7.5.09

O médico e o monstro

Não se discute sobre a excelência em combinar vinho tinto com carnes vermelhas. Não há dúvidas que, gastronomicamente, os dois formam um par perfeito. Os amargos taninos de um tinto bem estruturado vão ficar mais macios, aveludados ao se envolverem com pratos de grande textura, contendo proteínas ainda não coaguladas. É só provar um filé mal passado com um Cabernet Sauvignon, um Syrah, um Nebbiolo.
Mas essa combinação agora ficou um tanto confusa, por conta de uma nova série de pesquisas.
Por um lado, uma nova pesquisa afirma que meia taça de vinho diariamente acrescenta cinco anos em nossas vidas. A cerveja, em lugar do vinho, só nos daria dois anos e meio a mais.
Na contramão, outro estudo demonstra provavelmente homens e mulheres que consomem carnes, em sua maioria as vermelhas, vão provavelmente morrer mais cedo.
O monstro. A relação entre mortalidade e consumo de carne resume um estudo gigantesco, envolvendo mais de meio milhão de norte-americanos, pesquisados durante dez anos. Ele oferece, segundo reportagem do New York Times, a melhor evidência, até agora, de que pagamos pela nossa preferência por carne vermelha com nossa saúde e com anos de vida a menos. Um preço alto.
Podemos falar que o assunto diz respeito aos americanos, apenas. Mas aqui também, estamos há tempos comendo mais carnes vermelhas, agora mais ainda já que os preços baixaram para compensar a baixa na exportação, em razão da crise mundial.
Homens e mulheres consumidores de carnes vermelhas vão provavelmente morrer mais cedo em razão de um desses potenciais problemas: doenças cardíacas ou câncer. O risco de mortalidade, segundo o estudo, aumenta na proporção do consumo dessas carnes. Numa projeção, o trabalho sugere que a morte de um milhão e homens e talvez de meio milhão de mulheres pudesse ter sido prevenida se, no período de dez anos analisado, pudessem ter consumido menos carnes vermelhas.
Para prevenir mortes prematuras relacionadas a esse consumo, um dos cientistas envolvidos no estudo sugeriu que as pessoas comessem um hambúrguer apenas uma vez por semana, em vez de todos os dias; um bife uma vez por semana e não todos os dias e um cachorro-quente a cada mês e meio.
Apelar pela galinha e peixe não representaria muita vantagem: quem do grupo consumiu mais frutas e vegetais teve índice de longevidade maior. Aliás, se reduzíssemos nossa dependência pelas carnes em geral estaríamos ajudando a salvar o planeta da poluição, do aquecimento global e da escassez de água potável.
O bode expiratório dessa situação estaria em hábitos de saúde: aqueles que, na pesquisa, consumiram mais carnes vermelhas fumavam, estavam acima do peso ideal, consumiam mais calorias e mais gorduras, inclusive gorduras saturadas. E ainda por cima não ligavam muito para frutas, vegetais e fibras e eram menos ativos fisicamente.
De qualquer modo, sabemos que carnes vermelhas estão relacionadas a colesterol, pressão alta e a doenças cardíacas. Sabe-se também que a carne, cozida ou grelhada em altas temperaturas produz carcinógenos em sua superfície.
Entra o médico. Até agora, só falamos no Mr. Hyde, a carne vermelha. Ao mesmo tempo em que anotamos a matéria do New York Times, lemos sobre outra pesquisa, realizada pelos holandeses, que seguiram os hábitos alimentares de 1.373 homens durante mais de 40 anos. É quando nossa história começa a ter um final mais feliz.
Homens que bebiam cerca de meia taça de vinho diariamente (20 gramas de álcool) acrescentavam dois anos e meio de expectativa de vida, ao chegarem aos 50 anos. Os que, na mesma faixa de idade, eram abstêmios não tinham essa vantagem. Note-se que 70% de todo o vinho consumido pelos pesquisados era tinto.
Estabeleceu-se nessa pesquisa a relação entre o consumo moderado de álcool e baixo índice de mortalidade por doenças cardiovasculares e cerebrais. E mais uma vez reconheceu-se os efeitos protetores dos polifenóis existentes nos vinhos tintos. Polifenóis são substâncias químicas, como os taninos e os flavonóides encontrados em plantas.
Em duas outras pesquisas, publicadas quase que ao mesmo tempo, mostram que esses mesmos polifenóis aparecem como soldados contra células de câncer. São antioxidantes encontrados em abundância nas cascas e sementes das uvas e entram no vinho durante a fermentação.
Quando os cientistas submeteram, no laboratório, células de câncer de mama ao uma combinação de três polifenóis encontrados normalmente nos vinhos tintos, verificaram que a taxa de mortalidade daquelas células aumentava entre 40 e 55%; Depois de 77 dias, tumores cancerígenos nas mamas, devidamente tratados com esses polifenóis, ficavam de 30 a 50% menores.
Por fim, em 2008, comentamos aqui que consumir vinho tinto com carne vermelha estava além de ser uma matéria de gosto. É que pesquisadores da Universidade de Jerusalém descobriram que se os polifenóis do vinho tinto chegar ao estômago no momento em que as gorduras estão liberando uma devastadora toxina, chamada de malondialdeído, podem interromper a viagem dela rumo ao nosso sistema sanguíneo.
No final das contas, consumimos carnes e vinhos há milênios e a população do globo só fez aumentar. Ninguém está sugerindo que carnes vermelhas não devem ser mais consumidas. Ou consumidas apenas com vinhos tintos.O segredo de tudo é a moderação. Não vamos esquecer também que muitos outros frutos são também ricos em polifenóis (o vinho é apenas suco de uvas fermentado). E que também podemos consumir proteínas em muitas frutas e legumes. Então, vamos beber e comer moderadamente. E variar sempre. Não precisa ser carne e vinho o tempo todo. Sustos com o Dr. Jekyll e Mr. Hyde só no cinema ou no livro.

Nenhum comentário: