14.10.08

O Milagre

A vontade que dá é mudar para a Itália. Não é nada bom continuar a falar dessa fenomenal crise econômica, ficar à sombra da máxima de que más notícias são boas notícias. Na Itália acontecem milagres, como explico adiante.
A crise já chegou à camada milionária do mundo dos vinhos. O Comitê Interprofissional do Vinho de Champagne (o órgão representativo dos produtores da região) lamenta informar que as vendas da sua preciosa bebida, que só faziam crescer, caíram 3% nos primeiros oito meses desse ano, em todo o mundo. Na França, onde o consumo da bebida corresponde a 55% das vendas totais, a queda foi de 5%.
As exportações para os EUA sofreram mais: 22% de queda só no primeiro semestre. O consumidor está se virando com simples espumantes (o que pode ser bom para o nosso e ótimo produto). Ao contrário do que disse na coluna passada, os vinhos finos de Bordeaux, alvos de colecionadores e investidores, já começam a sofrer com tsunami financeiro: perderam 25% de seu valor nos últimos meses, segundo a importadora inglesa Berry Bros. O sommelier do elegantéérrimo e carííííssimo The Dorchester, um dos restaurantes do famoso Alain Ducasse na Inglaterra, revela que as notas pretas de seus augustos clientes estão acizentando: eles agora substituem os primeiros vinhos pelos terceiros e cortam pela metade suas despesas com bebidas. Em Nova York, o diretor de bebidas do grupo Jean-Georges (18 restaurantes, entre eles o Jean-Georges, com três estrelas do Guia Michelin) confirma a tendência: “os clientes estão comprando menos dos grandes vinhos e optando por vinhos mais baratos”.
Lojas com seleção de vinhos tidos como referência de qualidade e preço, como a inglesa Sainsbury's, estão passando a oferecer vinhos como o espanhol Don Simón Selección Tempranillo por apenas 2,99 libras (12 reais). Ou seja, fazendo descer ainda mais os preços dos seus vinhos médios (normalmente entre 25 e 40 reais). O crítico de vinhos do jornal The Guardian, o inglês Tim Atkin (um Master of Wine), diz que o Don Simón foi pior vinho que provou em muitos anos. A situação está preta em todos os andares: da cobertura ao térreo.
Na França, os protestos contra restrições à propaganda estão se alastrando, envolvendo produtores de todo o país. Boa parte da crise de vendas é atribuída lei Evin, que proíbe a promoção da bebida até na Internet. Como vender, então? Os franceses estão protestando também contra a pesada e cega burocracia que cerca as apelações e tolhe a liberdade de criação dos produtores e a possibilidade de, sem descurar da qualidade, encontrar melhores chances tornar seus vinhos mais competitivos seus vinhos. Mas há quem encontre maneiras criativas de protestar.
Jean-Marc Speziale, dono do restaurante La Terrasse, na cidade de Aniane, no Languedoc-Roussillon (740,300 acres de vinhedos, três vezes a área de Bordeaux; produz mais vinhos que a Austrália), cansado com a omissão das autoridades ante ao que considera a injusta má reputação dos vinhos da região, tomou uma atitude. Chamou um amigo enólogo para fazer um vinho de qualidade e bom preço. E conseguiu, com uvas da safra de 2007, um blend de syrah e grenache. As primeiras cinco mil garrafas que colocou no mercado foram vendidas imediatamente.
Nome do vinho: “Le Vin de Merde” (acho que não preciso traduzir). Jean-Marc burlou leis, infringiu regulamentos, mas conseguiu chamar a atenção para os vinhos da região, incluindo aí uma irônica crítica ao comportamento dos técnicos do sistema de apelações do governo. Seu vinho está sendo muito bem considerado. Veja aqui: http://www.berthomeau.com/article-22990520.html
Porém, solução mesmo seria mudar para a Itália. Lá pelo menos, abrimos a bica e jorra vinho, nada mais nada menos do que o simples e refrescante Frascati. E de graça. Semana passada, uma dona de casa de Marino, uma vila 40 minutos ao sul de Roma, abriu a torneira da cozinha e, pronto: jorrou vinho. Milagre! E o mesmo aconteceu em várias outras casas.
É que agora, em fins de setembro, a cidade realiza a sua festa da uva, a Sagra dell’Uva, quando de uma das fontes da cidade, a Fonte dos Quatro Mouros, na praça principal, jorra vinho. Só que a bebida foi parar nas bicas de várias residências deixando os Quatro Mouros a seco. A população, munida de baldes, jarras, galões etc., em volta da fonte ficou chupando o dedo.
O prefeito da cidade desculpou-se. Os engenheiros da prefeitura fizeram a bebida percorrer tubulações erradas. O defeito foi reparado e a fonte de Marino voltou a jorrar vinho. Talvez o prefeito, agora, mande colocar um aviso no departamento de engenharia: “Não bebam antes de entubar qualquer coisa”. A entubação é global e talvez precisemos de milagres de verdade.

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