23.8.11

Entre secos e molhados

Vinho seco? Como um líquido pode ser seco? Essa dúvida esteve na cabeça de meu sobrinho, o Fábio, por muitos anos. Agora, depois de um ano trabalhando no Canadá, ele conseguiu tirar essa história a limpo.
O ceticismo a respeito da “secura” ainda campeia na cabeça de muita gente. Acontece que seco, neste caso, diz respeito ao sabor: tecnicamente é o oposto de doçura. Em vinhos completamente secos, o levedo conseguiu converter em álcool todo o açúcar natural contido nas uvas, durante a fermentação. Quando a fermentação é interrompida (natural ou forçadamente), o açúcar que resta (chamado de “açúcar residual”) alivia a sensação de secura do vinho, deixando-o mais agradável.
Por sua vez, vinho doce é aquele nem todo o açúcar foi convertido em álcool. E a expressão “seco” gera confusão a percepção de doçura varia muito de pessoa para pessoa. Meu sobrinho acaba de visitar com sua mulher, a Renata, uma das regiões vinícolas mais importantes do Canadá, em Niágara, Ontário. O casal experimentou alguns vinhos. Será que o Fábio, que não muito de beber, conseguiu tirar sua dúvida?
Primeiro, os “secos” (e depois os “molhados”). Pelo que li, a maioria das pessoas começa a perceber o doce nos vinhos a partir de concentrações de 0,5% de açúcar. Alguns vinhos são fermentados quase que totalmente secos, mas podem dar a impressão de doçura, sensação que tem origem não necessariamente no tal “açúcar residual”, mas no sabor de uvas maduras, eventualmente das notas de baunilha dos barris de carvalho ou ainda por fatores como acidez, taninos, álcool e glicerol (também subproduto da fermentação, contribui com um pouco de corpo e doçura para o vinho).
O açúcar que restou no vinho é medido em gramas de açúcar por litro de vinho, normalmente abreviado como g/l ou g/L. É muito raro encontramos vinhos com menos de 1g/L, pois certos tipos de açúcar não conseguem fermentar, como a pentose (tem esse nome por conter cinco átomos de carbono em seu núcleo).
Segundo a regras da União Europeia, os vinhos secos são aqueles com até 4 g/L (mas se bem equilibrados com acidez, até 9g/L), os meio-secos, até 12g/L (ou até 18 g/L se bem balanceados com a acidez), os meio-doces até 45g/L e os doces com mais de 45g/L.
Os espumantes apresentam especificações diferentes: um brut nature (quando não há adição de açúcar), de 0 a 3 g/L; extra brut, de 0 a 6 g/L; brut, de 0 a 12g/L; extra sec (extra seco), de 12 a 17 g/L; sec (seco), 17 a 32 g/L; demi-sec (semi-seco), 32 a 50 g/L; doux (doce), mais de 50g/L.
Qualquer vinho com mais de 45g/L, portanto, pode ser considerado doce. O famoso Château d’Yquem, mencionado aqui na última coluna, tem entre 100 e 150g/L. O Tokaji Eszencia vem com 450g/L. São divinamente doces, em nada enjoativos, pois suas uvas conseguem equilibrar deliciosos: feitos com uvas que conseguem reter a sua acidez. Os Château d’Yquem são feitos a partir de uvas afetadas pela Botrytis cinerea, um fungo que consome toda a água da uva, deixando apenas açúcar e ácido, fato conhecido como Podridão Nobre. Os Sauternes, os Tokaji Eszencia e os doces de Vouvray são, entre outros, feitos a partir desse fungo. Sua fermentação é muito lenta e a quantidade de açúcar é tão alta o processo é interrompido naturalmente deixando grande quantidade de açúcar residual.
Os vinhos fortificados, como os Porto e Xerez, têm também a fermentação interrompida – só que através da adição de um destilado de vinho (um brandy, uma bagaceira).
É bom que se diga que os dois principais açúcares envolvidos na criação do vinho são a frutose e a glucose. Como, em geral, as uvas para esse tipo de vinho são colhidas muito tarde (daí o nome de “late harvest”, colheita tardia, para esses vinhos), a quantidade de frutose é muito alta, pois a glucose é convertida em primeiro lugar. E a frutose pode ser duas vezes mais doce do que a glucose.
E, finalmente, chegamos ao vinho que encantou meus sobrinhos no Canadá: o icewine, (vin de glace, eiswein em alemão ou “vinho de gelo”) – o que faltava falarmos aqui.
Ele feito do suco de uvas congelado. O fruto é colhido lá pela época natalina, quando as temperaturas ficam na marca dos -8º C. Para garantir isso, as são colhidas à noite, num demorado e penoso processo. Estão tão duras quanto bolas de gude. Vão imediatamente para a prensa para a retirada do suco. Nesse processo, a água contida em cada uva permanece congelada na forma de cristais, restando apenas um pouco de concentrado de ácidos e açúcares da uva, o que resultará num vinho excepcionalmente doce e muito acre. Ele vai fermentar vagarosamente nos próximos meses e eventualmente se transformará no “vinho de gelo”, somando no final apenas 10-15% do total de vinhos de mesa produzidos no país.
O eiswein começou a ser feito sistematicamente na Alemanha a partir dos anos 60. E ao final de 1980 no Canadá, quando uns poucos vinhateiros perceberam que o icewine poderia transformar-se num trunfo para a indústria vinícola do país.
Fábio e Renata visitaram num fim de semana recente a área ao redor da cidade de Niagara-on-the Lake, à beira do rio Niágara, do lago Ontário e bem pertinho da mais famosa cachoeira da América do Norte. A região é linda e abriga 26 vinícolas, das quais meus sobrinhos destacaram duas: o Château des Charmes, da família Bosc, de raízes alsacianas, em Ontário, situada mais próxima das quedas. E a Vinícola Reif, mais ao norte, à beira do rio, ao lado da mais famosa (pelo menos para mim, que conheço o vinho), a Inniskilin, a principal produtora de icewine do país ou pelo menos uma das pioneiras. Mas essa, pelo que entendi, não foi visitada. O que sei é: do casal, o Fábio é o mais arredio às bebidas alcoólicas. O que não acontece com a Renata. Essa chegou muito “feliz” em casa, em particular depois de degustar e degustar e degustar vinhos doces nessas vinícolas. Eles provaram um Riesling Icewine Paul Bosc Estate Vineyard 2007 e outro, do mesmo ano, feito com a uva Vidal (essa e a Riesling são as mais utilizadas no país, pelas cascas mais resistentes às baixas temperaturas). Na Reif, devem ter degustado um icewine feito com a Cabernet Franc, o que dar uma cor rosada ao vinho (coqueluche entre os chineses): o Cab Franc Icewine 2008.
O Fábio comentou da “Renata alegrinha”, “nunca vi a Renata assim”, “pra lá de alegre”, muitas vezes. E repetiu o que todos reclamamos: “pena que esses vinhos são muito caros”. Ele ficou só na base da degustação nos wine bars das vinícolas. Não trouxe vinho para a casa.
Do Canadá só conheço o Inniskilin e o filme “Torrente de Paixão”, com a Marilyn Monroe corneando o marido na cidade de Niágara, lado americano. O filme é de 1953, vi tarde da noite numa dessas sessões da TCM. A história é um suspense com direito ao clichê do “bandido” morrendo cachoeira abaixo (depois de matar a traidora). Ninguém ali experimentou vinhos doces.
Acho que agora o Fábio aprendeu mais sobre os vinhos secos, mas a partir do outro lado da moeda: os molhados.
Da Adega
Povo educado sabe beber. Vale a pena dar uma lida no post do Mauricio Tagliari de mesmo título. É sobre certas leis no Brasil, como a Lei Seca, tortas pelo seu falso conteúdo moralista, com uma aparência de apreço pela vida das pessoas, cega com a campanha do tolerância zero. Se o bafômetro for tão intolerante como a lei, você pode beber um copo d’água que ele vai constatar álcool em seu corpo.
O corpo humano produz naturalmente o seu próprio suprimento de álcool, de modo contínuo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Os níveis normais dessa produção ficam entre 0,01 e 0,03 mg de álcool na corrente sanguínea. Como diz o Maurício: lei seca sem um programa de educação torna-se pouco mais que um tormento para os bebedores educados. Leia o post.

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