21.11.06

Os esnobes do vinho

A maioria da crítica o chama de enochato. O esnobe do vinho leva com ele uma mancha negativa, tão negativa quanto a definição do Aurélio para a palavra: esnobe é quem pratica o esnobismo, por sua vez, a pessoa com “tendência a desprezar relações humildes, a aferir méritos pelas exterioridades, e, pois, a admirar e/ou respeitar exageradamente os que têm grande prestígio ou alta posição social. Esnobismo é um “exacerbado sentimento de superioridade”, uma “afetação de gosto e/ou admiração excessiva ao que está em voga”.
Os esnobes do vinho existem em diversas vestes, em várias subespécies e são fáceis de identificar. Num jantar, será ele quem vai contradizer a pessoa tida como a mais conhecedora de vinho na mesa. Ao cheirar o vinho, vai identificar não apenas a região e a vinícola, mas também o que o vinicultor decidiu no dia em que as uvas foram colhidas. Fala demais.
Uma outra subcategoria é representada pelo tipo acima que começa a vomitar jargão técnico. Toca a falar de “fermentação malolática”, “maceração carbônica”, “micro-oxigenação”, “pneumatage”, “batonage”, “pigeage”. É o tipo técnico.
Ao seu lado, desfila o colecionador: possui todas as grandes garrafas de todas as grandes safras. “Também tenho esse vinho” é o seu refrão. E suas regiões queridas são sempre Bordeaux e Borgonha. Conhece todos os chateaux e domaines, sem falar de seus donos e donas e de seus produtores como se os conhecesse desde criancinha. Não adianta visitá-lo em casa na esperança de provar algumas daquelas maravilhas. Só estarão “prontas” daqui há dez, vinte anos. Vão às lojas e procuram os vinhos mais caros, fazem o mesmo nos restaurantes. Entre eles, temos os endinheirados de verdade e os caloteiros.
A crítica Natalie MacLean ainda identificou mais uma subespécie: a do “maníaco por saúde”. Não gosta de vinho necessariamente, mas o consome como remédio. “Em vez de uma tabela de safra, carrega uma lista com o nível de resveratrol de vários vinhos. Recalculou sua expectativa de vida baseado num reduzido risco de ataque cardíaco, pois bebe uma taça e meia de vinho diariamente”. É o eno-hipocondríaco.
Mas esnobes e esnobismos são parte fundamental desse mundo, tanto quanto as formigas em piqueniques.
No dicionário Webster, snob é uma pessoa tida como “arrogante, desagradável; um indivíduo que se arroga méritos que não possui...”; “aquele que tem um ar de superioridade ofensivo, em matérias de conhecimento ou gosto”. Ou seja, o Webster está semelhante ao do Aurélio e da maioria das definições.
Contudo, o dicionário de Cambridge acrescenta uma qualidade na definição: esnobe é uma pessoa “dotada de altos padrões e que não está satisfeita com as coisas que as pessoas comuns gostam”. Se há uma desaprovação, por outro lado acrescenta uma explicação para o esnobismo: a insatisfação com os padrões adotados pela galera.
Se a amiga viu o filme Sideways (que não cansa de passar na televisão) notou que o personagem principal, Miles, é vidrado em vinho, mas não tem nada de esnobe: é um humilde professor, escreveu um cartapácio que os editores recusam, sua esposa o abandonou. Está duro, mas surrupia dinheiro da mãe para visitar vinícolas no Vale de Santa Ynez, na Califórnia. Viaja com um amigo, ator, que não entende nada de vinhos, apenas gosta de bebê-los, e tenta encontrar o melhor Pinot Noir que a terra pode oferecer.
Miles é um personagem inseguro, carente. Mas é vidrado em vinhos, está absolutamente apaixonado e sabe quase tudo sobre a bebida. É o que os americanos chamam de wine geek.
Tenho um amigo, o Eduardo Courreges, engenheiro, possui uma gráfica aqui na Washington Luis, e roda o novo Jornal do Brasil. Ele é capaz de passar todo um dia conversando a respeito de serifas e pontos e se uma letra em particular tem o formato correto para a sua fonte. O Eduardo, na sua especialidade, é um geek, palavra que até o Shakespeare usou e que em seu tempo tinha o significado de tolo, idiota. Mas que chegou ao século XXI associada a computadores e à internet designando “uma pessoa com um talento e um interesse por tecnologia e programação acima do normal”. Bill Gates e Paul Allen, os fundadores da Microsoft, são geeks em suas origens. Ainda muito jovens criaram um sistema operacional que puxou o tapete debaixo da então poderosa IBM e mudaram a face da informática em todo o planeta. Hoje os dois são apenas bilionários, que não dão jeito nas “windows” do meu computador. O sistema deveria ter mais “gates”.
Um wine geek, tal como um geek da informática é completamente consumido pelo seu campo de interesse, o vinho. Ele experimenta de tudo, quer saber tudo sobre vinhos, sem preconceitos. Prova vinhos secos e doces, brancos, tintos e rosados, vinhos do Velho e do Novo Mundo, degusta uvas pouco conhecidas, está sempre em busca de aventuras enológicas. Em português, ele seria um CDF (sabe, aquele menino chato, de óculos, que vive estudando, tira nota máxima em todas as matérias). Mas um CDF não necessariamente chato, quase sempre casual, que não se importa em saber o que vai comer para escolher o vinho. Ele primeiro escolhe o vinho e a harmonização pouco importa.
Mais uma vez os americanos têm uma expressão para definir o que nós, no começo da nossa conversa, chamamos de esnobe, no sentido negativo.
É o cork dork, mais ou menos, “o idiota da rolha”, uma pessoa tola e presunçosa – a respeito do vinho. É ele quem vai segurar a taça pela base. Não admite nem pega-la pela haste. Vai girá-la até a exaustão. Antes do colocar o nariz na taça fará um longo discurso sobre as supostas características do vinho que seque provou. Por fim, ao cheirar o vinho, anunciará o seu desapontamento com o aroma. O cork dork ama tudo o que é francês, os barris têm de ser de carvalho novo e os vinhos bem velhos (e sabemos que essas escolhas não são necessariamente as melhores). É capaz de, além de cheirar o vinho, escutá-lo também. Coloca os ouvidos na taça de champagne, pois afirma que, pelo som do borbulhar do espumante, consegue distinguir um Krug de um Roederer.
Esnobes, wine geeks, cork dorks, enochatos: eles podem ser maçantes por vezes. Mas sem eles saberíamos cada vez menos sobre o mundo dos vinhos e o que essa bebida pode nos oferecer.
Seja com comida, vinho, café, azeite etc. não há nada de errado em tentar dotar-se de altos padrões e desejar o melhor, o acima do comum. E acho que podemos continuar buscando esses “altos padrões” sem levantar nossos narizes e, ainda por cima, ajudar as pessoas a se aventurarem em experiências mais ousadas seja com o vinho, a comida, o café, roupas etc.
Amiga, você gosta de vinhos como uma wine geek ou cork dork? Para você, valem mais as definições do Aurélio e do Webster para esnobe e esnobismo no vinho? Ou você se encaixa mais nos altos padrões do verbete do dicionário de Cambridge?

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