24.6.05

Outros códigos de da Vinci

Outro dia, telespectadores ingleses reclamaram que um comercial de TV, oferecendo uma nova salada de uma rede de fast food, mostrava um grupo de trabalhadores comendo o produto, mas falando e cantando ao mesmo tempo. Diziam que o filmete encorajaria nas crianças maus modos à mesa.
Modos é uma outra maneira de nos referirmos à etiqueta, aquela série de códigos ou de regras de conduta, de comportamento social, seja à mesa para comer, seja num campo de futebol ou de golfe, seja simplesmente andando na rua, conversando ou trajando as roupas adequadas que demonstramos o nosso grau de civilidade, nossa capacidade de conviver com o próximo.
São códigos normalmente não escritos, refletindo o comportamento ou a tradição de toda uma sociedade. Na antiguidade, as violações de simples regras de etiqueta poderiam resultar em grandes tragédias.
A norma entre os tapuias é comer com as mãos e entre nós, os chamados civilizados, usamos garfos e facas, embora nem sempre saibamos utilizar a completa coleção de talheres ou de copos num banquete pra valer. É uma questão de cultura, que também não pode ser conduzida com intransigência e arrogância. Luis XIV estabeleceu um elaborado e rígido cerimonial para a sua corte, mas continuou a utilizar os dedos para comer – sempre com muito estilo, para horror dos burgueses já familiarizados com garfos e facas.
Seria inevitável que o vinho, tão fortemente ligado à cultura dos homens há milênios, tivesse gerado a sua série de códigos, a sua etiqueta própria. E é sobre ela que vamos falar. É um assunto que pode compreender várias colunas. Nessa primeira, vamos dar atenção à etiqueta dos vinhos nos restaurantes.
1. Quando o sommelier retira a rolha, colocando-a ao seu lado na mesa e em seguida lhe apresenta a garrafa, não cheire a rolha. O que você tem de cheirar (atenção que é só cheirar, não é provar) é aquela pequena quantidade de vinho que o profissional coloca em sua taça. Cheirar é tudo o que você precisa fazer para saber se o vinho contém algum defeito, alguma falha. Apenas sentir os aromas originários da taça, identificar se a bebida apresenta os fortes odores de mofo causados pela “doença da rolha” (o terrível TCA), ou parece avinagrado.
Não, não gire a taça para depois cheirá-la. Ao girá-la, você poderá disfarçar tais odores. Só gire a taça após aprovar a garrafa (ou seja, você não encontrou nenhum defeito depois de ter sentido os tais aromas). Nessa ocasião, poderá até provar o pouco vinho que lhe foi servido. Mas o melhor é solicitar que o sommelier sirva as demais pessoas presentes à mesa para, ao final, completar a sua taça.
2. A pessoa que solicitou o vinho (normalmente é quem o escolheu) é quem deve prová-lo e aprová-lo ou não. Nada de ficar passando a taça para os outros convidados à mesa e pedir suas opiniões. Se você não se sente seguro para escolher, peça ajuda ao sommelier: é para isso que ele estudou, treinou e está lá no salão.
3. Não traga um vinho de casa sem antes consultar o restaurante sobre essa possibilidade. Afinal, é o mesmo que levar uma pessoa a uma festa para a qual não foi convidada. Consulte, antes, o dono da festa.
Caso o restaurante aceite que você traga o seu vinho de estimação, tome o cuidado de estudar a carta de vinhos do restaurante. Afinal, seria ofensivo você aparecer com um rótulo que já consta da lista do restaurante. O correto seria levar um vinho excepcional, que não exista na carta daquela casa.
Os restaurantes com cartas de vinhos mais simples costumam não cobrar pela “rolha” – ou seja, uma taxa sobre o vinho que você trouxe de casa.
As casas com uma adega rica, uma carta variada, com vinhos do Velho e Novo Mundo, de vários estilos, e uma gama de preços de médios a caros, costumam cobrar pela “rolha” – e a taxa vai depender da qualidade (e preço) do seu vinho. Afinal, eles vão ter algum trabalho com a sua garrafa: resfriá-la, prepará-la, servi-la etc.
Outros restaurantes, normalmente dentro da categoria acima, simplesmente não aceitam. Argumentam (li em alguma parte) que isso seria o mesmo que você trouxesse a sua comida de casa. Faz sentido.
4. Caso tenha sobrado algum vinho à mesa, peça para sejam novamente arrolhados e leve-os para casa. Você pagou pelo vinho, ele é seu. Nenhum restaurante vai se opor: não há etiqueta que condene essa atitude.
Mas se prefere que os vinhos solicitados sejam todos consumidos. Ou, melhor, que não haja desperdício (pediu vinho demais etc.), calcule mais cuidadosamente a quantidade de garrafas. Às vezes, pedir uma garrafa de 750 ml, o tamanho padrão, e várias meias garrafas (375 ml) seja a melhor solução. O problema é saber se o restaurante possui meias garrafas do vinho que você escolheu.
O melhor mesmo é levar para casa o que sobrou. Nada de beber até a última gota simplesmente para que não sobre nada. Não esqueça que você e seus convidados vão dirigir em seguida.
5. Se o vinho está “com um sabor estranho”, a primeira coisa a fazer é pedir a opinião do sommelier. Atenção: não é ir logo reclamando. Peça educadamente a opinião do profissional. Ele vai colocar uma pequena quantidade do vinho num tastevin (aquele objeto que parece um medalhão dependurado no pescoço do sommelier) ou numa taça de degustação, cheirar e eventualmente dar uma provada no vinho. Ele vai confirmar ou não as suas suspeitas.
Antes de chamá-lo, porém, tente mais uma vez. Cheire e prove novamente. A primeira provada num vinho quase sempre resulta num sabor muito ácido. Sempre será mais ácida, inclusive, se você experimentar um vinho logo depois de ter terminado o seu coquetel. Dê um tempo, beba água, coma um pedaço de pão. Enfim, limpe a boca. Deixe o vinho “respirar”.
Certifique-se de que seguiu as recomendações do sommelier: deixou o Cabernet Sauvignon “descansar” por algum tempo, concordou em que o vinho fosse decantado (se necessário) – e só então experimentou por uma segunda vez.
Se nada disso der certo, fale com o profissional. Certamente, a sua garrafa será trocada. Em alguns restaurantes, o primeiro a provar o vinho é o sommelier (normalmente, fora das vistas do cliente) – o que evita embaraços futuros.
6. Pode acontecer de você, simplesmente, não gostar do vinho que escolheu, devolver a garrafa e escolher outro vinho. Isso acontece até em casamentos. Se o restaurante for efetivamente sofisticado e segue a etiqueta, a garrafa recusada não será cobrada (o que é raríssimo de acontecer em casamentos).
7. Se você tem uma mesa com muitos convidados, com gostos diferentes, tente pedir vinho em taças. Nem sempre é uma solução barata. E nem sempre possível, pois o normal é encontrarmos ofertas muito pobres de vinho em taças, mesmo em boas casas. Experimente chegar a um acordo quanto às preferências por tintos e brancos e peça a quantidade de garrafas que possa atender a todo o pessoal.
No caso de brancos, vinhos como o Sauvignon Blanc, Chardonnay e Riesling são capazes de cobrir uma grande gama de comidas. Entre os tintos, um Pinot Noir e um Syrah costumam fazer o mesmo.
Leonardo da Vinci ficava indignado com o costume do seu senhor e protetor, Ludovico de Sforza, o homem forte de Milão, em pleno Renascimento, de amarrar coelhos à cadeira de seus convidados para que pudessem limpar a gordura das mãos. O mestre também condenava o hábito do mesmo Ludovico em limpar sua faca nas roupas de seus companheiros de mesa. “Por que não o faz como o resto dos membros da Corte, na toalha da mesa?”
Os Cadernos de Cozinha de Leonardo da Vinci, um conjunto de notas descobertas em 1980 na Itália, nos dá uma idéia das normas de conduta e práticas culinárias em pleno Renascimento. Leio na orelha da obra, editada aqui pela Record, que todos os indícios apontam para a autenticidade dessas notas. Da Vinci é tido como o inventor dos guardanapos, das tampas de panelas e até do sanduíche, criação atribuída aos ingleses (ao Conde de Sandwich, aristocrata do século 18, que criou o prato para não perder tempo comendo enquanto jogava).
Se na Itália do grande gênio italiano os códigos já tentavam evitar as práticas horrendas (o comensal “deverá abandonar a mesa se está para vomitar. E o mesmo se tiver para urinar”), é isso que eles continuam fazendo até hoje.
Quando tratamos da etiqueta para os vinhos ou para as bebidas em geral as pessoas muitas vezes torcem o nariz por entenderem que são complicadas ou inúteis. Mas o que ela certamente faz é nos ajudar a saborear a bebida em paz, com a tranqüilidade e o respeito que ela e os nossos convidados merecem.
Comente sua experiência com as etiquetas, amiga leitora, e clique aqui para a Soninha no soniamelier@terra.com.br

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