20.1.09

Cozinhando com vinho

Vira e mexe, lemos que ao cozinharmos com vinho, o seu conteúdo de álcool irá evaporar-se aos 78º C, enquanto a água ferverá aos 100º C. Logo, o molho ou a redução feita com vinho estaria apta para quem não pode consumir álcool, seja por questões de saúde, éticas ou religiosas.
Depois do sangue, o vinho é tido como o fluido mais complexo existente, uma mistura de água, álcool, ácidos, açúcares, polifenóis e muito mais. Na média, um vinho contém 85% de água e 12% de álcool. Os 3% restantes são representados por sulfitos, ácidos, glicerol, fenóis, açúcar, minerais, ésteres etc. Até agora, perto de mil componentes já foram identificados.
Só que na panela, água e álcool, mais aqueles milhares de componentes não se comportam como azeite e vinagre, bem separadinhos, não funcionam independentemente. E, por isso, cada um deles altera a temperatura de ebulição do outro.
Assim, não existe uma regra geral para sabermos quando um e outro irão ferver, quando o álcool efetivamente vai evaporar e sumir da panela. Os vinhos apresentam variações em seu conteúdo alcoólico: quanto mais álcool o vinho tiver, a ebulição ficará mais próxima dos 78º C. Quanto mais água, ele chegará perto dos 100º C. Além disso, está comprovado que a perda de álcool por evaporação se processa muito mais lentamente do que a da água.
Li no meu pai dos burros da cozinha, “O que Einstein disse a seu cozinheiro” (Robert L. Walker, Jorge Zahar, 2003), que em 1992 nutricionistas da Universidade de Idaho, EUA, mediram os níveis de álcool em pratos regados a vinho tinto (o boeuf bourguignon e o coq au vin) e uma cassarola de ostras ao xerez, o grande vinho fortificado espanhol.
O resultado é que nos pratos ainda ficaram entre 4 e 49% de álcool. O caso é que tudo fica na dependência do tipo de alimento e do método de cozimento. “Verificou-se sem surpresas que em temperaturas mais altas, tempos mais longos de cozimento, panelas destampadas e mais largas, cozimento em cima do fogão e não em forno fechado- tudo isso fez aumentar a quantidade geral de evaporação”, afirmam os nutricionistas. Pode parecer óbvio, mas muita gente acha que é só deixar ferver que o álcool evapora. Repare que, no link acima, a receita do Olivier Anquier para o boeuf bourguignon sugere duas horas de cozimento, “até a carne ficar macia”. No coq au vin recomenda-se 30 minutos de cozimento em fogo branco após a adição do vinho. Nem em duas horas e muito menos em 30 minutos se pode garantir que o vinho tenha se evaporado.
Veja o que acontece com os Crêpes Suzette, que é flambado com licor, normalmente com o Grand Marnier? As chamas que fazem o sucesso desse famoso prato cessam assim que a quantidade de álcool se reduzir. E muito álcool ainda restará na sobremesa. Os nutricionistas de Idaho estimam que apenas 20% do álcool total tenha se evaporado. Não precisaríamos nem de pesquisar. As chamas dos flambados, em geral, não conseguem durar mais do que um minuto, muito pouco para evaporar álcool.
Outra pesquisa, realizada pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, mostra que, ao juntarmos vinho a um líquido fervente e em seguida removemos o conjunto do calor, 85% de álcool ainda restarão no molho.
Como vimos, quanto maior o tempo de cozimento, menos álcool restará na redução. Caso não levemos o molho ao fogo e o deixemos descansar de um dia para o outro, ainda teremos 70% de álcool. Se um alimento é cozido por 15 minutos, 40% de álcool ficarão no molho. Em trinta minutos, 35%. Se o tempo aumentar para uma hora, restarão apenas 25%. Em uma hora e meia, 20%. Em duas horas, 10%. Em duas horas e meia, ainda restará 5%.
Para que todo o álcool numa redução seja evaporado, teríamos de cozinhar por pelo menos três horas.
Agora, não custa lembrar que utilizamos vinhos na panela para acrescentar sabores ou melhorar os já existentes, realçá-los, qualificá-los ainda mais. É no processo da fermentação que o vinho ganhará os seus sabores e aromas. O fermento gosta mesmo é do açúcar contido nas uvas. Ele vai digerir o máximo que pode até morrer. Nesse processo, deixará para trás dióxido de carbono e álcool etílico. Mas se o álcool fosse a única coisa dentro dos barris, todos os vinhos teriam o mesmo sabor. Acontece que parte do álcool é convertida é ácido (tal como é feito o vinagre), que, por sua vez, combinado com outros componentes da uva e com o próprio álcool vão se transformar no que os químicos chamam de “ésteres”. E esses tais de ésteres são nada mais do que os componentes de sabores do vinho.
Quando dizemos que um vinho branco apresenta notas de pêra ou maçã ou que um tinto de frutinhas vermelhas (amora, framboesa, mirtilo etc.) é porque o fermento utilizado está reproduzindo ésteres naturais da maçã, da pêra e das frutinhas vermelhas. Muitas vezes lemos que um Chardonnay é “amanteigado”. Ele é assim porque o fermento produziu um componente chamado diacetil, o mesmo que dá a manteiga o seu sabor.
Assim, ao utilizarmos um vinho na panela, o álcool não deverá ter qualquer efeito no sabor. O objetivo será utilizarmos vinhos que, depois de reduzidos, possam emprestar sabores apropriados para o prato que você está preparando.
Portanto, jamais utilize o chamado “vinho de cozinha”, aquele que fica ao lado do vinagre nas prateleiras dos supermercados. Ele feito com um vinho base muito ralo, sal e algum corante alimentício. Não é o vinho que você compraria para beber. Na cozinha use um vinho que você beberia. Não precisa ser um Margaux ou muito caro, mas qualquer outro que você consumiria com prazer.
Tente um Sauvignon Blanc se sua receita pedir frescor e sabores herbáceos. Para sabores mais picantes, experimente vinhos com as uvas Riesling, Gewürztraminer (felizmente os alemães ainda não aboliram o trema) ou Viognier para conseguir sabores de frutas e aromas florais que vão contrabalançar com os temperos mais provocantes.
Se temos um assado de carne vermelha vamos recorrer a vinhos tintos mais encorpados (com a uva Syrah ou Cabernet Sauvignon, por exemplo).
E bom apetite. Mas não esqueça, se algum convidado seu é, por algum motivo, adverso ao álcool, prefira cozinhar sem vinhos. Com vinhos ou qualquer outra bebida alcoólica haverá sempre o risco de restar aquela gotinha na redução.

Um comentário:

Carlos Eduardo Garcia disse...

Você pode dar alguma dica de como substituir o vinho em receitas de risoto?