3.9.10

As taças de Helena e de Clara

Como segurar taças de vinho? Se a Taís Araújo segura as taças que tomou durante a novela pelo bojo, então é assim que devemos fazer, não é? Mas, olha, a Clara (Mariana Ximenes), que diferente da “Helena” de “Viver a Vida” é uma periguete, segura pela haste. A Clara seria mais bem educada, pelo menos enologicamente? Aparentemente, não. Já a Helena, Top Model, vem de uma família bem preparada, sua mãe é dona de uma pousada, sabida nas artes de servir bem. Helena tem vivência internacional, gira em ambientes refinados. Quem estará certa? E quem vai apostar que Helena já não tenha segurado a taça pela haste e Clara pelo bojo?
O caso é que as novelas, ao contrário do que se pensa, acabam sendo escolas eficientes. Há alguns anos, a italiana Eliana La Ferrara, economista de desenvolvimento, baseada na Universidade Bocconi, em Milão, analisando pesquisas antropológicas, reparou que brasileiras pobres começaram a decidir ter famílias menores (portanto, ter menos filhos), a partir do que viam nas nossas novelas.
La Ferrara e mais dois outros economistas, Alberto Chong e Suzanne Duryea, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, partiram então para verificar se as novelas tinham realmente o poder de promover grandes alterações demográficas. E verificaram que, região por região brasileira, a partir da chegada das novelas da Globo, a taxa de nascimento decresceu. E descobriram mais: as crianças começaram a ser batizadas com nomes dos personagens da novela. Os telespectadores se identificavam fortemente com seus personagens, praticamente transformando-os em membros de suas famílias, contagiando-se com seus comportamentos. Daí, talvez, esse excesso de Maicons e Deivids.
Isso não acontece apenas com as novelas da Globo. Dois outros economistas e catedráticos, os americanos Emily Oster e Robert Jensen, verificaram que também na Índia, com o crescimento do acesso à TV a cabo, o índice de fertilidade dos casais também decaiu. E, mais, as indianas começaram a ter mais autonomia, a protestar com veemência contra a violência de seus maridos e a autorizar que suas filhas se matriculassem em escolas.
Na Índia, como no Brasil, as novelas costumam retratar vidas em centros urbanos e entre gente de classe média alta, na qual os personagens femininos trabalham fora e são donas de seus narizes – vidas que lá, como aqui, acabam se tornando aspirações.
Além do menor número de bebês, as novelas seriam a origem de um número maior de divórcios, de uma consciência maior contra abusos, violências. É de se louvar que estejam sendo utilizadas por grupos ativistas como os principais veículos educativos, para tratar de assuntos como preconceitos de várias ordens (racial, religioso e social, entre eles), para educar melhor sobre problemas de saúde e de comportamento (HIV, tetraplegia, síndrome de Down, homossexualismo etc.).
Não importa se as novelas acabem sendo a enésima versão de Romeu e Julieta misturada com Hamlets, Macbeths, Lears, Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira no liquidificador criativo dos seus autores. São ainda o principal entretenimento do público em geral, com o poder de influenciar o cotidiano das pessoas. Antes, o núcleo dos ricos só bebia uísque e, nas festas, champanhe. Entre os pobres, só cerveja e as branquinhas. A partir dos anos 90, o vinho começou a aparecer e hoje os bens de vida tomam seus vinhos com freqüência e espumantes a toda a hora.
Bem, acho que me alonguei demais. Quem quiser ler mais sobre o poder das novelas procure aqui.
Afinal, quem está certa, Helena ou Clara? Segurar pelo bojo ou pela haste? Se dependermos das novelas, estamos fritas. Já vi novela com um protagonista fazendo um verdadeiro enochato. Ele desprezava “vinhos com a Pinotage”, não deixando de deitar regra ensinando que Pinotage é um cruzamento das francesas Pinot Noir e Cinsaut.
Sei que muito do que os personagens fazem, dependem de marcações da direção, da produção etc. Mas resulta também do trato social ou da base educacional de cada ator.
Tenho várias razões para preferir segurar pela haste. Em primeiro lugar, eu, Helena, Clara e todas nós teríamos dificuldades em apreciar as cores de nossos vinhos segurando a taça pelo bojo. E, fora a beleza dos matizes, a aparência dos vinhos diz um bocado sobre eles.
Por exemplo, se o vinho é de um branco pálido, provavelmente trata-se de um branco jovem e foi maturado em tanques de aço e não em carvalho. Você saberá de cara que a ausência do carvalho será sentida no sabor.
Já se o vinho é de um dourado profundo, quase com certeza será um branco com alguma idade ou oxidado (assim como o marido rico da Helena).
E se Helena continuasse a segurar o vinho pelo bojo, arriscaria dele ficar mais aquecido do que o recomendável. Seria que ela iria querer provar de um branco morno? A haste foi criada exatamente para isso: evitar que nossas mãos aquecessem a parte bojuda da taça, fazendo o mesmo com o vinho.
Fora isso, tenho mais uma razão, essa de matar: segurar pela haste é um bocado mais elegante. Talvez você conclua que as Top Models, na vida real ou nas novelas, têm lá seus tropeços. Ponto para a bandida da Clara: elegância é fundamental. E não se importe muito, amiga, pois no final sabemos que o lobo mau vai morrer e vamos todas brincar novamente na floresta.
Da Adega
Yosef e o Palhete de Ourém
. Um leitor, provavelmente espanhol, Yosef Arad, achou uma coluna publicada, imaginem, em julho de 2006, O que houve com o Clarete? Ele está procurando
"...el divino Clarete como lo conoci por primera vez en Portugal hace mas de 25 anios - Color Rubi, dulzon y suave como el terciopelo, igual a la mujer amada que lo compartio conmigo con queso cremoso portugues, uvas moscatel heladas y caviar rosado, en fin una tarde de amor y clarete...quiero recordarme de ese sabor pero no lo puedo encontrar en ningun mercado, sera que desaparecio como muchas otras cosas del siglo pasado ?"
Como na coluna falo de vários tipos ou de interpretações de Clarete (Claret, Clairet, Clairette, Clarete propriamente), o fato de ter provado desse vinho cor rubi, doce e suave, difícil de achar, acho que ele está se referindo ao Palhete de Ourém, uma especialidade portuguesa cuja produção tem séculos de história. Brancos, tintos e palhetes possuem uma linha cronológica de 800 anos, dos tempos em que D. Afonso Henriques celebrou uma série de acordos com a Ordem dos monges de Cister.
Mas para consegui-lo talvez Yosef precise viajar até Ourém, na sub-região da Alta Estrematura, Portugal. Falar em vinhos de Ourém é falar do “Medieval de Ourém”, é falar no vinho palhete. Um “vinho branco pintado com uvas tintas”, produção tradicional nas regiões dominadas pelos monges da Ordem de Cister e que se tornou, com o tempo, exclusivo da zona de Ourém.
Este vinho, hoje, fez com que se criasse uma DOC, denominação de origem controlada. Os produtores têm que ter as suas vinhas registradas. Para produzir o “Medieval de Ourém” são necessários 80 por cento de uvas brancas Fernão Pires e 20 por cento de uvas tintas da casta Trincadeira. As uvas brancas são colocadas em vasilhas de madeira. As uvas tintas são esmagadas e permanecem entre cinco a oito dias em grandes vasilhas, curtindo, de modo a que o líquido absorva a cor escura da casca. Após este processo, as duas qualidades são misturadas, permanecendo cerca de um mês nas barricas. Depois da fermentação, o vinho é passado a limpo. Existem 12 produtores deste vinho, sendo o maior a “Divinis” com o seu “Medieval”.
Yosef: o melhor é
viajar até a Estremadura. Tenho certeza que, lá, você encontrará o doce Palhete cor de rubi e terá mais uma tarde de amor.

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