27.7.06

O que houve com o Clarete?

Um fiel leitor, Roldão Simas, nota que se escutava muito falar em vinho clarete. E hoje em dia não mais. O que houve com o clarete? O que é clarete?
Clarete, tal como utilizamos normalmente hoje, é a forma que os ingleses (os americanos, não) geralmente utilizam para descrever os vinhos tintos de Bordeaux. É grafado com o “t” mudo: Claret.
Na França medieval maioria dos vinhos tintos resultava de uma breve fermentação, normalmente não mais do que um ou dois dias. Esse curto período de contato do suco com as cascas das uvas produzia um vinho de cor muito pálida, provavelmente muito parecidos com os rosados de hoje. Esses vinhos, exportados de Bordeaux, eram chamados de vinum clarum, ou Clairet – e foi dessa última palavra que derivou o termo inglês Claret.
Outros vinhos, muito mais escuros também eram produzidos, levando-se o que restou da primeira fermentação para uma nova prensagem. E o vinho que resultava era chamado de vinum rubeum purum, bin vermelh ou pinpin.
Embora a forma clairet fosse largamente utilizada na França medieval, a expressão claret parece não ter sido muito utilizada na Inglaterra até o século XVI. Na segunda metade do século XVII, um novo tipo de vinho, de qualidade muito melhor e de cor mais escura, começou a ser produzida nas regiões de Graves e no Médoc. Mais atenção era dada à seleção das uvas, melhorou-se a técnica de vinificação, utilizaram-se barris de carvalho novos. Então, no começo do século XVIII, os ingleses começaram a chamar esses vinhos de Novos Clarets Franceses e os mais famosos entre eles eram o Haut-Brion, Lafite, Latour e Margaux.
(The Oxford Companion to Wine – segunda edição. (Editado por Jancis Robinson, MW).
Clairet – estilo de vinho rosado escuro que é uma especialidade da região de Bordeaux, lembrando os vinhos tintos exportados em grande quantidade de Bordeaux para a Inglaterra, na Idade Média. Foi esse Clairet que originalmente inspirou a expressão inglesa Claret.
Como é feito? Uvas tintas são fermentadas em contato com suas cascas por cerca de 24 horas. Então retiram as cascas e a fermentação continua até secar. O sumo pega muito pouco a cor tinta, fica mais para o rosado. A bebida é então engarrafada para ser vendida sob a apelação “Bordeaux Clairet” e deve ser bebida o mais jovem possível. Falam que se originou em Quinsac, nas Premières Côtes de Bordeaux.
Clairette. É um nome muito utilizado para uvas brancas do sul da França. Como, por exemplo, a Clairette Ronde, do Languedoc (que é a uva Ugni Blanc, versão da Trebbiano italiana, que entra na produção do Conhaque e do Armagnac). As Clairettes servem também como sinônimos para a uva Bourboulenc.
Clarete. É também uma expressão espanhola para um vinho de matiz entre o rosé (que os espanhóis chamam literalmente de rosado) e um tinto leve. Relaciona-se etimologicamente (mas não enologicamente) ao Claret inglês e tem origem em claro – que significa isso mesmo, claro.
A palavra foi utilizada nos rótulos de vinhos espanhóis até sua proibição, em razão da entrada da Espanha na União Européia, em 1986. Mas ainda é empregada no país como uma expressão descritiva.
Clarete. Em Portugal é o vinho tinto “pouco colorido”. Mas lá temos também o vinho Palhete (ou Palheto), um vinho tinto obtido “da curtimenta parcial de uvas tintas ou da curtimenta conjunta de uvas tintas e brancas, não podendo as uvas brancas ultrapassar 15% do total".
Temos aí, na verdade, um rosé ou rosado. Existe, inclusive, uma designação oficial: Palhete de Ourém, para os vinhos dessa região, em complemento à designação “Vinho Regional Estremadura”, com uvas tintas e brancas originais da região de Ourém e lá vinificadas.
É uma bebida de origem medieval, com maiôs de 800 anos de história, finalmente regularizada pelo governo português em 2001. O palhete tem uma cor próxima ao do rubi claro.
Clarete. No Brasil, pela Lei nº 10.970, de 12 de novembro de 2004, os vinhos são assim classificados quanto às suas cores: a) tinto; b) rosado, rosé ou clarete; c) branco. Ou seja: clarete e rosado são a mesma coisa. Saiba mais sobre a Lei do Vinho no Brasil aqui . Essa definição se repete nos glossários dos sites da Associação Brasileira de Enologia (veja aqui). E também no da União Brasileira de Vitivinicultura (veja aqui).
Numa carta a um amigo seu, o poeta português Antero de Quental (1842-1891) fala ter provado alguns vinhos do Minho enviados por esse amigo. “Como originalidade ponho o clarete acima de tudo... Ao seco acho-o seco de mais e, no gênero, prefiro-lhe o bastardo... Em conclusão: como tipo ponho o clarete em 1º lugar e ponho em último o seco”, avalia o poeta.
Ou seja, parece que se estabelece aqui uma diferença quanto ao teor de açúcar do vinho, pois entendemos pela carta que o clarete seria mais doce. Isso altera alguma coisa? Acho que não: podemos ter um clarete doce, meio doce ou seco, quanto ao volume de açúcar. E ele não deixaria de ser clarete.
Mas para criar mais confusão, o missivista fala de uma preferência pelo “bastardo”. A casta Bastardo é uma das utilizadas na região de Denominação de Origem Controlada da Beira Interior. É também uma das uvas tintas utilizadas no vinho do Porto (as variedades de destaque lá são: touriga nacional, tinta roriz, tinta barroca, touriga francesa, tinta cão, donzelinho, tinta francisca e mourisco tinto, além da bastardo). Os Portos são, contudo, doces. Fico confusa: o poeta teria bebido um tantinho a mais e ousou comparar vinhos doces com secos, ou simplesmente firmou que prefere os vinhos doces?
Mas esse estilo de clarete doce tem um fundamento.
Tenho aqui o texto de um anúncio de rádio (um spot), dos idos de 1947, na Rádio Tupi, onde o locutor lia o texto ao vivo, direto, durante um programa do lendário Almirante. O programa era patrocinado pelo Vinho Único e os estilos dos vinhos dessa marca eram apresentados: “clarete, grande vinho branco doce, moscatel licoroso, malvasia tipo porto, espumante tinto e licoroso...”
Não dá muito para entender as classificações do anúncio, pois, vejam: temos aí um “malvasia tipo porto”. Mas Malvasia (ou Malmsey ou Malvazia) é uma das quatro grandes variedades que fazem o vinho da Madeira. Será que usaram “tipo porto” em substituição a Madeira para facilitar o entendimento do ouvinte? Só que, no Brasil, Madeira e Porto eram igualmente conhecidos, como tudo de gostoso vindo de Portugal para a colônia.
A confusão é maior por existir uma variedade, a Malvasia Fina, conhecida também como Vital, plantada na região do Douro e que contribui como blend para o vinho do Porto branco – mas muita rara no Brasil dos anos 50.
E, reparem, quase todos os vinhos são “licorosos”. Durante muitos anos, os vinhos rosé, rosados ou claretes (como nas definições portuguesa, espanhola e brasileira) eram doces – uma tradição que vem até de antes do famoso Mateus Rosé, um dos maiores produtos de exportação de Portugal em todos os tempos. O Mateus ajudou a embalar a imagem de doçura dos rosados. Nos Estados Unidos, hoje, os rosés são ainda considerados pela maioria dos consumidores como vinhos doces – graças ao Mateus e também os rosados feitos lá com a uva Zinfandel.
Então o clarete seria o quê? Um rosado doce, “licoroso”? Apenas um vinho tinto? Se fosse, porque não chamá-lo apenas de tinto, tal como o anúncio fez com o “tinto espumante licoroso"?
Os rosados contemporâneos são em sua maioria secos, repetem a tradição medieval. Vinhos tintos claros porque seu sumo não ficou muito tempo em contato com as cascas das uvas. Ou, num segundo método: uma mistura de brancos e tintos.
Enfim, hoje a expressão clarete só é utilizada em alguns rótulos portugueses. Mas o seu significado se mantém: é um vinho tinto pálido ou um rosado mais acentuado, chegando ao rubi.
E seu ancestral, claret, continua firme como a denominação até hoje utilizada pelos ingleses para os tintos de Bordeaux. Mas ainda vemos a palavra Claret em alguns rótulos bordaleses – certamente dirigidos especificamente aos consumidores ingleses.
A expressão em nossa língua caiu em desuso quando a Espanha e Portugal ingressaram na União Européia, cujas leis relativas aos vinhos impõem que as cores destes sejam apenas tintas, brancas e rosadas. E o clarete foi aposentado.
O inverno vai chegando ao fim, com as praias cariocas cheias de gente procurando mais calor e mais cor. E com o calor, leitora, não deixe de experimentar mais os roses, rosados ou claretes, tal como a definição da lei brasileira. São excelentes para refrescar.

Um comentário:

Lizete Vicari disse...

O que houve com a Sonia Melier? Procurando por clarete, encontrei teu blog. Ele está abandonado?
Tenho um filho enólogo e esse ano produzimos vinho. Entre estes vinhos produzimos um clarete, apenas 130 garrafas. Foi feito com a uva Merlot com um corte de 10% de riesling. Gostei do teu artigo! um abraço Lizete Vicari