30.7.09

Paraísos artificiais

Talvez você já tenha lido: descobriram uma grande quantidade de cocaína em garrafas de vinhos. De 1020 garrafas do vinho boliviano Kohlberg, 952 continham cocaína líquida, o equivalente a 714 litros. Apenas 68 garrafas eram mesmo de vinho. A apreensão foi feita no porto de Varna, na Bulgária. A Vinos Kohlberg é uma das principais vinícolas bolivianas e exporta seus vinhos através do porto de Arica, no Chile.
A nota já correu o mundo e da forma como apareceu deixou-me a impressão de que pela primeira vez o vinho entrava no mundo das drogas. Contrabandear cocaína em formato líquido não é incomum: no início do ano um taxista londrino morreu após beber inocentemente cocaína contida numa garrafa de rum. Mas historicamente o vinho tem tido um papel de destaque nesse engodo, na maioria das vezes inocentemente.
Mas não faz muito tempo era legal consumir-se cocaína, morfina, heroína, ópio, anfetaminas etc. travestidos de poções medicamentosas, bebidas refrescantes, elixires salvadores ou vinhos compostos – destinados a todos os públicos, inclusive crianças. Quase todos eles foram grandes sucessos de vendas, sendo que alguns receberam até uma chancela papal.
Curioso e assustador é que alguns desses produtos ainda estão sendo comercializados legalmente, como veremos mais adiante.
Misturar ervas aos vinhos é coisa muito antiga. Os romanos já temperavam vinhos com ervas e antes deles os gregos também – esses inclusive utilizando a planta artemisia absinthum, ou losna ou sintro, erva-de-são joão, ou artemísia ou, por fim, absinto. Esses vinhos flavorizados eram tidos como curativos, particularmente indicados para problemas digestivos. Na Bavária, eram conhecidos como wermuthwein ou “vinho de wermuth”, nome alemão da artemísia e que chegou ao francês como vermouth e ao inglês como vermuth, o nosso vermute. É um dos precursores do Absinto, o destilado que fez sucessos (e grandes estragos) na França da Belle Époque.
O vinho boliviano foi “batizado” com cocaína líquida para lograr as autoridades aduaneiras. Ninguém pensaria, a essas alturas, em vender um vinho de cocaína. Mas em passado recente essa idéia resultou em grandes sucessos, pois, como vimos, é secular a tentativa de dar ao vinhos propriedades medicinais. E foi assim que o “Vinho de Coca” entrou no mercado, de meados do século 19 até início do seguinte. O nome era esse mesmo: “Coca Wine” ou “Wine of Coca’. Nos rótulos lia-se que era eficaz para a “fadiga da mente e do corpo”; bom para “nevralgia, insônia, desânimo”.
O Metcalf Coca Wine, feito de vinho, álcool e 30 gramas de erythroxylum coca (nome científico da planta da qual a cocaína é feita) era recomendado como um “tônico estimulante”, contra a fadiga, restaurador do apetite, adequado tanto para jovens, idosos e até crianças. A dose recomendada era: três copos ao dia. Num de seus rótulos, o fabricante, Theodor Metcalf, um próspero farmacêutico de Boston, EUA, explicava que “as folhas de coca têm sido utilizadas desde tempos primordiais pelos selvagens da América do Sul como remédio para quaisquer males, de uma simples dor de cabeça ou nevralgia...” (veja o produto e saiba mais sobre a Metcalf Coca Wine).
Enquanto o sucesso do Metcalf se limitava ao mercado americano, o Vin Mariani abafava em todo o mundo. Tônico criado por volta de 1863 por Angelo Mariani, um francês da Córsega, que se encantou com o potencial econômico da coca, era feito com vinhos de Bordeaux misturado a folhas de coca. O etanol do vinho agia como solvente do qual a cocaína era extraída, alterando os efeitos da bebida. Cada 30 ml de vinho continha 7,2 mg de cocaína. Foi tão popular em sua época que o Papa Leão XIII, que não saia do Vaticano sem ele, concedeu ao vinho de Angelo Mariani uma medalha de ouro. O aplauso do Papa era dividido com a rainha Vitória e o inventor Thomas Edison, entre outras celebridades, eram adeptas declaradas da bebida.
As crônicas da época afirmam que foi esse tônico (ou semelhantes) que inspiraram o norte-americano John S. Pemberton, em 1885, a criar uma imitação, o Pemberton’s French Wine Coca. Pemberton, como já se sabe, foi o criador da Coca-Cola. Quando, ainda em 1885, a cidade de Atlanta, origem do produto, estabeleceu uma legislação de temperança, um ensaio da Lei Seca que tomaria o país em 1919, Pemberton rapidamente criou uma versão não alcoólica do seu produto. Era uma mistura carbonatada onde se destacavam as folhas de coca e as nozes de cola. Irônico que apenas o álcool era proibido, mas não a cocaína.
Em 1904, os fabricantes removeram a cocaína do refrigerante, embora o nome “Coca” fosse mantido. Talvez seja a mais valiosa marca do mundo.
Quando escreveu sua biografia, “Confissões de um comedor de ópio”, em 1821, o inglês Thomas De Quincey criou um conceito perigoso: o do uso de drogas como recreação, fuga. Ele fala dos “prazeres” que o ópio lhe dava. E também das dores resultantes dessa dependência.
O livro foi um grande sucesso e aparentemente quem o leu e divulgou só registrou as partes dedicadas aos prazeres. Enquanto isso, de 1821 em diante, o desenvolvimento da farmacopéia acelerou-se.
Em 1862, a Merck começou a produzir cocaína e um dos seus primeiros advogados foi o jovem médico vienense Sigmund Freud. “Repetidas doses de coca não produzem o desejo compulsivo para que se use o estimulante repetidamente”. Pois sim.
A diacetilmorfina, também conhecida como heroína, foi primeiramente sintetizada em 1897. A descoberta foi feita por Felix Hoffman e Arthur Eichengrun, que umas duas semanas antes inventaram a aspirina. E, espante-se, por alguns anos era possível comprar heroína livremente em qualquer farmácia, enquanto para a aspirina uma receita se fazia necessária. Depois, entramos na era dos barbitúricos, começando com o Veronal em 1903, e das anfetaminas, que a Smith, Kline colocou no mercado em 1932 com o nome comercial de Benzedrina.
A “recreação” corria solta no início do século. A Stickney and Poor’s, empresa com mais de 150 anos, que ainda hoje vende temperos, colocou no mercado um xarope para ajudar no sono dos bebês. Ele continha ópio. Se não era o bastante, seus 46% de álcool dariam conta do recado, sem dúvidas. Caso o produto estivesse em falta, as mamães poderiam comprar o “Mrs. Winslow”, um xarope com 65 miligramas de morfina. Era tiro e queda.
A Benzedrina apareceu mais na forma de inalantes nos EUA entre 1940 e 50. E vendeu como água. O tratamento com o vaporizador National Vapor-OL incluía ópio. Era indicado para asma, mas na verdade transformou-se numa maneira de consumir ópio. E, para não nos estendermos demais, nossas avós dispunham até de dropes de cocaína para dor de dente.
(Veja aqui fotos e textos sobre essa série de produtos).
E não vamos esquecer do famoso Elixir Paregórico, uma tintura canforada de ópio, utilizada em casos de diarréia e como analgésico. Era um remédio caseiro entre os séculos 18 e 19. Mas seu uso foi regulado e o ópio substituído, pois o produto provocava dependência.
Elementos químicos do vinho podem até ter propriedades medicinais, mas a bebida jamais poderia suportar esse emprego. Os vinhos misturados a ervas tiveram em sua origem esse aspecto. Mas o que se quer vender hoje não é mais uma eventual qualidade curativa.
Achei uma notícia na internet sobre uma empresa inglesa, Mariani Amalgamated Ltda., que estaria para lançar “orgulhosamente” um vinho tinto feito com cocaína. O vinho seria produzido no Peru. A nota é de 20 de setembro de 2007. A nota afirma que a empresa não tem nada a ver com o “Vin Mariani”. Afirma também que as folhas de coca serão desnaturadas, ou seja: terá a sua natureza alterada. Se for assim, qual o motivo de utilizá-las? Veja a nota aqui. Vou continuar a pesquisar. Para mim, essa Mariani é mais uma a querer uma carona não do vinho, mas da cocaína e da fantasia prometida por ela.
O grande poeta francês Baudelaire, escrevendo sobre drogas em 1858, notou que elas representavam uma fuga para um “paraíso artificial”. Paraísos podem ser divertidos. Só que esse, em particular, além de falso, arruína a vida das pessoas.
Não precisamos nos preocupar com o paraíso. Afinal, quando tudo começou fomos expulsas dele, não é? E estamos vivendo numa boa desde então (sei, com altos e baixos etc.). E melhor ainda quando juntamos uma taça de vinho.

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