18.12.10

Entre a poesia e o micróbio (parte 1)

Vinho pode ser a prova constante de que Deus nos ama e quer felizes, na formulação de Benjamim Franklin. Ou poesia engarrafada, como queria Robert Louis Stevenson. E talvez isso explique a razão de existir dos que escrevem sobre vinhos. Mas estamos aqui para tornar mais simples esse conhecimento, desmitificá-lo. Por isso, pergunto: o que você sabe sobre os micróbios que habitam essa mística bebida?

Pois é, os micróbios, esses pequeníssimos organismos que vivem em todas as partes: na água, nos oceanos, no ar, dentro de rochas. Adotam formatos diversos: bactérias, fungos, archeas, protistas (que podem se auto nutrir, pois possuem clorofila e fazem a fotossíntese), plantas (como as algas verdes, as chlorophyta) e animais, comos os plânctons, base da cadeia alimentar dos ecossistemas aquáticos, e que serve de alimentação até para as baleias

Esses microorganismos são fundamentais: transformam matéria orgânica em sais minerais, água e dióxido de carbono, o nitrogênio da atmosfera em amônia, um processo essencial para a vida, pois é dessa maneira que vamos obter os formadores de DNA e RNA e os amino ácidos das nossas proteínas. Por isso, são explorados pela turma da biotecnologia na preparação de alimentos e bebidas e em técnicas de engenharia genética. Mas nem tudo é assim azul maravilha: temos os micróbios patogênicos, nocivos: invadem outros organismos causando doenças, que podem matar pessoas, animais e plantas.

No caso dos vinhos, vou logo avisando que não há micróbios nocivos para nós. Os principais são:

1. Saccharomyces cerevisiae – mais popularmentre conhecida como levedo, o fermento, pertencente ao reino dos fungos, utilizada na produção de pão, cerveja e vinhos. O que ela faz deixa o vinhateiro, o produtor do vinho envergonhado e certamente, em segundo plano. É a principal força em todo o processo de fermentação, que na verdade é apenas a hora da bóia do ponto de vista do levedo. Ele usa o açúcar do suco da uva como alimento e excreta etanol e dióxido de carbono (Saccharomyces significa literalmente “fungo do açúcar”, pois ele só pode sobreviver da sacarose).

Pronto: eis o vinho, feito por um fungo presente nas uvas em todos os vinhedos, o mesmo utilizado há séculos para fazer o nosso pão de cada dia.

2. Oenococcus oeni. Quem gosta de pipoca de microondas a conhece, pois um de seus subprodutos, o Diacetil, o agente promotor do sabor e aroma da manteiga. Durante a fermentação, enzimas existentes no levedo criam ésteres de sabores e liberam compostos de aroma transformando aquele suco numa bebida resplandescente. Mas existe um importante microorganismo que é ator importante em estilos de vinhos muito apreciaods. É o nosso Oenococcus oeni, na prática o sub-chefe do vinhateiro, pois responde pela tão falada fermentação malolática (ou “malo” no jargão dos expertos). Ele consegue sobreviver onde poucos organismos o fazem: grande quantidade de etanol, a baixa alcalinidade – ou pH -, acidez alta e poucos nutrientes). Pois alimenta-se do ácido existente no vinho. Daí ser chamada de bactéria malolática, nome tirado da sua principal função: converter o ácido málico em ácido láctico. O ácido málico é um dos dois principais ácidos encontrados no vinho (ou outro é o tartárico). E é igualmente o principal ácido componente das maçãs (do latim, mālum, maçã) e ele é, como podemos adivinhar, muito acres, azedo, ácido, enfim. Com o nome também derivado do latim (lac, lact, leite), o ácido láctico é a estrela principal entre os produtos derivados de fermentados do leite, como o iogurte. É muito menos ácido. O primeiro é bem mais forte que o segundo, logo a tal de fermentação malolática reduz a acidez (e aumenta o pH) dos vinhos, amaciando arestas e acrescentando diferentes sabores. Graças a ele conseguimos Cabernets mais redondos e Chardonnays amanteigados.

3. Lactobacillus. É uma família de primas da Oenococcus oeni. Lamentavelmente, comportam-se como as Irmãs Metralha, infernizando a vida do produtor. A Lactobacillus kunkeei, (ou “feroz lactobacillus”) pode destruir todo o processo de fermentação. A Lactobacillus fructivoran, apelidada de “Bolor de Fresno” (Fresno, um município da Califórnia), pode entupir uma garrafa de vinho com filamentos parecidos com algodão. A Lactobacillus hilgarddi pode deixar o vinho com aroma de rato morto (os tintos, em particular). Várias dessas Lactobacilli, são apontadas como responsáveis por fermentações interrompidas. Porém, algumas delas conseguem ser utilizadas na fermentação malolática.

4. Schizosaccharomyces pombe. Ela se reproduz por fissão, dividindo-se: daí o “schizo” em seu nome (do grego schizein: fender, separar, esquizo – o de “esquizofrenia”, em medicina). Já o “pombe” de seu nome vem do idioma Banto e significa cerveja, (foi originalmente isolado de uma cerveja africana). Ela é capaz de metabolizar o ácido málico em etanol. Se o suco de um vinho ainda está muito ácido, quem sabe jogar nele um pouco da nossa S. Pombe? O problema é que ela tem o péssimo hábito de deixar odores nada recomendáveis. Que fazer? Produzem uma espécie de sachê gigante cheio da S. Pombe; jogam-no no mosto, monitoram o pH e tiram fora o sachê logo que o pH aumenta e antes que o mal cheiro se instale, claro.

5. Brettanomyces. O pessoal carinhosamente a chama de Brett. Mas todo cuidado é pouco. Pode ser que venha a colaborar com o vinhateiro, mas frequentemente é uma adversária. É também um levedo, de uma família grande, reunindo nove “irmãos” e “irmãs”, que podem infestar o vinho com notas de esgoto, suor de animal. Também podem, ocasionalmente, deixar traços de couro e especiarias. Alguns enófilos acham que Brett no vinho é defeito. Outros já acham que ela pode dá caráter diferenciado ao vinho. Caso você perceba certo bodum de animal ou de estábulo num tinto, é provável que a nossa Brett esteja presente. Negociar um pouquinho de Brett no vinho e esperar aquelas prometedoras notas de cravo, pode ser muito perigoso. O produtor teria que primeiro isolar aquele dos “irmãos” ou “irmãs” que fosse do bem, tarefa tida como improvável. Mesmo que tenha dado a sorte de encontrar uma Brett boazinha, terá de tomar cuidado, pois em grandes quantidades o vinho pode ficar desagradavelmente desequilibrado.

Brettanomyces pode fixar residência em qualquer lugar na adega: em barris, em tanques de fermentação, em prensas etc. É um fungo muito arisco. Para livrar-se dele para valer, o nosso produtor vai ter que absolutamente tudo, paredes, assoalhos, tetos, barris – e fazer isso assiduamente. E isso só quando todos esses equipamentos não estejam operando. Daí que a maioria dos produtores não encoraja sequer negociar com as Brett, mesmo as do bem.

Mas elas podem ser prevenidas, controladas. Taí uma das razões pelas quais os famosos sulfitos são utilizados: eles inibem o crescimento desse levedo. Contudo, a nossa Brett pode e frequentemente consegue escapar dessa “bala de prata”. A única maneira segura de eliminá-la é através do processo de filtração, que muitos vinhateiros temem, pois pode danificar o produto final (além de ser bem caro). Os produtores norte-americanos, sul-africanos e neozelandeses podem usar um conservante, o Dimetil Dicarbonato, DMCD – cujo emprego no resto do planeta é proibidíssimo. Esse composto é um esterilizante poderoso, muitas vezes utilizado em lugar dos sulfitos.

E agora, o que fazer quando você encontra um vinho infectado pela Brett? Em primeiro lugar, esclarecemos que não é, de modo algum, tóxica. Apenas fede. Portanto, não se incomode se você tiver entornado alguns goles de um vinho que só depois percebeu estar com aquele aroma de cavalariça.

Se a “infecção” não é muito intensa, ela pode sumir algum tempo depois da garrafa aberta. Embora sem provas técnicas, acredita-se que a exposição ao ar elimina ou dilui os levedos que produzem o mal cheiro. Caso a intensidade não tenha sido reduzida ou eliminada, o melhor é jogar o vinho pelo ralo. Ele não vai dar para ser aproveitado nem para cozinhar. Sua comida pode ficar cheirando a chiqueiro, já pensou?

Semana que vem Pediococcus, Acetobacter, Kloeckera/Hanseniaspora, Botrytis cenerea e alguns membros da família Saccharomyces cerivisiae estarão com vocês.

Da Adega

Verão no Due Cuochi. O restaurante italiano, dos chefs Paulo Barros e Ivo Lopes, vem com novos Tratares de atum, salmão ou robalo, leves e frescos para enfrentar o verão. O cardápio de almoço da casa muda diariamente e inclui entrada e sobremesa e ainda traz vários tipos de saladas, massas, risotos, carnes e peixes. A casa é premiada pela Veja São Paulo, pela Prazeres da Mesa e pela Go'Where Gastronomia. Saiba mais aqui.

O Velho Mundvs da Valduga. Depois de escalas no Chile e na Argentina, a linha Mundvs da Casa Valduga apresenta agora rótulos portugueses, em particular da região do Alentejo, uma das mais tradicionais zonas vitivinícolas do mundo, com uma seleção das uvas Syrah, Aragonês e Alicante Bouschet. Está resolvido com que vinho o nosso bacalhau natalino fará companhia. Veja mais.

Pericó, o terroir da altitude. 2010 será o ano da 4ª. Safra de Vinícola Pericó, no Vale de São Joaquim, Santa Catarina. Nesse curto espaço, a Pericó só fez ganhar prêmios: medalha de ouro no Concurso Mundial de Bruxelas, com o seu espumante Cave Pericó brut 2010. O Cave Pericó Brut Branco e o Rosé são os primeiros espumantes das terras de altitude e da neve catarinense.

Os 70 anos do vinho da missa. Além de festejar o seu centenário esse ano, a Salton celebra também 70 anos de elaboração do vinho Canônico, produzido pela vinícola desde 1940 e atendendo a igrejas de todo o país. São 300 mil garrafas anualmente, 80% das quais comercializadas para as paróquias. Os 20% restantes vão para consumidores que apreciam o vinho para acompanhar sobremesas ou como aperitivo.

No início, a Salton esta localizada no Centro de Bento Gonçalves, diante da Igreja Matriz de Santo Antônio. Na época, não se produzia um vinho exclusivo, destinado às missas, problema resolvido pelo padre da igreja, um espanhol de nome Franco, com Nini Salton (Antônio Salton, um dos fundadores da vinícola). O padre passou o modo de elaboração do vinho Canônico, que, segundo a matéria que meu amigo Roldão Simas enviou, é preparado da mesma forma em todo o mundo. O vinho Canônico é um corte de 50% de Moscato, Saint Emilion (40%) e Isabel (10%). É um vinho rosado, licoroso, com 16% de álcool. É a mais antiga marca comercial para esse particularíssimo vinho e que necessita da autorização da Cúria Metropolitana para a sua elaboração e venda. Saiba mais sobre a Salton e o Canônico no site.

Johnnie andou e Sônia dançou. Pessoal, me perdoe: não deu para participar da degustação dos Johnnie Walker (Red, Black e Green Label) trazidos pela Diageo para o Dionísio Clube de Vinhos. Perdi também a palestra que Colin Pritchard deu sobre esses néctares, suas características visuais e olfativas. Pena. Mas fique de olho no Dionísio, que está no pedaço para promover a cultura do vinho e tem uma infra com sommeliers e profissionais qualificados. É o nosso “andador” é tudo de bom.

Soninha mudou. Pois não é que um outro micróbio, o da mudança, me pegou. Saí de uma casa imensa em Secretário e fui parar em... Secretário. Só que numa casa e terreno bem menores: reduzi trabalho e despesas. O panorama da Serra de Petrópolis, o clima ameno, a nota rural, o falar amineirado ainda estão presentes. Nada de “bandas largas”. Navegamos mesmo é “por essas bandas”. E é por elas que voltamos às amigas leitoras.

Nenhum comentário: