Lá pelos idos de 1967, José Carlos (Carlinhos) Oliveira, um dos cronistas mais populares e polêmicos do Rio de Janeiro entre 1960 e 1980, foi ver um show numa nova casa da cidade, uma cervejaria “gigantesca” chamada Canecão. O show era o da banda dos Herman’s Hermits, que fazia sucesso na esteira dos Beatles. Jovens trepavam nas mesas para ver a banda e dançar.
Uma garota “gentilmente envolvida numa minissaia, de vez em quando se abaixava para esticar as meias. Era um gesto displicente, estudado e atrevido. Uma espontaneidade cruel, de acordo com a conduta das mocinhas de hoje”. E o Carlinhos lá, “sentado ao pé de uma dose de uísque”, só olhando.
A conclusão dele foi que se o show fosse dos Beatles, “veríamos o maior festival de bumbum de todos os tempos”.
Assim, podemos dizer que a safra de 67 na noite carioca, pela mostra dada no Canecão, destacou os bumbuns das moças.
Safra pode ser o processo físico de colher a uva e fazer o vinho - e, nesse caso, o nome mais apropriado é colheita.
Mas é principalmente o ano em que um determinado vinho foi produzido, o que normalmente vem registrado nos rótulos das garrafas. Corresponde também às características daquele ano. A safra foi boa, foi ruim, o vinho é bom, é medíocre. Na noite carioca, a característica da safra de 67 foi o bumbum das moças, na avaliação do Carlinhos.
Essas características derivam em sua maior parte das condições climáticas na região aonde a vinha foi cultivada e suas uvas colhidas. Mas dependem igualmente do tipo de solo e da variedade da uva plantada nele: como reagirão à exposição ao sol, às chuvas, às geadas eventuais; qual a capacidade de drenagem desse solo; como a videira reage a uso de determinados pesticidas; qual foi o acerto das podas: resultaram em maior exposição ou em excessiva proteção contra o sol?
Os melhores vinhedos em regiões de solo bom são aqueles menos sujeitos a variações sazonais. Conseguem assim manter alta qualidade consistentemente.
Cada variedade de uva reage de modo diverso às condições de tempo e do terreno. Cada espécie tem seu tempo de floração, frutificação e amadurecimento. Está, portanto, à mercê das estações e dos cuidados que o vinicultor terá com ela ao longo do ano.
Assim, a receita para o vinho é bons frutos, bom solo, bom vinicultor e bom tempo. Basta apenas um desses ingredientes ser classificado de excepcional para termos um vinho igualmente excepcional.
No nosso hemisfério sul, a data da safra corresponde ao ano em que as uvas foram colhidas, mesmo que o ciclo de crescimento da videira tenha na verdade acontecido no ano anterior.
No hemisfério norte, a data da safra corresponde tanto ao ciclo completo de crescimento da vinha como também ao ano da colheita.
Qualificar uma safra não é nada fácil. Comerciantes e críticos de vinho provam os vinhos muito novos, ainda em barris, como os vinhos da safra de 2004 de Bordeaux, colhidos em outubro, depois prensados, fermentados, levados aos barris e provados nas duas primeiras semanas de abril. Como estarão esses vinhos, em garrafas, daqui a 2 anos, daqui a cinco, dez, vinte anos?
As tabelas de safras podem ser úteis, mas são falíveis. Por exemplo: você lê numa tabela que um vinho de Graves da safra de 1990 (Graves é uma importante região de Bordeaux, famosa por produzir tanto tintos e brancos de grande qualidade) recebeu de um crítico a nota 90 (90 de um máximo de 100; excelente marca) e está hoje, 2005, pronto para ser bebido. É uma generalização arriscada, pois essa região tem centenas de produtores, cada qual com vinhos de estilos diferentes, cada qual sujeito a solos e subclimas diversos entre eles.
E não se pode afirmar que o ano de 67 para os vinhos foi bom ou mau. Tudo depende principalmente das condições climáticas na região onde as uvas foram colhidas.
Pois Carlinhos de Oliveira, que escreveu durante 23 anos no Jornal do Brasil, foi o crítico das várias safras da vida boêmia do Rio de Janeiro. É considerado o primeiro e talvez único cronista até hoje a construir uma narrativa panorâmica da boemia brasileira. Através dele temos notas críticas sobre bares e restaurantes que fizeram época. O Vermelhinho, por exemplo, em frente à Associação Brasileira de Imprensa, onde, nos anos 50, era o “quartel-general do existencialismo verde-amarelo”.
Dos anos 50 em diante, Carlinhos comenta os bares do Centro da cidade (como o Vilariño, o Juca’s Bar, o Amarelinho), passando pelo Lamas e o Taberna da Glória e por Copacabana, quando ela começou a florescer, com safras ótimas de bares e restaurantes: Vogue, Sacha’s, Fred’s, Plaza, Fiorentina, Alpino, Le Rond Point, Michel, Drink, Zum-Zum, Au Bon Gourmet, Alcazar, Lucas, as boates do Beco das Garrafas e toda aquela influência do jazz.
Depois, chegou a histórica safra de Ipanema, onde foi até acusado de criar a mitologia do bairro e provocar a especulação imobiliária na região. Não vamos esquecer que ficava lá o Veloso, onde Tom e Vinícius viram passar aquela coisa mais linda. O Veloso é hoje mais um ponto turístico da cidade e mudou até de nome, por isso: para um óbvio Garota de Ipanema.
Sobre um bar e boate de Copacabana, o Le Bateau, Carlinhos fala, numa crônica também de 1967, que “As meninas estão soltas. São lindas. Dançam à maneira das deusas de outrora... elas dominam o ambiente. Próximas e inalcançáveis. Distantes e acessíveis. Inocentes e cruéis.”
Ele até arrisca antecipar como será a futura safra. “A safra de 1970 vai ser fogo! Compreendemos com clareza que cada ano implica um novo tipo de mulher. Novo por dentro e por fora.”
Enquanto Carlinhos aprecia a leva de 1967 no Bateau, vejo numa tabela que a safra desse mesmo ano não resultou muito boa para os tintos de Bordeaux, mas os brancos doces saíram melhor.
Muita gente utiliza safra em sua versão inglesa, “vintage”, uma palavra que deriva do latim, “vindemia”, vindima, colheita. E vintage ficou na moda, com sentido de “maravilhoso”. Tal coisa é “vintage”, mesmo que não seja colheita, vinho etc.
Sendo assim, os tempos de Carlinhos Oliveira foram “vintage”. Afinal, por décadas ele ia de bar em bar, no profundo da noite, sem esbarrar com arrastões, assaltos, balas perdidas e ataques covardes de pitty boys.
Os tempos de Carlinhos eram principalmente os do uísque e, em segundo lugar, do chope. Hoje, em compensação, vemos mais vinhos nas mesas, com os rótulos do hemisfério sul cada vez mais cada vez. De algum modo, os hábitos se tornaram mais largos, mais variados. Os nossos vinhos melhoraram bastante, já as cervejas aguaram.
José Carlos Oliveira, um carioca do Espírito Santo, conta como foi a maravilhosa noite do Rio, em O Homem na Varanda do Antonio’s (Editora Civilização Brasileira, 2004), uma imperdível seleção de suas crônicas, de suas perambulações boêmias, onde uma parte fundamental da safra carioca de arte, invenção, alegria e civilização é magistralmente descrita.
É um período “vintage”, tal como seu autor e suas crônicas. A safra atual mostra diferenças soturnas: nela não vejo nada de “vintage”, apenas algumas coincidências. Nos tempos de Carlinhos, tivemos a calça Saint Tropez e hoje as cinturas caíram mais ainda, com avenidas propondo acesso ao cóccix e ao púbis das meninas. Talvez, mais uma vez, tenhamos aí novamente um novo tipo de mulher.
Aproveitamos, como se vê, misturar safra de vinhos com o contexto dos tempos e costumes, onde nem tudo que brilha é “vintage”. Com exceção do Carlinhos Oliveira.
Leitora, o que está achando da atual safra na noite de sua cidade? Qual a safra de qual vinho mais lhe agrada? Comente aqui para a Soninha no soniamelier@terra.com.br
Uma garota “gentilmente envolvida numa minissaia, de vez em quando se abaixava para esticar as meias. Era um gesto displicente, estudado e atrevido. Uma espontaneidade cruel, de acordo com a conduta das mocinhas de hoje”. E o Carlinhos lá, “sentado ao pé de uma dose de uísque”, só olhando.
A conclusão dele foi que se o show fosse dos Beatles, “veríamos o maior festival de bumbum de todos os tempos”.
Assim, podemos dizer que a safra de 67 na noite carioca, pela mostra dada no Canecão, destacou os bumbuns das moças.
Safra pode ser o processo físico de colher a uva e fazer o vinho - e, nesse caso, o nome mais apropriado é colheita.
Mas é principalmente o ano em que um determinado vinho foi produzido, o que normalmente vem registrado nos rótulos das garrafas. Corresponde também às características daquele ano. A safra foi boa, foi ruim, o vinho é bom, é medíocre. Na noite carioca, a característica da safra de 67 foi o bumbum das moças, na avaliação do Carlinhos.
Essas características derivam em sua maior parte das condições climáticas na região aonde a vinha foi cultivada e suas uvas colhidas. Mas dependem igualmente do tipo de solo e da variedade da uva plantada nele: como reagirão à exposição ao sol, às chuvas, às geadas eventuais; qual a capacidade de drenagem desse solo; como a videira reage a uso de determinados pesticidas; qual foi o acerto das podas: resultaram em maior exposição ou em excessiva proteção contra o sol?
Os melhores vinhedos em regiões de solo bom são aqueles menos sujeitos a variações sazonais. Conseguem assim manter alta qualidade consistentemente.
Cada variedade de uva reage de modo diverso às condições de tempo e do terreno. Cada espécie tem seu tempo de floração, frutificação e amadurecimento. Está, portanto, à mercê das estações e dos cuidados que o vinicultor terá com ela ao longo do ano.
Assim, a receita para o vinho é bons frutos, bom solo, bom vinicultor e bom tempo. Basta apenas um desses ingredientes ser classificado de excepcional para termos um vinho igualmente excepcional.
No nosso hemisfério sul, a data da safra corresponde ao ano em que as uvas foram colhidas, mesmo que o ciclo de crescimento da videira tenha na verdade acontecido no ano anterior.
No hemisfério norte, a data da safra corresponde tanto ao ciclo completo de crescimento da vinha como também ao ano da colheita.
Qualificar uma safra não é nada fácil. Comerciantes e críticos de vinho provam os vinhos muito novos, ainda em barris, como os vinhos da safra de 2004 de Bordeaux, colhidos em outubro, depois prensados, fermentados, levados aos barris e provados nas duas primeiras semanas de abril. Como estarão esses vinhos, em garrafas, daqui a 2 anos, daqui a cinco, dez, vinte anos?
As tabelas de safras podem ser úteis, mas são falíveis. Por exemplo: você lê numa tabela que um vinho de Graves da safra de 1990 (Graves é uma importante região de Bordeaux, famosa por produzir tanto tintos e brancos de grande qualidade) recebeu de um crítico a nota 90 (90 de um máximo de 100; excelente marca) e está hoje, 2005, pronto para ser bebido. É uma generalização arriscada, pois essa região tem centenas de produtores, cada qual com vinhos de estilos diferentes, cada qual sujeito a solos e subclimas diversos entre eles.
E não se pode afirmar que o ano de 67 para os vinhos foi bom ou mau. Tudo depende principalmente das condições climáticas na região onde as uvas foram colhidas.
Pois Carlinhos de Oliveira, que escreveu durante 23 anos no Jornal do Brasil, foi o crítico das várias safras da vida boêmia do Rio de Janeiro. É considerado o primeiro e talvez único cronista até hoje a construir uma narrativa panorâmica da boemia brasileira. Através dele temos notas críticas sobre bares e restaurantes que fizeram época. O Vermelhinho, por exemplo, em frente à Associação Brasileira de Imprensa, onde, nos anos 50, era o “quartel-general do existencialismo verde-amarelo”.
Dos anos 50 em diante, Carlinhos comenta os bares do Centro da cidade (como o Vilariño, o Juca’s Bar, o Amarelinho), passando pelo Lamas e o Taberna da Glória e por Copacabana, quando ela começou a florescer, com safras ótimas de bares e restaurantes: Vogue, Sacha’s, Fred’s, Plaza, Fiorentina, Alpino, Le Rond Point, Michel, Drink, Zum-Zum, Au Bon Gourmet, Alcazar, Lucas, as boates do Beco das Garrafas e toda aquela influência do jazz.
Depois, chegou a histórica safra de Ipanema, onde foi até acusado de criar a mitologia do bairro e provocar a especulação imobiliária na região. Não vamos esquecer que ficava lá o Veloso, onde Tom e Vinícius viram passar aquela coisa mais linda. O Veloso é hoje mais um ponto turístico da cidade e mudou até de nome, por isso: para um óbvio Garota de Ipanema.
Sobre um bar e boate de Copacabana, o Le Bateau, Carlinhos fala, numa crônica também de 1967, que “As meninas estão soltas. São lindas. Dançam à maneira das deusas de outrora... elas dominam o ambiente. Próximas e inalcançáveis. Distantes e acessíveis. Inocentes e cruéis.”
Ele até arrisca antecipar como será a futura safra. “A safra de 1970 vai ser fogo! Compreendemos com clareza que cada ano implica um novo tipo de mulher. Novo por dentro e por fora.”
Enquanto Carlinhos aprecia a leva de 1967 no Bateau, vejo numa tabela que a safra desse mesmo ano não resultou muito boa para os tintos de Bordeaux, mas os brancos doces saíram melhor.
Muita gente utiliza safra em sua versão inglesa, “vintage”, uma palavra que deriva do latim, “vindemia”, vindima, colheita. E vintage ficou na moda, com sentido de “maravilhoso”. Tal coisa é “vintage”, mesmo que não seja colheita, vinho etc.
Sendo assim, os tempos de Carlinhos Oliveira foram “vintage”. Afinal, por décadas ele ia de bar em bar, no profundo da noite, sem esbarrar com arrastões, assaltos, balas perdidas e ataques covardes de pitty boys.
Os tempos de Carlinhos eram principalmente os do uísque e, em segundo lugar, do chope. Hoje, em compensação, vemos mais vinhos nas mesas, com os rótulos do hemisfério sul cada vez mais cada vez. De algum modo, os hábitos se tornaram mais largos, mais variados. Os nossos vinhos melhoraram bastante, já as cervejas aguaram.
José Carlos Oliveira, um carioca do Espírito Santo, conta como foi a maravilhosa noite do Rio, em O Homem na Varanda do Antonio’s (Editora Civilização Brasileira, 2004), uma imperdível seleção de suas crônicas, de suas perambulações boêmias, onde uma parte fundamental da safra carioca de arte, invenção, alegria e civilização é magistralmente descrita.
É um período “vintage”, tal como seu autor e suas crônicas. A safra atual mostra diferenças soturnas: nela não vejo nada de “vintage”, apenas algumas coincidências. Nos tempos de Carlinhos, tivemos a calça Saint Tropez e hoje as cinturas caíram mais ainda, com avenidas propondo acesso ao cóccix e ao púbis das meninas. Talvez, mais uma vez, tenhamos aí novamente um novo tipo de mulher.
Aproveitamos, como se vê, misturar safra de vinhos com o contexto dos tempos e costumes, onde nem tudo que brilha é “vintage”. Com exceção do Carlinhos Oliveira.
Leitora, o que está achando da atual safra na noite de sua cidade? Qual a safra de qual vinho mais lhe agrada? Comente aqui para a Soninha no soniamelier@terra.com.br
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