27.8.09

A Bala de Prata

Não tem muito tempo que os médicos sentiam-se seguros em recomendar suplementos de estrogênio para mulheres após a menopausa, de modo a reduzir riscos de doenças cardíacas. Eles se baseavam em pesquisas baseadas na simples observação. Mas não havia então uma explicação científica para esse fato. Hoje se sabe que as mulheres que recebem esse suplemento hormonal sofrem mais com males do coração.
É com base no que é a simples observação e a certeza científica que o crítico de vinhos Michael Apstein pergunta se o vinho realmente previne contra doenças cardíacas.
E a pergunta ganha mais peso quando sabemos que Michel Apstein, além de reputado crítico é também um médico experiente e respeitado. Apstein é gastroenterologista de uma famosa clínica de Boston e professor de medicina na escola de medicina de Harvard. Há 20 anos escreve sobre vinhos, contribuindo para o San Francisco Chronicle, para o Boston Globe e para o site especializado Wine Review Online. É consultor, educador e juiz em várias degustações de vinhos nos EUA e no exterior e ganhador de um dos mais importantes prêmios do mundo dos vinhos: o James Beard Award, pelos seus escritos. Eis aqui um resumo do que escreveu recentemente no mais importante jornal da costa leste dos EUA, o San Francisco Chronicle.
Quanto devo beber? “Quando as pessoas descobrem que sou especialista em fígado e crítico de vinhos, invariavelmente perguntam: ‘Quanto devo beber sem ficar doente do fígado?’ Nunca perguntam: ‘Quando devo beber para ficar saudável?’
Segundo Apstein, as pessoas sabem que o álcool pode causar doenças hepáticas. Porém, desde que, em 1991, o programa de TV “60 Minutos” popularizou no mundo inteiro o chamado Paradoxo Francês (os franceses têm uma dieta com muita gordura, mas poucos problemas cardíacos porque bebem vinho tinto), os consumidores conseguiram um álibi para beber mais. (Saiba mais sobre esse paradoxo e o programa da CBS).
E o médico-crítico comenta que, sim, apesar da falta de uma forte evidência, era o que todos queriam acreditar: álcool, o fruto proibido, de fato faz bem para a saúde.
“Como médico, sou cético dos proclamados efeitos do vinho para a saúde – do vinho e de qualquer outro alimento nesse sentido. Tal ceticismo médico não impediu que alguns na indústria do vinho proclamassem a bebida como saudável. As vinícolas alardeiam a quantidade de resveratrol, essa moderna fonte da juventude, em seus vinhos. E, sim, os tintos ainda carregam montes de antioxidantes”.
Mas Apstein volta a perguntar: “É realmente evidente que o vinho previne contra doenças cardíacas?” E responde que, no ponto em que estamos hoje, essas provas não são fortes o bastante.
Ele lembra estudos feitos pela Organização Mundial de Saúde nos Estados Unidos e na Europa nos anos 70, comparando a quantidade de álcool consumida com a taxa de doenças hepáticas ou cardíacas nos vários países. Onde o consumo de álcool era maior, na época (França, Itália e Espanha), as taxas de doenças do fígado eram as maiores. Contudo, eram menores as relativas aos males cardíacos.
Explica ele que esses estudos, chamados de observacionais (feitos através da observação direta e sistemática), nunca podem determinar causa e efeito. Apenas levantam associações, possibilidades. Mas são importantes, pois podem direcionar futuras pesquisas. O álcool causa doenças hepáticas, previne ataques cardíacos? Ou as causas estão em outros lugares?
Os publicitários fazem associações, esperando que os consumidores pensem que seus produtos tenham os efeitos desejados. O médico-crítico lembra pesquisas afirmando que jovens que participam freqüentemente de refeições com suas famílias tiram melhores notas nas escolas. A explicação mais plausível, segundo Apstein, é que as famílias que comem juntas têm rendas maiores e conseguem pagar boa educação para seus filhos. “Comer junto não resulta em notas melhores; está apenas associado com um comportamento que resulta em melhores notas”.
“Nós, especialistas em fígado, debatemos por anos se era o álcool ou a desnutrição comum entre alcoólicos que causava doenças hepáticas. A questão foi resolvida em 1974, quando o Dr. Charles Lieber, de Nova York, alimentou macacos com álcool e uma dieta nutritivamente completa. Os animais desenvolveram todos os estágios de uma doença de origem alcoólica em seus fígados”.
E mais uma vez pergunta: “Sem prova, como é que se convencionou que o vinho previne doenças cardíacas?”
Novamente, temos os estudos observacionais. Através deles, se fez o mesmo tipo de associação. Pessoas que bebem moderadamente (um ou dois drinques por dia) têm menos doenças cardíacas do que aqueles que não bebem nada ou o fazem pesadamente. “Embora não demonstrem causa e efeito, os resultados são surpreendentes”.
Lembra o crítico-médico que os pesquisadores já propuseram várias alternativas através das quais o álcool pode ser benéfico. O consumo de até dois drinques diários aumentaria os níveis do colesterol bom, o HDL, desobstruindo as artérias. Mas os cardiologistas acreditam que o aumento dos níveis do HDL, que ocorre com exercícios físicos, é que reduzem as chances de doenças cardíacas.
Como a aspirina, o álcool inibiria coágulos nas artérias; ele “afinaria o sangue”. A aspirina reduz as chances de um ataque cardíaco em algumas pessoas. De mesma forma, os efeitos anticoagulantes do álcool poderiam reduzir esses ataques. “Isso é verdadeiro? Não se sabe”, diz Apstein.
Os polifenóis. Fora o álcool, o vinho contém componentes adicionais importantes para a saúde, pelo menos nos tubos de ensaio. Os benefícios não alcoólicos seriam os polifenóis e os antioxidantes, como o resveratrol. Ambos com efeitos dramáticos em nossos vasos sanguíneos. É a oxidação do colesterol que desempenha um papel importante no desenvolvimento da aterosclerose (a diminuição das artérias) e das doenças cardíacas. Daí que esses componentes antioxidantes talvez sejam mais importantes que o álcool, pelo menos nos vinhos tintos.
Mas Apstein lembra que outros alimentos também contêm antioxidantes e inclusive o famoso resveratrol. “Mas é o vinho que captura toda a atenção do público, pois ele satisfaz a dois desejos ao mesmo tempo. É uma bala de prata: uma solução simples e fácil para o complexo problema da doença cardíaca”.
O articulista sabe que é difícil seguir-se a recomendação de fazer exercícios e dieta. Recomendação que fica em desvantagem contra um substituto bem mais saboroso: o de beber sem culpas.
“Como amante dos vinhos, torço para que tudo o que se publica favoravelmente seja verdadeiro. Mas no nível intelectual, sei não existem balas mágicas. Beber sempre conteve problemas. Um médico pedirá invariavelmente um teste de stress antes de recomendar exercícios, certificando-se da saúde do seu paciente. O caso é que não há testes que assegurem que se possa beber saudavelmente”.
Michael Apstein explica que os cientistas não sabem exatamente qual a relevância dos antioxidantes em prevenir doenças cardíacas. Mesmo que o seu papel fosse aumentado em mil vezes, eles não teriam importância clínica. “E o mesmo se dá com qualquer fator relacionado ao vinho”.
Por isso, diz ele, é que, como qualquer outro médico, reluto em recomendar beber por razões de saúde, apesar dos impactos plausíveis e das numerosas evidências observacionais.
“Lembro da certeza com que os médicos recomendavam que as mulheres tomassem estrógeno para reduzir o risco de males cardíacos após a menopausa. Foram os estudos observacionais que sugeriram essa relação: as mulheres tinham menos doenças cardíacas do que os homens e essa diferença acabava após a menopausa. Tal como o vinho, havia explicações científicas sobre o problema.
Em 1990, o Instituto Nacional de Saúde norte-americano realizou um estudo de causa e feito em 16 mil mulheres pós-menopausa. Metade delas recebeu suplementos de hormônios e a outra metade não. As que receberam, tiveram mais doenças cardíacas e não menos.
Então, porque não realizar estudos semelhantes sobre a relação do álcool com as doenças do coração? “Precisamos de resultados que mostrem causa e feito antes de recomendar vinho como uma maneira de reduzir doenças cardíacas. Sem esses estudos ficamos às tontas. Talvez os bebedores de vinho tenham menos doenças cardíacas porque são mais afluentes, comem melhor, controlam sempre suas pressões, fazem exercício, cuidam mais de si mesmos.”
Mas o comentário final de Michael Apstein é o mais importante (e por sinal é aquele que repetimos sem parar nesse espaço): “Para mim, o vinho não é uma bebida para a saúde. Ele deve ser bebido porque é gostoso, torna as refeições e a vida mais apreciável. Se o consumo moderado é o que se recomenda normalmente, tanto melhor”.

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