12.8.09

Uma boa vida

O que acontece quando um grupo de cervejeiros radicais é levado a degustar vinhos? Semana passada, num grupo de amigos e amigas degustamos dois vinhos: o primeiro, um grande tinto de Pauillac, com presença dominante da Cabernet Sauvignon e da Merlot, escuro, concentrado, ótimo aroma, com caráter floral, denso, e com taninos dominantes. Grande potencial para que a fruta sobreviva aos taninos. Era um exemplar do famoso Château Pontet-Canet 2008. O segundo, o também afamado Marqués de Murrieta Rioja Reserva Dalmau 2003. Cremoso, jovem, com muita fruta e taninos já maduros.
Pois o grupo de cervejeiro presente preferiu o vinho espanhol, “muito menos amargo”. Eles estranharam a presença dos taninos, muito mais marcante no vinho francês. Isso acontece com freqüência com quem está começando com os vinhos. E que não se estranhe o sucesso que fazem os tais vinhos “frutados” e com “taninos domados” – a preferência do grosso dos consumidores. São normalmente vinhos simples, rápidos, fáceis de beber.
Contudo, estranhei que os cervejeiros reclamassem do amargor. Pois se aquela turma era mesmo de fanáticos cervejeiros com certeza já teriam ouvido falar no IBU ou International Bittering Unit (“Unidade Internacional de Amargor”), uma escala através da qual se mede o amargor das cervejas. Esse amargor é determinado principalmente pela quantidade seja de lúpulo ou de malte. Quanto mais lúpulo, mais amarga a bebida. Quanto mais malte, mais doce ela fica. O limite é de 100 IBUs, com o amargor sendo temperado pela quantidade de malte. Às vezes, uma cerveja tem um IBU de 50, mas é menos amarga que uma de 30 pela quantidade de malte utilizada na sua receita.
Sei que os grandes conhecedores de cerveja preferem sistematicamente as mais amargas. Tanto que estamos falando de um escala de amargor desenvolvida para cervejas. Os cervejeiros que reclamaram do amargor do Pontet-Canet devem mesmo é preferir as cervejas leves e aguadas, quase neutras, servidas no Brasil.
Por que será que não criam um índice de amargor para vinhos? Isso faria com que servíssemos vinhos com poucos taninos para os neófitos. E só abríssemos uma garrafa cara (pelo menos para mim) como o Pontet-Canet para degustadores mais experimentados.
..........................................................
Minha boa ação essa semana foi informar um local onde o leitor Michael Edward pudesse encontrar um decantador a vácuo, um acessório que ele não conseguia encontrar no Brasil. Pilotei o Google e rapidamente encontrei: a rede da loja Spicy possui nada mais, nada menos que o Metrokane V1, o primeiro decantador a vácuo do mundo. Ele tem o formato tradicional dos decantadores, mas vem equipado com uma bomba a vácuo e uma rolha especial – especial porque contém um mostrador indicando a pressão dentro do vasilhame. Quando o mostrador parar no vermelho é hora de parar de bombear. É sinal de que o oxigênio foi eliminado e o vinho poderá ficar em boas condições por vários dias.
Interessante é que o decantador, com suas origens na Roma antiga, praticamente não sofreu inovações até agora, com o aparecimento do Metrokane.
Informação adicional: além da Spicy, sugeri a Amazon.com (e no caso o Michael teria de importar o decantador). Mas ele informou que já teve “problemas homéricos” com a empresa, apesar de ter o preço bem mais em conta. Os problemas que tive com a Amazon.com até hoje foram de prazo de entrega dos livros e CDs que encomendei. Levaram até quatro meses para chegar. Sim, optei por não pagar extra para as encomendas serem enviadas por avião. Ficaram por lá, esperando contêiner encher. Paciência. Mas fica aqui o recado do Michel para quem quiser evitar odisséias.
Dê só uma olhadinha no Metrokane V1.
..........................................................
O José Neves ganhou um senhor presente: uma garrafa de vinho do Porto Vintage, 1991: é um Taylor Fladgate. O José não sabe muito sobre os Vintage; está mais familiarizado com os Porto Tawny, normalmente com 10 anos de idade. Quer saber se o Vintage, que estaria agora perto dos 20 anos, está velho demais.
A diferença entre um Porto Vintage e um Tawny é que neste a idade registrada em seu rótulo, no momento em que foi engarrafado, é a idade média dos vinhos utilizados no blending. Quer dizer: esse vinho pode conter um Porto de cinco anos como também um Porto de 30 anos. São vinhos maturados por longos períodos em grandes barris de carvalho. Isso faz com que percam pigmentos e sua cor se torne “tawny”, castanha.
Já o Porto Vintage é diferente. É um vinho feito de uvas colhidas num mesmo ano, no caso do José, em 1991. Ele é sazonado em barris de carvalho novos por um período de até três anos, quando então é colocado em garrafas, onde continuam sua evolução. O vinho amadurece muito mais lentamente em garrafa do que em barril, pois há menos contato com o oxigênio. Verifiquei que a safra de 1991 foi maravilhosa e esse vinho, mesmo com 18 anos é relativamente jovem. Eu esperaria mais um cinco anos para bebê-lo. Li mesmo que os Porto Vintage 1991 devem ser abertos depois de 30 anos em garrafa.
José, você vai agüentar esperar até 2021?
..........................................................
Por falar no desenvolvimento de vinhos, o seu amadurecimento e longa idade, lembro que invariavelmente ouço que “vinho é uma coisa viva”. E que, por isso, continua o seu progresso dentro de uma garrafa.
Gente, nada disso. Uma garrafa de vinho é em água em sua maior parte, mais uma quantidade de álcool (12, 14%) e infinitésimas partículas quantidades de cerca de 400 elementos que dão caráter à bebida. O fato de que uns poucos vinhos são feitos com a intenção de desenvolver na medida em que envelhecem não fazem deles “coisas vivas”. Estamos aqui falando de processos químicos naturais, de lentas interações do oxigênio com aqueles elementos contidos na composição dos vinhos. Uma vez perdi minha faca de cozinha preferida. Fiquei desesperada. Procurei-a por toda casa. E só fui achá-la no quintal três semanas depois. Enferrujada. Tinha chovido e a faca estava no meio da grama. Um desastre. Tive que usar um tira-ferrugens. Minha querida faca entra em cena como um exemplo de um processo de transformação química natural. E tenho certeza que ninguém vai dizer minha faca é “uma coisa viva”. Um crítico escreveu que “se o vinho fosse uma coisa viva, provavelmente conteria coisas que não gostaríamos de beber”.
O poder e a nobreza de um vinho não dependem desse tipo de mito. Parte da grandeza de um grande vinho reside no fato de sabermos que seu caráter, sua capacidade de nos causar prazer é ...finita. Ao provarmos um grande vinho já antecipamos tristemente o seu desaparecimento. Viver uma boa vida é o legado de um bom vinho.

Nenhum comentário: