9.2.09

Uma viagem com final feliz

O grande poeta Dante foi proibido de voltar por mar a Ravena, depois de uma missão em Veneza, cujo doge o obrigou a retornar por terra. Ele teve de atravessar um litoral infestado de malária, que contraiu e da qual em morreu em Ravena em 1321, com 56 anos. Viajar pode ser perigoso.
E você sabe como os produtos viajam e chegam à sua mesa? Acho resposta será negativa na maioria das vezes. Quanto ao vinho, o cenário é ainda pior, pois ele contém um número incrivelmente grande de substâncias químicas muito delicadas e frágeis. E seu longo trajeto até as prateleiras das lojas é um quase nada de paraíso, muito pouco de purgatório, mas bastante de infernal. É o que entendi de um relato feito por Lyle Pass, por muitos anos comerciante de vinhos e que hoje escreve sobre vinhos (no Organic Wine Journal).
Quando há anos fui sócia de uma loja de vinhos aqui na Serra procurava experimentar os vinhos que chegavam. Fazia parte do meu aprendizado como enófila profissional: para vender a bebida tinha que comentá-la para meus clientes.
Comecei a observar, por exemplo, que aquele tinto francês da safra de 2000 estava bem diferente do mesmo vinho versão 1999. As frutas não apareciam, a acidez estava nas alturas, picava o nosso palato, os taninos nos assaltavam. Um vinho desequilibrado. Ou melhor: mudo, inexpressivo. Um grande desapontamento. Um problemaço para a loja. Como vender aquele vinho? Os clientes também ficariam desapontados: com a loja, com a Soninha, com o produtor e eventualmente com o importador. Um desastre!
Na maioria dos casos, o vinho não acaba permanentemente danificado. Mas vai precisar ficar em repouso por uns dois meses, em minha experiência. Ou pelo menos umas três semanas, segundo Lyle Pass.
Um desastre infelizmente muito comum. A maioria dos vinhos do hemisfério norte e também os da África do Sul, Austrália e Nova Zelândia chegam por aqui de navio, em containers refrigerados (chamam de reefers). Saem na temperatura correta das adegas de seus produtores em caminhões ou em trens diretos para os portos de embarque. E pegam sol, submetem-se ao calor e à luz, vibram, balançam, solavancam no caminho. Nos portos, ficam aguardando sob as mais diversas condições climáticas até serem colocados nos containers. Que só serão ligados no navio, pois energia custa dinheiro. E, assim mesmo, não sabemos em que faixas de temperaturas, em que condições de funcionamento. E se acontecer uma pane e o contêiner virar um forno?
Durante a viagem voltam a balançar bastante. Parece que apenas as águas do Rio Hudson são calmas o bastante para permitir o pouso sereno de um jato. Alto mar é outra história.
De qualquer modo, o vinho chega e espera no porto, mais uma vez exposto à luz e às variações de temperatura. Até que embarca em outro caminhão. E lá vai ele de Vitória ou Santos, Rio etc. para as lojas e supermercados de todo o país. Ainda debaixo de calor dentro do baú, aos trancos e barrancos impostos pelas nossas indigestas estradas.
Já os vinhos argentinos, chilenos e uruguaios nos chegam de caminhão mesmo. Por exemplo, uma empresa sempre bem recomendada, a DM Transporte e Logística Internacional, com sede em Eldorado do Sul, RS, tem cuidados especiais com os vinhos, reconhece que eles representam uma carga muito sensível, delicada, que “precisam de repouso desde o preparo ao seu consumo”. Da Argentina e do Chile trazem vinhos em carretas tipo sider, equipadas com suspensão pneumática. Mas ainda assim a carga vai balançar e submeter-se ao calor. Não consegui no site da DM qualquer referência à transporte refrigerado ou resfriado.
E quando chegar ao importador, digamos que em São Paulo ou no Rio, pode seer que vá parar num galpão sem refrigeração e protegido da luz, à espera de um transportador para os demais mercados.
O transporte refrigerado por via marítima começou lá pelos anos 70, pelo menos da Europa para os Estados Unidos. Dá o que pensar o que acontecia antes dessa data, o quanto de vinho não se estragava pelo caminho. É claro que as coisas melhoraram bastante, mas ainda não chegamos à perfeição.
Inclusive, o transporte feito nessas condições pode envelhecer o vinho em até seis meses, observa o crítico David Schildneck, da Wine Advocate, a famosa publicação de Robert Parker.
Todos sabemos que os vinhos devem ser guardados em locais absolutamente escuros, livres de quaisquer, vibrações, em temperaturas entre 12 e 16º C. A umidade da adega deve estar entre 60 e 70%. Ao viajar, o vinho deveria pelo menos ficar na temperatura que sai da adega, entre aqueles 12-16º C. Acima disso, ele vai cozinhar.
Lyle Fass, com a autoridade de veterano varejista de vinhos, duvida que os vendedores das lojas saibam exatamente como os vinhos nas prateleiras viajaram. Será que eles sabem que a bebida começou a ser arruinada pelas vibrações intensas e pelas variações da temperatura durante a viagem? Sabem que aquele rótulo está se descolando em razão do calor e não por insuficiência de cola? Que se a bebida chegou recentemente estará imprestável para consumo, que precisa descansar por um bom tempo?
Quase certo que não. E se soubessem, iriam desistir da venda e falar a verdade? “Por favor, cliente, volte em seis meses, quando esse vinho então estará pronto para beber” Sei que é um dilema para todos os envolvidos nessa rede: produtor, transportador e varejista.
As lojas e supermercados não estão sozinhos. Nos restaurantes, algum sommelier ou garçom vai dizer que um vinho novo na lista da casa, também é recém-chegado de viagem e que, portanto, não deveria estar naquela carta e muito menos sendo oferecido aos clientes?
De quem é a responsabilidade? Do importador, do lojista, do restaurador? É um debate ético interessante. O consumidor é o primeiro a se dar mal nessa história. O varejista deveria informar sobre os problemas que envolvem o transporte de vinhos? Nessa cadeia, todos compraram vinhos de alguém e não querem ficar sentados em cima de seus estoques. Têm de vendê-los. A bebida que entra tem de sair rapidinho. O que fazer? No final, todos serão prejudicados, pois a bebida frustrará o consumidor, que sem dúvida procurará outros rótulos, de outros produtores, em outras lojas.
Eu passei a fazer perguntas aos lojistas. Desde quando aquele vinho está na prateleira, quando chegou à loja? Está ou não pronto para beber? Questões assim vão indicar aos varejistas que você é um consumidor atento, preocupado com esse tipo de “detalhe”. Se mentirem ou não souberem responder poderão perdê-lo como cliente. Fazendo assim, passarão a perguntar aos seus importadores as condições de transporte de suas cargas.
Também parei de comprar caixas de vinho. Compro uma garrafa, experimento e se tudo estive bem, volto à loja e compro mais.
As viagens do vinho poderiam tender mais para o paraíso do que para esse inferno? A Divina Comédia tem esse nome não pela presença do humor, mas porque as Comédias, nos tempos do poeta florentino (século XIII), eram obras com finais felizes, ao contrário das tragédias. O seu poema, por exemplo, começa no Inferno e termina no Paraíso. Acho que tecnicamente pouco poderá ser melhorado nessas viagens. Contudo, o consumidor deveria ficar sabendo quanto de tempo ele precisará aguardar para beber seu vinho. É quando nossa história passaria a ser uma comédia e com direito a um final feliz.

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