13.8.11

Meu pai, esse cometa

“Pai, não põe limão na salada!” Lá estava eu, nos meus seis anos, reclamando como sempre. Não aguentava essa história de temperos – dos quais, por seu lado, o pai não abria mão. E olha que eram só umas gotinhas de limão, substituindo o detestável vinagre. Eu tolerava os verdes apenas com um pouco de azeite e sal.
Daqui a pouco vinha o prato principal: uma carne salteada com legumes, obra de minha mãe, que incluía, além das tiras de alcatra, gengibre fresco ralado, alho picado e pimentão vermelho em fatias (fora os aspargos, a acelga, as rodelas de cebola). Minha mãe ainda colocava vinagre branco. E meu pai entrava com vinho Madeira. Na mesa quase que obrigatoriamente uma garrafa de vinho, ora tinto, ora branco, que tomava com minha mãe, só os dois, demonstrando grande prazer. Observava com um misto de curiosidade e um respeito tangenciando o temor ante aquele líquido lindo, pois na taça poderia estar o equivalente ao gengibre, alho, cebola, pimentão e alho. Argh!
Mas eu tremia e cuspia essa temperada toda. Separava tudo, e ficava apenas com a carne, assim mesmo a contragosto, pois o tempero estava todo lá. Minha vontade era sair correndo. Sair da mesa, porém, era falta grave. Limão, cebola, gengibre, pimentão, alho eram sabores violentos para mim. Meus pais ficavam desorientados, sem graça. Mas insistiam.
Bem menina já distinguia todos esses temperos. Para mim, só faltava conhecer os vinhos. E isso só aconteceu bem mais tarde. Crescemos e nosso paladar cresce junto, mas sua capacidade de discriminar estímulos atinge a maturidade bem antes de nos reconhecermos adultas. Acho que nossa percepção de sabores chega ao máximo já pelos 15 anos.
Hoje, repito a receita de minha mãe (agora usando uma wok) e acho tudo muito sutil. Sim, a verdade é que a partir dos 20 anos, começamos a ir ladeira abaixo, pelo menos em termos de paladar. A turma que degusta vinho profissionalmente e está na quadra dos 50 anos evita esse assunto, insistem em desconhecer essa ladeira natural.
Reconhecer os sabores como o fazia com 15 anos, nunca mais. Contudo, os adultos possuem um trunfo na manga, uma vantagem que a turma mais jovem ainda não maneja devidamente. Podemos estocar em nossa memória praticamente tudo o que percebemos. Já pensou o que está lá registrado quando entramos nos cinquenta? O que não pode é um cinquentão desdenhar do paladar da garotada, capaz de descobrir detalhes surpreendentes.
Meu pai, um aficionado dos vinhos, não parava de falar sobre eles. Alertava para as sutilezas de suas cores. Aquela história dos matizes de brancos e tintos quando são jovens e quando ficam mais maduros. Aquilo me encantava e excitava. Queria experimentar, o que era tão proibido quanto sair da mesa antes da hora. Havia exceções, datas especiais quando beber o vinho era quase que obrigatório. Nesses casos, só um pouquinho, misturado com água e açúcar.
É fácil medir as alterações em nosso paladar à medida que o tempo passa. Já mocinha, conhecia cerveja, nossa levíssima. Mas aí topei com a Guiness, numa das muitas mudanças da família. A secular cerveja preta irlandesa, amarga que só ela, um verdadeiro desafio para novatas. Hoje, desce fácil, prazerosamente.
Naqueles tempos, meu pai apenas comentava sobre os vinhos: as cores, como eram feitos e em particular, suas origens, onde se demorava mais, contando histórias sobre regiões que mal ouvira falar. Por exemplo, foi ele quem me falou do galo preto, símbolo dos Chianti, que ele ainda tomava nos fiaschi, aquelas garrafas barrigudas semicobertas com palha (hoje, só aparecem penduradas nos tetos de pizzarias ou em sets de filmes e novelas).
Ele contava da hostilidade entre Florença e Siena, da guerra dos Guelfos contra os Gibelinos. Contava sobre aquelas duas repúblicas da Toscana na Itália do século XII e mostrava ilustrações com castelos, cidades muradas. Ficava maravilhada. Mas e o galo preto?
