustão. Antes do colocar o nariz na taça fará um longo discurso sobre as supostas características do vinho que seque provou. Por fim, ao cheirar o vinho, anunciará o seu desapontamento com o aroma. O cork dork ama tudo o que é francês, os barris têm de ser de carvalho novo e os vinhos bem velhos (e sabemos que essas escolhas não são necessariamente as melhores). É capaz de, além de cheirar o vinho, escutá-lo também. Coloca os ouvidos na taça de champagne, pois afirma que, pelo som do borbulhar do espumante, consegue distinguir um Krug de um Roederer.
Esnobes, wine geeks, cork dorks, enochatos: eles podem ser maçantes por vezes. Mas sem eles saberíamos cada vez menos sobre o mundo dos vinhos e o que essa bebida pode nos oferecer.
Seja com comida, vinho, café, azeite etc. não há nada de errado em tentar dotar-se de altos padrões e desejar o melhor, o acima do comum. E acho que podemos continuar buscando esses “altos padrões” sem levantar nossos narizes e, ainda por cima, ajudar as pessoas a se aventurarem em experiências mais ousadas seja com o vinho, a comida, o café, roupas etc.
Amiga, você gosta de vinhos como uma wine geek ou cork dork? Para você, valem mais as definições do Aurélio e do Webster para esnobe e esnobismo no vinho? Ou você se encaixa mais nos altos padrões do verbete do dicionário de Cambridge?

16.11.06

O Nouveau e as panacéias

Já que esta coluna sai justo no dia do lançamento do Beaujolais Nouveau, oficialmente, a partir da meia-noite da terceira quinta-feira de novembro, em todo o mundo, vamos comentar a respeito. O Nouveau tem uma história bastante original: é uma uva, um vinho, uma região e seus vinicultores se promovendo às suas próprias custas.
Mas lembraremos também outros experimentos promocionais: como a de se promover à custa do vinho ou de vender-se um vinho via celebridades. O vinho é a panacéia da moda.
Beaujolais Nouveau. Poucos conseguem o sucesso de imagem e vendas desse vinho jovem. Ele não dependeu até hoje a não ser de sua humilde, mas resistente uva, a Gamay. E do esforço de centenas de vinicultores.
É uma senhora manobra de coordenação e marketing. Beaujolais fica ao sul da Borgonha (oficialmente é um distrito dela). A turma colhe rapidamente as uvas, Gamay, a fermentam e engarrafam seu suco de modo a que as 60 milhões de garrafas, esse ano, estejam nas lojas à meia-noite de hoje. Viajam de avião, trem, caminhão, cavalo, elefante etc. Um senhor exercício de coordenação, driblando diferentes fusos horários. Metade dessas garrafas fica na França, mesmo, e já vi parisienses tomar o primeiro gole logo no café da manhã. Lá, o comerciante que vender o nouveau antes do seu lançamento oficial é pesadamente multado.
A festa em torno do Nouveau começou na França logo depois da II Guerra e se espalhou para o resto do mundo a partir dos anos 80. Hoje chega a 150 países, pelo menos. As uvas são colhidas em setembro e o vinho fica pronto já nos primeiros dias de novembro. Um Bordeaux de classe leva pelo menos dois anos para chegar ao mercado depois das uvas colhidas. Um Barolo Riserva, uns cinco anos.
Mas atenção que não é o primeiro vinho do ano. Em outras partes do mundo, da Itália à Califórnia, em regiões da França como a Provence e o Languedoc, vinhos similares chegaram ao mercado antes do nouveau. Na Itália, temos os “novellos”, por exemplo, com uvas pouco conhecidas como a Teroldego e Lagrein. Isso sem contar com o hemisfério sul, onde a colheita é feita entre março e abril.
Não é também um vinho “cult” ou para colecionadores ou mesmo para contemplação. A pressa com que é feito compromete a sua profundidade. Mas quando a safra é boa, como dizem foi a desse ano (dizem isso sempre) e os frutos são colhidos bem maduros, o Nouveau é bem fresco e leve. E vem com muita fruta. Imagine: as uvas são jogadas, inteiras, num tanque inox onde injetam dióxido de carbono. A possibilidade de aromas e sabores de frutos, assim, é bem grande. Pense assim: se um Borgonha pode ser uma sonata de Beethoven, um Beaujolais chega a ser uma gostosa balada.
Brindo em particular à teimosia da uva Gamay. O Duque da Borgonha, um certo Felipe, ordenou em 1395 que essa uva fosse eliminada da região, pois a tinha como “daninha e desleal”, talvez pelo seu vigor rústico. Queria espaço para a Pinot Noir. Mas como um gato teimoso, a Gamay voltava sempre até que se transformou, nesse sucesso – comercial e didático, pois por ela muita gente começa a conhecer o mundo dos vinhos.
Falam que esse ano o vinho virá com fortes aromas de frutinhas vermelhas. Mas isso dependerá do produtor. O mais famoso é Georges Duboeuf, chamado “O Rei de Beaujolais”, que controla 10% de toda a sua produção. Experimente também os de Bouchard Aîné, Joseph Drouhin, Louis Jadot, Jaffelin, Mommessin e Rodet. Cuidado com os preços.
O vinho da Madonna. Ela se reinventa a cada dia. Canta, dança, escreve livros infantis, adota crianças africanas, 21 anos de vida profissional exemplar. E agora seu pai, Tony Ciccone(vinicultor desde 1995), vai lançar o “Vinho da Madonna”, diretamente do “Vinhedo Ciccone”, em Michigan, EUA. Será uma edição limitada, com garrafas assinadas pela cantora, dançarina, autora, supermãe, ao custo de 40 dólares a garrafa. “É o melhor vinho que Tony fez até hoje”, diz um amigo da família. Amigo mesmo.Foi o ótimo Sérgio Rodrigues, que assina as também imperdíveis colunas “A Palavra é” e e Todoprosa , quem deu a dica de um artigo de Ed Pilkington no inglês “Guardian”, e que levou à citação abaixo:
Se minha teoria estiver correta, é assustador porque sugere que as celebridades acreditam na publicidade em torno de suas habilidades. Pior, indica uma profundidade de obsessão pública com os famosos que é ainda mais extrema do que costumamos imaginar. Uma coisa é querer saber qual celebridade está dormindo com qual (…). Mas querer ouvir as mais íntimas histórias que uma celebridade conta para seus filhos na hora de dormir, independentemente de seu valor, beira o bizarro. (Leia aqui todo o artigo)
Kick Ass Red. Mike Dikta, famosíssimo ex-treinador de futebol americano (aquele em que a bola parece um zepelim, a porrada come solta e o juiz só apita quando 20 brutamontes do time A estão em cima do gorila do time B), ganhador do Super Ball, a Copa do Mundo deles lá, resolveu lançar um vinho. Claro que em parceria com um vinicultor da Califórnia.
Nome do vinho: Mike Ditka Kick Ass Red, que seria “Vinho Legal Mike Ditka Tinto”. Legal, de bárbaro, formidável etc. Mas, numa tradução mais ao pé da letra, Tinto Pé na Bunda de Mike Ditka. Fico pensando na qualidade ou no nível de álcool desse vinho, que já nos chega com um pé na bunda. E em como essa celebridade acredita em suas habilidades (só para lembrar o artigo do Guardian).
O vinho de Bond. Estou falando de Bond, James Bond. No seu próximo filme, James Bond, numa refilmagem de “Casino Royale”, vai beber um Premier Grand Cru Classe de St-Emilion, o Chateau Ângelus (parece que da safra de 1982), além do champagne Bollinger, desde Moonraker, (“007 Contra o Foguete da Morte”, de 1979) ligada ao 007. Tem sempre um Bond novo, como esse agora, Daniel Craig, também inglês. Mas os vinhos nos filmes do agente secreto costumam ser velhos, como esse Ângelus 82. As mulheres ele as consome jovens mesmo.
Não duvide que Bond, esse personagem ficcional que nos acompanha desde os anos 50 em livros e desde os 60 em filmes, ainda vende mais vinho que Madonna (e seu pai) e do técnico bundão. Mais do que muitas celebridades.
Vinhos podem dar prestígio. Mas só o Beaujolais Nouveau para conquistar essa imensidão de público, em todo o mundo, com a sua simplicidade, pouco status, leveza, às custas apenas de seus anônimos vinicultores e de sua Gamay.

11.11.06

O passarinho do seu Plínio

Na venda mais próxima, há cinco minutinhos daqui de casa, em Secretário, Petrópolis, o seu Plínio voltou a vender vinhos. Ele tem uma vendinha quebra-galhos: o pão vem de uma das melhores padarias da Serra, a Princesa de Bonsucesso (que, naturalmente, fica em Bonsucesso, entre Nogueira e Itaipava). E o resto compra do comércio local, de detergentes, dentifrícios, a arroz, feijão, açúcar, Melhoral etc.
E, agora, vinho. Apenas um rótulo, o Periquita, vendido a R$ 26,00, a garrafa de 750 ml. Não sei como ele conseguir logo o da safra 2004, muito elogiado pelos críticos. Também não sei como ele chegou à barganha dos 26 reais. Será que conseguiu da Diageo, distribuidora da marca? Antes, seu pai, vez por outra, punha um ou dois rótulos na prateleira, vinhos verdes, na maior parte. Passou o tempo, seu Plínio assumiu o negócio e os vinhos foram esquecidos. Por um pouco.
E o Periquita 2004 vem inaugurar esse novo tempo da nossa salvadora vendinha. Não é pouca coisa, não. É difícil pensar em outro vinho com tamanha garra. É a marca de vinho de mesa engarrafado mais antiga de Portugal, uma das mais antigas em todo o mundo. Existe há 153 anos e mantém o mesmo rótulo até hoje. Foi criado por José Maria da Fonseca, em Vila Nogueira do Azeitão, ao sul de Lisboa, a partir de uvas tintas Castelão Francês, que o homem trazia do Ribatejo, de uma propriedade que se chamava Cova da Periquita, na hoje Região Demarcada das Terras do Sado.
O 2004 leva 70% de Castelão, 20% de Trincadeira e 10% de Aragonês (a mesma espanhola Tempranillo). O vinho ficou tão famoso, tão querido em todo o mundo, que Periquita passou a sinônimo de Castelão. O caso é que, 153 safras depois, ele continua ótimo de beber: um vinho fácil, muita fruta, muito saboroso, muita personalidade. Ao primeiro gole, você vê Cabral, Caminha, Dom João VI, Eça, Fernando Pessoa, além do próprio seu Plínio. Um verdadeiro português. Sua origem logo se apresenta.
Perguntei a ele como conseguiu o 2004. Respondeu de modo vago: “amigos, amigos”. Perguntei se ia continua trazendo mais vinhos. Disse que ia depender das vendas. Imediatamente comprometi-me com uma caixa, desde que ele aceitasse dividir a conta em três. Aceitou vender apenas seis garrafas. Só tinha duas caixas de 12. Metade de uma caixa para ele, metade para mim e o restante para os demais fregueses.
Fui mais fundo. Quis saber se ele não ia aproveitar o tradicional barulho na mídia e trazer também o Beaujolais Nouveau, com lançamento mundial marcado, como sempre, para a terceira quinta-feira de novembro (dia 16 próximo). Seu Plínio pediu que eu soletrasse o nome do vinho francês. Depois o nome da uva, a Gamay. Expliquei que a cada ano ele tem um sabor diferente, uma surpresa buscada por seus admiradores. Mas seu Plínio disse que não arriscaria. “Ninguém aqui vai entender esse francês. Fico como o meu, que tem nome de passarinho”. Não se pode ver nada de errado na escolha de seu Plínio.

7.11.06

Liberdade para os glutões

Agora, sim. Podemos comer quantos doces quisermos, quantas batatas fritas e picanhas suando gordura desejarmos. Calorias e carboidratos que se danem! E isso graças a uma substância natural encontrada fartamente nos vinhos tintos, o já famoso resveratrol, um componente produzido pelas uvas, entre outras plantas e frutas.
Pelo menos, amigas, isso é o que demonstram pesquisadores da Escola Médica de Harvard e do Instituto Nacional Envelhecimento, ambos nos Estados Unidos. Eles publicaram os resultados de suas novíssimas pesquisas agora no início de novembro na revista Nature.
Segundo o trabalho desses cientistas, grandes doses diárias de resveratrol podem compensar dietas demasiadamente calóricas, em nada saudáveis, aquelas que promovem ou agravam o problema da obesidade em todo o mundo. E faz mais: mesmo com essa dieta e mesmo entre obesos, o tratamento com o fenólico pode prolongar nossas vidas, mais que entre magros que não consomem essa dieta de alta caloria.
Tudo isso se nós, humanos, respondermos ao resveratrol tal como camundongos de laboratório o fizeram. Pois é: primeiro experimentaram neles. Somos as próximas na fila.
O resveratrol é encontrado, entre outras frutas, em grandes quantidades nas cascas das uvas e, portanto, também no vinho tinto. Ele é tido como o responsável pelo chamado Paradoxo Francês, o intrigante fato que deixa o povo francês gozar de uma dieta gordurosa e sofrer menos com doenças cardiovasculares do que os americanos, por exemplo. Essa teoria foi exposta em 1992 na TV, no programa 60 Minutos e fez aumentar a procura pelo vinho tinto em todo o mundo de uma hora para outra.
Os pesquisadores alimentaram um grupo de camundongos com uma dieta na qual 60% das calorias se originavam de pura gordura. Esse regime começava quando os ratinhos, todos machos, atingiam um ano de idade, equivalente à nossa meia-idade.
Como era de se esperar, os camundongos desse grupo logo apresentaram sinais de diabetes, de fígados aumentados e acabavam morrendo muito mais cedo do que o grupo de ratinhos alimentados com uma dieta padrão.
Aí entra um terceiro grupo de ratinhos. Foram alimentados com dieta de muita gordura, tal como aconteceu com a primeira turma. Só que, além dessa alimentação, eles consumiam uma grande dose diária de resveratrol.
O resveratrol não impediu que ganhassem peso ou que ficassem gordos como barriquinhas, tal como os do primeiro grupo. Mas evitou os altos níveis de glicose e insulina na corrente sangüínea, sinais evidentes de diabetes. Além disso, os seus fígados mantiveram-se no seu tamanho normal.
Agora, o mais espantoso: o resveratrol fez com que os ratinhos desse ganhassem mais tempo de vida.
Eles morreram muitos meses depois do que os camundongos alimentados com muita gordura. E no mesmo período de tempo do que os ratinhos com a dieta padrão, saudável.
Ou seja: tiveram todos os prazeres desfrutados por um glutão, mas sem pagar com diabetes, doenças cardíacas etc.
Os pesquisadores tentaram também estimar o efeito do resveratrol na qualidade da vida física dos camundongos. Fizeram os ratinhos andarem no equivalente a uma espécie de esteira ergométrica. E a turma que consumia resveratrol saiu-se melhor na media em que envelhecia, terminando com o mesmo nível de potência física do que os que consumiam a dieta normal.
Os pesquisadores foram liderados por David Sinclair e Joseph Baur, na Escola Médica de Harvard, e por Rafael de Cabo, no Instituto Nacional de Envelhecimento.
Acham que, em princípio, o seu estudo mostra que o resveratrol, consumido “em doses apropriadas, pode reduzir muitas das conseqüências negativas do consumo excessivo de calorias e ainda melhorar a saúde e estender o tempo de vida dos humanos”.
A amiga está pensando em imediatamente aumentar a quantidade de taças de vinho tinto no seu dia-a-dia? Não é por aí, cuidado!
Os nossos simpáticos ratinhos consumiam uma pesada dose de resveratrol: 24 miligramas por quilo de peso.
O vinho tinto pode ter entre 1,5 a 3 miligramas de resveratrol por litro. Portanto, uma pessoa lá nos seus 70 quilos precisaria beber entre 1.500 a 3.000 garrafas de vinhos todos os dias para chegar à dose consumida pelos ratinhos.
Convenhamos, amigas, pode ser a quantidade de resveratrol ótima para estender a sua vida de glutona. Mas é álcool demais para qualquer pessoa, não é não? Você não vai viver a tempo nem para curtir aquela ressaca.
Existem empresas que vendem extratos de resveratrol. Uma delas é a Longevinex. Seus comprimidos, alega ela, podem conter de cinco a 15 taças de um bom vinho tinto. Saiba mais sobre ela aqui.
Fico intrigada é com o fato de que o Dr. Sinclair, figura principal nessa pesquisa, é também o fundador de uma empresa, a Sirtris Pharmaceuticals, responsável por desenvolver várias drogas que imitam a ação do resveratrol.
Seria melhor, pelo menos para a minha cabeça, que o grupo responsável pela pesquisa não tivesse qualquer tipo de relacionamento (em particular o comercial) com drogas que competem ou imitam o principal pesquisado: o resveratrol.
A Sirtris está testando uma dessas drogas, que seria uma versão melhorada do resveratrol, com o objetivo de verificar se ela ajuda a controlar os níveis de glicose em diabéticos. Um dos executivos da empresa diz que não acreditar que se possam alcançar níveis terapêuticos em humanos com o resveratrol comum.
Enfim, vamos esperar para ver. Enquanto isso, que tal uma tacinha de vinho? Ela vai valer pela bebida, pelo prazer que nos dará e não pela suposição de que é um remédio.

31.10.06

Análise sensorial dos vinhos

Para muita gente, muita mesmo, crítica de vinhos se resume a uma análise sensorial. Muitos, mas muitos mesmo, sugerem que o vinho só pode se avaliado em seus termos, ou seja: que a única coisa que realmente importa quando tentam determinar se um vinho é “bom ou não” é a sua combinação de aroma, textura, sabor, acidez, estrutura de taninos e complexidade.
O resultado desse tipo de análise sensorial (ou crítica de vinhos) é uma nota com três ou quatro linhas e um escore numérico. E, pronto, está feito o trabalho do crítico.
Não há dúvidas de que esse enfoque tem muito de verdadeiro. A análise sensorial é o coração da crítica de vinhos. O que está na garrafa importa muito. Mas não é a única coisa que importa. E quem não concorda com isso pode ser considerado pelo menos ingênuo dos contextos, dos ambientes em que se vive a experiência do vinho.
O entendimento, a avaliação e o pleno prazer de um vinho depende de muitas camadas desse contexto, cada uma delas ajudando a construir um quadro completo da bebida. E que camadas e que contexto seriam esses?
Os sentidos. Os analistas sensoriais (os críticos de vinho) começam colocando um pouco de vinho na taça. Fazem-na girar. Apreciam a cor, a viscosidade e os brilhos através do cristal. Inalam o vinho profundamente e avaliam seus aromas. Depois o bebem para sentir sua textura na língua e sentir seus sabores. Depois o engolem (ou cospem, se forem degustadores profissionais) e cuidadosamente avaliam aromas e sabores que ainda ficam na boca. Essa é a raiz de toda a apreciação de vinhos. Mas não é tudo. Falta alguma coisa.
Tipicidade. O mais teimoso dos críticos admitirá que uma avaliação apropriada do vinho compreende pelo menos uma camada adicional ao contexto puramente orgânico.
O conhecimento da variedade de uva utilizada na feitura do vinho e de onde elas cresceram permite ao provador avaliar melhor o vinho. O crítico poderá, ao menos, analisar se esse vinho é típico daquela uva e se é uma expressão do lugar onde ela cresceu. Mas faltam ainda mais camadas.
Humanidade e História. Além da garrafa e da uva, além da geografia da origem, todo vinho encerra sem dúvidas um contexto humano. Alguém preparou o solo e podou as vinhas. Certo que é mais de um alguém. Todos os vinhos têm uma história humana, a das pessoas que os criaram e cuidaram. Para entendermos completamente o vinho que provamos precisamos também considerar essa história.
Claro que o consumidor comum não tem obrigação de saber sobre quem fez o vinho, nada além do que está no seu rótulo, que muitas vezes não reconhece ou consegue pronunciar. Pode nunca saber da história de duzentos anos de uma família inteira de vinicultores. Ou a história pessoal de um produtor que começou no campo, colhendo uvas com as mãos. Essas coisas não são essenciais para o prazer de beber-se um vinho.
Mas são para mim. E deveriam ser para quem se considera um sério adepto da bebida. Uma crítica de vinho sem a história de quem fez e de onde veio o vinho é, em minha opinião, um mero exercício de juntar adjetivos (nem sempre inteligíveis) e um daqueles números, o placar final, a indefectível nota.
Cultura. Claro que a amiga já ouviu muitas vezes a frase: “Vinho é cultura”. Não poderia ser outra coisa. A bebida de reis e faraós, o salário dos soldados romanos, um sacramento secular, o ganha-pão de monges medievais e muito mais.
Na maioria dos lugares com uma história de mais de quatrocentos anos, a identidade dos seus vinhos está definitivamente emaranhada com as desses lugares. Os nomes (talvez complicados) dos vinhos franceses, italianos e alemães identificam ao mesmo tempo esses vinhos e suas cidades.
Quando colocamos um pouco deles em nossa taça estamos na verdade participando da evolução da cultura de um determinado lugar e de uma certa época.
Pense só: por que os Pinot Noir da Nova Zelândia, da Califórnia e da Borgonha têm sabores diferentes? Para responder a essa questão você tem que saber um pouquinho sobre as características do solo e do clima de cada um desses lugares e das leis que regulam a produção de vinhos em cada um deles e das práticas e tradições incorporadas pelos vinicultores dessas regiões. O produtor do vinho pode introduzir algumas diferenças estilísticas entre os vinhos, mas com freqüência elas são muito mais profundas do que essas práticas.
Ensopado de cordeiro e Chianti. Muscadet e ostras. Rioja e tapas. Essas combinações de vinhos e comidas não foram inventadas por nenhum chef, não resultam de nenhum experimento culinário. São produtos de um lugar específico e de uma época. Antes que o mundo do vinho ficasse globalizado, a maioria das pessoas bebia apenas os vinhos de sua vila, cidade ou, talvez, de suas regiões. Não surpreende, portanto, que aqueles vinhos tenham se apresentado com complementos perfeitos para as cozinhas e paladares locais.
Portanto, não é possível que os críticos de vinhos e mesmo os amantes da bebida ignorem a importância de entendermos de onde e quando vem o vinho no contexto da cultura mundial. Mas falta ainda uma camada nesse contexto.
Emoção e memória. Todas nós que gostamos de vinho tivemos, temos e vamos continuar a ter nossas experiências “perfeitas”. Aquele vinho no piquenique pra lá de simples, ao lado do namorado, aquela garrafa comprada na venda perto de casa resultaram num momento mágico. A luz da lua, o amor de sua vida (naquele momento) e o vinho que a cada gota parecia até melhor do que a hora desfrutada. São taças que você nunca esquecerá, mesmo com um novo namorado. Nunca deixe de fazer piqueniques.
Pois essa é a camada final do contexto que tentamos descrever. Ela compreende nossa psicologia, emoções e memória. Os melhores vinhos que provei foram quase sempre nas melhores companhias.
As amigas nunca me viram analisar sensorialmente um vinho na base de adjetivos e notas numéricas. Eu busco sempre um contexto que englobe os sentidos, as pessoas, a terra, as culturas, a história, a comida e a emoção. E dessa maneira não apago de minha memória vinhos fabulosos e namorados sofríveis. E vice-versa.

Sinais de mudança

Um amigo acaba de me presentear com um Cabernet chinês na certeza de que eu torceria o nariz. Não paro de ler sobre bons Chenin Blanc da Índia, sobre vinhos da Romênia, da Croácia, Grécia, Hungria, México, sem falar de conhecidos recém-chegados: os vinhos argentinos, chilenos, uruguaios, brasileiros, neozelandeses. E até da Inglaterra! Faz tempo que China e Índia produzem vinhos. A novidade é que indianos e chineses os estão consumindo mais e mais e os produzem com mais qualidade.
Meu amigo espantou-se quando disse que bebi com prazer o tal vinho chinês: um vinho honesto, uma demonstração de como equipamentos e técnicas modernas de produção se expandiram, resultando em produtos simples, baratos e decentes – em qualquer ponto do planeta.
O próprio presente do amigo já demonstra que alguma coisa está acontecendo. Noutros tempos eu ganharia um Bordeaux. Mas o chão de um sistema que parecia tão firme começa a tremer: vem aí uma reviravolta no mundo dos vinhos.
Tanto na Índia quanto na China o consumo de vinhos vem crescendo aceleradamente, em gordas taxas anuais de dois dígitos. Imaginem só uma fração dos bilhões de habitantes desses dois países em idade legal de beber transformando-se em fiéis consumidores de vinhos. Seria como jogar o Jô Soares num bidê cheio de vinho. Não sobraria uma gotinha.
Mesmo desconsiderando esses bilhões de novos admiradores de vinho, o mundo irá precisar de novos consumidores. Isso já está acontecendo se a França continuar a perder consumidores dentro de casa. Ela já foi o país que mais consumia vinho. Mas o francês hoje está bebendo 50% menos vinho do que em 1960, fato que está provocando uma pequena guerra civil entre produtores, governo e comerciantes. O aquecimento global é outro ator importante nessas mudanças: ele promete prejudicar bastante a produção do sul da França, sul da Itália, de toda Napa, Califórnia, e de toda a Espanha.
Essa revolução pode ser sentida também na mídia especializada, com as revistas bem estabelecidas, como a Wine Spectator, já sentindo os efeitos dos blogs. Existem na web hoje cerca de 20 milhões de blogs. E uma já influente parte desse novo meio é dedicada a vinhos. Só que seus autores e leitores apresentam atitudes e expectativas bem diferentes a respeito do vinho do que as adotadas hoje pelo coração da indústria do vinho (grupos de consumidores, críticos, restauradores, comerciantes). Vejam o que o filme “Sideways” promoveu na América: uma inesperada corrida atrás dos Pinot Noir. Vejam o crescimento dos vinhos orgânicos e biodinâmicos. O novo consumidor respeita, mas não adota os hábitos dos mais velhos ou do crítico laureado.
Sim, os recém-chegados também podem produzir vinhos simples, de qualidade e baratos. E daí? Mudanças acontecem sempre. E serão sempre bem-vindas. Então, leitor, brinde com vinho esses sinais. Mas evite os tênis chineses.

24.10.06

Perguntas e Respostas

O título já diz tudo: aproveito para atualizar a pilha de perguntas que chegam via e-mail.
Pergunta: Leitora quer saber se é verdade se aquela concavidade na base da maioria das garrafas de vinho serve mesmo para ajudar no serviço da bebida, criando uma “pega” para o vasilhame. E também se é verdade que quanto mais profunda essa depressão melhor é o vinho, pois ela teria relação com pressão.
Resposta: Essa concavidade é uma lembrança dos tempos em que o vidro das garrafas era muito frágil e ainda feito artesanalmente por sopradores. Foram eles que criaram essa depressão pensando em fortalecer a garrafa. Esse recurso foi muito útil principalmente para as garrafas de Champagne, onde a pressão interna é muito alta e constante. O vidro moderno é muito mais forte e as garrafas são produzidas industrialmente, por máquinas, sem a necessidade dessas concavidades. Falam também que elas ajudam a reunir sedimentos do vinho ou facilitar servir a bebida (isso se o leitor tiver polegares muito fortes). Bobagem. A verdade é que são mantidas por uma tradição puramente estética, embora não duvide que, quanto maior for a concavidade mais forte parecerá a garrafa (e o vinho). Logo: uma questão de estética e de marketing.
Pergunta: Dois leitores brigam pela mais antiga região demarcada de vinhos: um diz que é a França, outro que é a Alemanha.
Resposta: Ninguém ganhou. A mais antiga região demarcada do mundo foi criada em Portugal, no Douro, e tem 250 anos. Vamos lembrar que na antiguidade Portugal exportava vinhos para o Império Romano. Os vinhos franceses vieram muito depois.
Selecionei essa questão de propósito, pois o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto vai realizar uma degustação de seus vinhos no Rio no próximo dia 6 de novembro, a partir das 16 horas, na Casa de Cultura Julieta de Serpa, um palacete no Flamengo. Um importante acontecimento que vai marcar justamente os 250 anos dessa primeiríssima região demarcada. Para degustar as preciosidades a serem apresentadas, os chefs Francesco Carli (do Cipriani), Frédéric de Maeyer (do Eça) e Mónica Rangel, (do Gosto com Gosto, de Visconde de Mauá) criarão entradas e sobremesas especiais.
Pergunta: O vinho das garrafas magnum é exatamente o mesmo das garrafas comuns? Ou seja, o leitor acha que o vinho colocado nas garrafas de 1,5 litros não é o mesmo do que vai nas garrafas de 750 ml.
Resposta: Leitor, é o mesmo vinho, pode ter certeza. E é sempre o mesmo vinho o que vai para as meia-garrafas ou para as de 187 ml (também chamada de Pony ou Split – utilizadas quase que exclusivamente para espumantes) ou para qualquer um tamanhos de garrafas de vinho. Alguns produtores usam a magnum ou a jeroboão (3 litros), a Balthazar (12 litros) ou a Soverign (50 litros) ou para qualquer dos 13 tamanhos dessas garrafas, pois acreditam que o vinho nelas amadurece mais lentamente (ou seja: um recipiente mais apropriado para a guarda dos vinhos). Além disso, a produção dessas garrafas é muito pequena e por isso conseguem preços mais altos junto aos colecionadores.
Pergunta: Qual a melhor maneira de removermos uma rolha que suspeitamos esteja muito saturada, perigando de esfarelar-se dentro da garrafa?
Resposta: Em primeiro lugar, eu esqueceria imediatamente o saca-rolhas comum. Depois, tentaria utilizar aquele outro, de duas lâminas. É só colocar cada lâmina entre a rolha e o vidro do gargalo da garrafa e delicadamente forçar os dois dentes até quase o limite do cabo (ou da empunhadura, onde os dentes estão fixados). Com jeito, torcer para direita e esquerda e ir puxando. A rolha costuma sair.
Outra maneira é utilizar o saca-rolhas de injeção de gás: com uma agulha através da rolha injeta-se gás inerte na garrafa, resultando na expulsão da tampa. Uma versão mais comum é uma “bombinha” que, também através de agulha, injeta ar que acaba fazendo sair a rolha (e às vezes explodindo a garrafa).
Contudo, talvez nada disso dê certo. Então, relaxe. Tente tirar com o saca-rolhas comum. O que de cortiça se desfizer dentro da garrafa pode ser retirado com um filtro de papel (aquele utilizado para coar café) ou uma gaze de musselina. Nesse caso, não esqueça do decantador.
Pergunta: Leitora quer remover rótulos de vinho para utilizá-los como referência. Já tentou com água quente e fria, sem bons resultados. Existem produtos específicos para essa tarefa?
Resposta: O caso é que alguns rótulos são colados (cola comum) e outros adesivados (cola industrial, mais potente). Os colados são mais fáceis de retirar, pelo menos para mim. Coloco a garrafa em água morna por 20-30 minutos e, pronto, o rótulo se solta.
Os adesivados são bem mais difíceis. Precisamos de alguma coisa que derreta o adesivo. Tento com o secador de cabelo, coloco a garrafa no forno do fogão (numa temperatura bem baixa) por uns 10 minutos e depois uso uma lâmina (uma gilete) e experimento com muita calma a retirada do rótulo.
O segredo principal é tentar tudo isso primeiramente no contra-rótulo. Se funcionar nele, funciona no principal. O único problema é se a leitora resolver colecioná-lo também.
Pergunta: O que significa VDQS?
Resposta: “Vin Delimite de Qualité Superieure” (mais ou menos “Vinho Delimitado de Qualidade Superior”) é uma designação exclusivamente francesa relativa à qualidade dos vinhos entre “Vin de Pays” e “Appellation Contrôlée”. A categoria VDQS responde por menos de 1% da produção de vinhos na França e serve mais como um campo de testes para pequenas regiões viníferas, muitas das quais poderão ganhar, mais tarde, o status de Appellation Contrôlée. “Vin de Pays” é o vinho regional, uma categoria criada para encorajar a produção de vinhos que sejam superiores em qualidade ao “Vin de Table” (vinho de mesa), o mais básico nível de vinhos no país (apenas 12% da produção nacional). Continuando na mesma letra, temos também o VDN, abreviação de “Vin Doux Naturel”, um vinho que, como diz o nome, seria doce pela própria natureza. Só que, interessante, eles são adocicados artificialmente. Isto é: o açúcar contido na uva, que viraria álcool pela ação dos levedos, tem a sua transformação interrompida pela introdução de alguma aguardente. O fermento morre e sobra vinho com muito açúcar.
Pergunta: Leitora quer saber se o crítico Robert Parker Jr. é mesmo a pessoa mais influente no mundo dos vinhos atualmente.
Resposta: Poderia citar uns 50 nomes que hoje possuem influência direta sobre o estilo de vinhos que consumimos. Eles são ora vinhateiros, produtores, escritores, críticos, comerciantes ou empresários. O que temos de considerar é a palavra “direta”. Por exemplo, temos o empresário Georg Riedel, criador das famosas (e caríssimas) taças Riedel, que revolucionaram a qualidade dos copos onde os vinhos são servidos. Pois o famoso Riedel tem grande influência apenas na maneira através da qual o vinho é apresentado. Mas nenhum controle sobre o estilo dos vinhos.
Quanto a Robert Parker: não se pode negar que ele continua a ter enorme influência nos paladares dos consumidores, em particular dos norte-americanos e na maneira com que alguns vinhos são feitos ao redor do mundo, principalmente os Cabernet Sauvignon e os clássicos blends de Bordeaux. Advogado, transformou sua paixão pelo vinho em ganha-pão ao lançar em 1978 a sua newsletter (“Wine Advocate”) com avaliações de vinhos. Ele criou uma escala de 100 pontos para pontuar os vinhos, um sistema digamos simplístico que caiu no gosto dos norte-americanos. Uma nota 90 ou acima é sinal de status e venda certa para o vinho – o que leva produtores a serem acusados de adaptar seus estilos para agradar ao paladar de Parker. Ninguém pode negar o poder da influência desse norte-americano. Mas ela vem preocupando muitos produtores, que agora se distanciam de Parker. Sua influência vem lentamente diminuindo.
Mas para mim a mais importante pessoa a moldar do mundo dos vinhos hoje é você, sou eu, somos nós os consumidores.

19.10.06

Château Picard 2267

Sim, duas garrafas de um vinho da safra do ano 2267 foram vendidas por US$ 6.600,00 (R$ 14 mil). Mais caras do que o Château Petrus 2005 (US$ 3.300,00 a garrafa), considerado o vinho mais caro do mundo atualmente. Um absurdo de caras principalmente considerando que as garrafas do Picard 2267 estavam vazias. Sim, compraram apenas as garrafas. Mas como isso é possível? É que no mundo da ficção, amiga, tudo é possível. E, como veremos mais adiante, no mundo dos vinhos também.
Essas duas garrafas do século 22 pertenciam ao Capitão Jean-Luc Picard (na vida real, o ator Patrick Stewart), comandante da nave estelar Enterprise, da célebre série “Jornada das Estrelas”.
Elas aparecem como parte do cenário de uma seqüência festiva do 10º longa metragem da série, Nêmesis, filme de 2002. E conseguiram recentemente essa alta cotação num leilão da Christie’s de Manhattan, Nova York.
Só sei disso porque meu sobrinho, o Guilherme, é mestre em ficção científica. Sabe tudo sobre a “Jornada nas Estrelas”. Ele me revelou que o Capitão Picard nasceu e foi criado no vinhedo da família, em Labarre, França. Seu pai é um excelente vinicultor e cuida dos vinhos com seu filho mais velho, Robert. Labarre é um lugar naturalmente ficcional, embora exista um bocado de La Barre: nos departamentos de Jura, de Haute-Saône, na Vendéia (La Barre-de-Monts) etc.
Essas garrafas faziam parte do leilão 40 Anos de Star Trek: a Coleção, realizado de 5 a 7 de outubro passado para celebrar o quadragésimo aniversário da série. O leiloeiro reuniu mais de mil lotes com material da série na televisão e no cinema, com figurinos, objetos de cena (como as garrafas do Château Picard), cenários, modelos das várias Enterprises e das naves alienígenas e das estações espaciais. O destaque no leilão foi a cadeira do primeiro comandante da nave estelar, o Capitão James Kirk, estimada entre 8 e 12 mil dólares.
Mas, diacho, porque estou falando de garrafas vazias de vinho do século 22? Existe um mercado para elas, colecionadores vidrados pela “Jornada das Estrelas” e devidamente enricados que as compram. Com essas garrafas, objetos de cena etc. embarcam num mundo imaginário. Nada de mais nisso. Se gostassem de vinhos, as garrafas deveriam de estar cheias, penso eu.
Essa nota poderia servir apenas como uma curiosidade. Mas ela também funciona como uma lembrança que infelizmente nada tem de ficcional. Um símbolo que se origina do filme onde elas aparecem: Nêmesis.
Nêmesis é a deusa grega da ética, da retribuição, da justiça distributiva, que lutava contra, por exemplo, o excesso de riqueza ou de felicidade de uns e a extrema pobreza e o infortúnio de outros. Estaria desempregada no Brasil.
Pois no filme, a história é principalmente a das terríveis conseqüências que teria a trama de substituir o Capitão Picard, o nosso “mocinho”, por um clone. Claro que o “bandido” é o clone, cujo objetivo era o de levar à Terra uma forma de irradiação capaz de eliminar toda a vida em nosso planeta, me conta o Guilherme.
Onde entra a Nêmesis? Temos um Capitão Picard bom, que vive para salvar a Terra e planetas dessa e de outras galáxias. E tempos um clone seu: um Picard mau, capaz de nos destruir. A justiça distributiva, que impede excessos, equilibra tudo, funcionou: o Picard mau é destruído à muito custo.
Pois temos também clones no mundo dos vinhos. São as uvas e fermentos geneticamente modificados. É sempre bom sabermos o que estamos comendo e, no caso, bebendo. Um simples suco à base de soja, por exemplo, pode conter um elemento estranho, algo que não foi devidamente pesquisado e que ninguém pode afirmar que vai se entender adequadamente com o nosso organismo. O pequeno momento de prazer proporcionado pelo suco pode muito bem roubar anos de nossa saúde.
O próprio Picard, o verdadeiro, era criticado pelo seu irmão vinhateiro, Robert, por beber synthehol, nome genérico lá naquelas alturas para bebidas alcoólicas artificiais, cujos efeitos intoxicantes eram todos ilusórios e não químicos (isso no vasto repertório do mundo criado pela série). Segundo seu irmão, Picard teria perdido o seu paladar pela “coisa verdadeira”, o vinho, pelo fato de beber synthehol, a ilusão.
Você deve ainda lembrar o bafafá que deu (e vai continuar a dar) essa história do governo aprovar o plantio de soja transgênica. Como é assunto que resulta na qualidade do que colocamos na mesa para comer e beber, que mexe com nosso prazer e saúde, achei que as amigas deveriam se interessar.
Frankstein. Esse você conhece: é aquela criatura, feita de partes de outros humanos, e que, ao final, se volta contra seu criador.
Parece um grão como qualquer outro. Mas inseriram nele um ou mais elementos que o transformam numa outra coisa, num transgênico – um alimento geneticamente modificado, resultado da transferência de um gene de um organismo para outro. Aqui também se opõem dois lados.
Cientistas descobriram como alterar diretamente os genes (unidades hereditárias ou genéticas situadas nos cromossomos e que determinam as características de um indivíduo ou de um alimento), permitindo que adquiram vantagens possuídas por outras espécies de plantas, animais ou humanos. Por exemplo, uma variedade de milho geneticamente modificada pode conter o gene tirado de uma bactéria que produz um tóxico químico que combate lagartas, larvas, dando ao grão uma defesa contra insetos nocivos. Essa tecnologia pode também promover colheitas mais volumosas que não necessitem de muitos pesticidas. Ou, ainda, conseguir plantas que se desenvolvam melhor sob condições difíceis, como as secas.
A oposição acha, porém, que a engenharia genética é uma tecnologia radical, que ultrapassa as barreiras genéticas entre humanos, animais e plantas. Ao combinar genes de espécies diferentes e não relacionadas entre si, comprometendo os códigos genéticos, criam-se novos organismos que passarão suas alterações adiante, através da hereditariedade. Os cientistas hoje estão retalhando, inserindo, recombinando, rearranjando, editando e programando material genético. Os genes de animais e mesmo humanos estão sendo inseridos em plantas ou animais, criando formas transgênicas nunca imaginadas. Pela primeira vez na história os seres humanos estão se tornando os arquitetos da vida. Engenheiros biológicos criarão dezenas de milhares de novos organismos nos próximos anos. Assim, a engenharia genética causa preocupação de ordem ética e social sem precedentes, fora desafios sérios para o meio ambiente, a saúde humana e animal e para o futuro da agricultura.
Onde está a Nêmesis?
Sempre cismamos com a tentativa de alterarem geneticamente as uvas. Mas será que o vinho feito de uvas geneticamente modificadas terá o mesmo sabor, o mesmo valor? Será que os alimentos em geral serão mais seguros? Os consumidores têm o direito e o dever de ter dúvidas e de saber mais. Na Inglaterra uma pesquisa consultou 37 mil pessoas. E 93% delas acharam que a tecnologia genética é movida por lucro e não pelo interesse público. Para eles, só produtores agrícolas (e seus fornecedores, os laboratórios) é que lucrariam com essa prática. Nós, consumidores, ficaríamos com os prejuízos.
Na Europa, Austrália e Nova Zelândia há séria oposição ao uso de uvas e fermentos (para uvas) geneticamente modificados. Mas nos Estados Unidos, o americano já consome soja e milho transgênicos. E recentemente colocaram no mercado um fermento (o ML01) que pode ser utilizado legalmente nas uvas (e, portanto, na produção de vinhos).
Ou seja, daqui um pouco vamos ter um clone do Capitão Picard em forma de uva e, naturalmente, sem que nada nos seja informado nos oferecerão um vinho dessa variedade mutante. Será uma Cabernet Franc ou Francstein? Será que passaremos algo parecido com o synthehol consumido na Enterprise?
Viu, amiga, como o mundo é pequeno e redondo, por mais distantes que sejam as galáxias? Começamos com um vinho do século 22, que não existe, mas que consegue aqui e agora um preço estratosférico.
Continuamos com a luta do Capitão Picard contra o seu clone. E já que falávamos de vinhos e seres falsos, aproveitamos o embalo (ou o empuxo, em se tratando de naves interestelares), para relembrar um perigo que ronda aqueles que, como nós e o irmão de Picard, o verdadeiro vinhateiro, insistimos em beber a “coisa verdadeira”.
Para dúvidas sobre bebidas e viagens especais clique para a Soninha Melier (e o Guilherme) via soniamelier@terra.com.br

16.10.06

Hermitager

Volto a uma história, já contada aqui, apenas para cumprir o prometido na coluna passada, completando a série de “casos” envolvendo a uva Syrah. É com essa uva que são feitos os tintos mais famosos da mais famosa “appellation contrôlée” do norte do Ródano, o Hermitage.
Um dos contos de Cross Channel (“Através do Canal” – não sei se já saiu uma edição brasileira desse livro) do premiadíssimo inglês Julian Barnes (“O Papagaio de Flaubert”, “Metroland”, o recente “Um toque de limão”, entre outros) é sobre duas solteironas inglesas que sem querer se envolvem com a Syrah. Compram uma propriedade no Médoc, em Bordeaux, para lá passar o resto dos seus dias admirando a beleza da paisagem ao longo do rio Gironde, com suas imponentes e históricas propriedades, como Latour e Margaux.
Mas recuperar as videiras e voltar a produzir um bom vinho seria outra e importante atividade da dupla. Resolvem estudar a matéria a fundo e começam a conhecer a realidade da cultura local. Na época, início do século XX, Bordeaux sofria com os desastrosos impactos da phylloxera, a praga que devastou quase todos os vinhedos não só da França, mas em quase toda a Europa. A recuperação foi muito difícil. Safras boas e vinhos bons eram acontecimentos improváveis. Como saída, uma parcela de vinicultores bordaleses e principalmente os comerciantes, importadores e engarrafadores adotaram como prática misturar ao vinho bordalês o Hermitage – um vinho potentíssimo, encorpadíssimo, de vida longuíssima. O hábito gerou até o verbo hermitager, um sinônimo de fraude. Na época, os vinhos eram vendidos em barris e só engarrafados depois de devidamente batizados com a Syrah do Ródano. As inglesas recusam-se ao embuste e conseguem com muito trabalho e seriedade produzir vinho legítimo, com o sabor da sua terra. honrando a sua geografia.
Mas o embuste acabou? Se antes era hermitager hoje temos o parkerizar, onde os vinhos, utilizando-se de técnicas e manipulações as mais variadas, é levado a ter mais taninos, mais álcool, cor mais profunda, mais sabores de frutas, mais corpo. Tudo isso para cair no gosto do maior crítico de vinhos do mundo, Robert Parker Jr. E, assim, ganhar as notas mais altas, ter o preço elevado e vender mais.
Não que Parker compactue com essa prática. Mas os produtores sabem de seus gostos e da influência de suas notas. Logo, “parkerizam” seus vinhos. É o “hermitager” contemporâneo.
O nome Hermitage (“Ermida”), título do conto de Barnes, já mostra o gato com rabo de fora. Ermida em francês é “ermitage”, sem o H. O nome do vinho ganhou essa marca inglesa desde o século XVII: um rastro dos que praticavam o “hermitager”. Hoje, “parkerizar” é prática do mundo globalizado. Existe em qualquer hemisfério com o vinho perdendo os valores conferidos por sua terra, o que foi evitado pelas solteironas do conto de Barnes.