Florença queria fixar sua fronteira com Siena, mas seu objetivo era ficar com toda a região de Chianti. Siena não concordou e pediu que o assunto tivesse um árbitro neutro. O que foi feito, mas de modo curioso. Ficou acertado que um cavaleiro de Florença e outro de Siena cavalgassem de suas cidades assim que um galo em cada cidade cantasse. Onde se encontrassem seria fixada fronteira.
O povo de Siena selecionou um galo branco, bem roliço, pra lá de nutrido, um orgulho localmente. Já os florentinos escolherem um galo preto, que deram muito pouco o que comer – tão pouco que no dia da corrida, o galo desesperado de fome cantou muito cedo. Claro que o cavaleiro florentino chegou mais cedo, encontrou o oponente há poucos quilômetros de Siena. Não sei se tudo isso é lenda. Era meu pai quem contava, então era e continua sendo verdade. O fato é que toda a região do Chianti passou à jurisdição de Florença e o Galo Preto transformou-se em símbolo de Chianti.
O tempo foi passando e já madurinha brindava com meu pai os Madiran (terra do Cyrano de Bergerac, aquele narigudo, poeta e espadachim – eis como o velho me apresentava os vinhos), os da Borgonha (que Napoleão adorava), os Riesling, os argentinos antes dos chilenos, muitos vinhos do sul e, particularmente, os portugueses, inclusive os fortificados. Só bebia em casa. Na rua, nadinha.
Quando tive minha loja de vinhos na Serra, foi o velho quem mais me ajudou a formar a adega (e quem mais me levava garrafas “para experimentar”). Agora mesmo, quando o ex sommelier Christian Vanneque comprou uma garrafa do Château d’Yquem por US$ 117.000,00, safra de 1811, meu pai como que apareceu novamente diante de mim. Ah, como ele me falava sobre as safras. Por causa dele, sei que a safra de 1811 é uma das “safras do cometa”, nome aos anos em que ocorreu a passagem de algum cometa. Os produtores costumavam (e acho que ainda costumam) atribuir à passagem de um cometa antes da colheita às ótimas condições do clima e ao sucesso da safra e do vinho dela resultante. E, de fato, algumas das safras mais badaladas nos últimos duzentos anos foram as de 1811, 1826, 1845, 1852. 1861, 1985 e 1989 – em todas elas, apareceu um cometa.
(Vanneque, que foi sommelier chefe do famoso Tour d’Argent, de Paris, declara que pagou 117 mil dólares justamente para beber o reputado vinho doce de Sauternes. Vanneque tem certeza de que vai adorar. Eu, por meu lado, invejo o salário dos sommeliers franceses).
Quando minha aventura na loja de vinhos terminou, o velho não hesitou em elogiar minha coragem em enfrentar as agruras do comércio. E recomendou que não vendesse os vinhos que sobrassem: iríamos bebê-los todos, juntos. O que foi feito. Ele dizia que não podemos descobrir novos oceanos sem perder de vista a praia. E que eu sabia o endereço da praia. Era um cometa, esse meu pai!
Da Adega
A Speranza vive. Pois é, conheci primeiro a famosa pizzaria, a Speranza do Bixiga. E logo pelas mãos de meu pai, que na época fazia de Sampa uma de suas bases de trabalho. E descobri o que era uma pizzaria. Foi no fim dos anos 60, nessa mesma época do ano, um fila de espera danada, um frio mais danado ainda. E não tinha passado cometa algum. Agora, o que comemos foi maravilhoso, inesquecível. Falou em Speranza, meu pai aparece novamente.
Isso tudo para lembrar que nos tempos que correm temos a Cantina e a Pizzaria Speranza de Moema, mantendo a tradição de grandes pratos. Ambas participando mais uma vez do Restaurante Week, de 29 de agosto e 5 de setembro e cheias de novidades.
Experimente o cardápio da Speranza dessa semana especial: a Insalata de legume al forno, a torta napolitana de batata com salada de escarola, o gnocchi verdi com la mozzarella di búfala & provolone, o risoto di calabrese e pomodori secchi.
Isso sem falar da torta di limone e do cornettini di nutella.
Imperdível! Speranza Moema: Av. Sabiá, 786, fones: (11) 5051-1229; www.pizzaria.com.br, e-mail: atendimento@pizzaria.com.br

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