2.4.10

As duas Páscoas

Páscoa é tempo de confraternização, de reunir a família, de celebração, de fé, tanto para judeus, para cristãos e mesmo para quem não é religioso: afinal, todos queremos paz e amizade entre nós. Mas para a colunista é também uma temporada aberta para polêmicas – a maioria delas em torno da Última Ceia. Quase todas as minhas colunas a respeito resultaram em algumas controvérsias. A maioria delas a respeito do vinho servido na Santa Ceia: seria suco de uva para um grupo, pois o uso de álcool seria proibido pelas escrituras.
Agora mesmo, o debate gira em torno do tamanho dos pratos e alimentos retratados nas pinturas da Santa Ceia ao longo dos últimos mil anos. Os tamanhos aumentaram: o prato principal cresceu 69%, os demais 66%. E o pão em 23%. Essas pinturas comprovariam que a humanidade caminha para a obesidade.
É o que querem demonstrar Brian Wansink e seu irmão, Craig. O primeiro é diretor do Laboratório de Alimentos da Universidade de Cornell, EUA, e autor de um livro sobre obesidade. E o segundo um especialista em Bíblia, ligado a uma igreja metodista Wesleyana.
Eles analisaram 52 quadros retratando a mais famosa refeição da história, pintados entre os anos 1.000 e 2.000, por autores como Leonardo da Vinci, El Greco, Lucas Cranach (o Velho), Rubens, entre outros.
Os dois utilizaram o tamanho das cabeças dos comensais como base de comparação, empregando computadores para cotejar com a grandeza dos pratos em frente aos apóstolos, das porções de comida nesses pratos e do pão na mesa.
Assumiram que as cabeças não aumentaram de tamanho no período estudado e chegaram a uma escala para medir o aumento das porções servidas. E elas aumentaram, assim como o tamanho dos pratos (em 65,6%).
Com isso, os irmãos Wansink acham que conseguiram demonstrar que as porções aumentaram nos últimos 1.000 anos, resultado da abundância dos alimentos, da industrialização, do consumismo, até chegarmos aos tamanhos gigantes e no problema da obesidade.
No máximo, um estudo divertido. Uma especialista em nutrição da Universidade de Nova York, Lisa Young, diz que não há evidência de que a massa do corpo humano tenha atingido a proporções anormais nos últimos mil anos. A obesidade seria um problema surgido apenas nos últimos 30 anos. Estudar anatomia a partir de quadros medievais e renascentistas talvez seja o mesmo que analisar o corpo humano a partir da Barbie.
E a taça utilizada por Jesus na Ceia? É outro bafafá. Onde estaria ela, como seria ela? A Bíblia só faz referência a um cálice utilizado por Jesus apenas no contexto da Última Ceia, quando disse que nela esta seu sangue, o sangue do pacto que naquele momento celebrava. Apenas isso, mas o bastante para que se transformasse numa lenda e motivo de uma busca interminável.
O comércio de relíquias em torno de Jesus foi enorme na Idade Média: pedaços da cruz e até ela inteira, partes do manto, da coroa de espinhos. E, claro, o famoso cálice. Uma lasca, um prego da cruz, um pedaço de qualquer desses e de outros supostos vestígios de Cristo eram negociados avidamente. Uma relíquia dessas fazia crescer enormemente o prestígio de uma cidade. Hoje, podemos ver o que seria o Cálice Sagrado na Catedral de Valença, Espanha. É uma peça feita de ágata, um tipo de quartzo, pedra utilizada em jóias. Ao longo dos séculos a peça teria sido trabalhada e enriquecida, com adornos etc.
Mas nos tempos de Cristo, entre judeus pobres, teria sido este o cálice utilizado? Acho que vamos encontrar mais verdades no filme Indiana Jones e a Última Cruzada, que trata justamente da busca pelo Santo Graal. No filme, lá está Indiana num momento de vida ou morte decidindo qual seria esse cálice. O herói ignorou dezenas deles, os ricamente adornados e escolheu uma taça simples, de madeira. “Esse é o copo de um carpinteiro”, diz. E essa é uma fantasia muito próxima da realidade.
Um estudioso da Bíblia, o americano Stephen Pfann, afirma que o Cálice Sagrado seria provavelmente de barro, segundo descobertas arqueológicas. Ele se baseia na cerâmica utilizada pelos Essênios, uma seita de judeus, que vivia em isolamento nas bordas do Mar Morto e que teriam tido influência no mundo de Jesus e de seus seguidores. Eles faziam tal como Jesus fez, passando a sua taça para seus discípulos. E essa taça era feita de barro. Essas taças, descobertas por arqueólogos em Qumram, são facilmente identificáveis por suas bordas mais finas. Serviam para beber. E beber vinho. Saiba mais aqui.
Por fim, o vinho. Fermentado ou suco de uva? Os judeus fazem vinho há milênios e, claro, o consumido em sua Páscoa é o fermentado. Já escrevei algumas vezes sobre o assunto. Veja a coluna de 2008, Dúvida histórica. Para judeus e cristãos, na celebração do Pessach e da Páscoa, o vinho continua sendo um elemento de significância crucial, tanto ritual como festiva. Para os cristãos, o chamado fruto do vinho (o vinho tal como o conhecemos, fermentado) é parte importante da Eucaristia. Os judeus são até mais rigorosos, em razão de suas leis kosher (o que é apropriado). Para eles, o vinho é feito unicamente de uvas fermentadas. Só não aceitam aquele vinho que foi clarificado usando gelatina (proteína de ossos, cartilagens e fibras bovinas) e cola de peixe, pois deixam de ser kosher.
Ambas as escrituras reconhecem o vinho (o fermentado). Ele é citado como a bebida das celebrações, utilizada até medicinalmente. A recomendação de que fosse bebido sempre com moderação é recorrente.
Agora, quem acha que Jesus jamais aprovaria bebidas alcoólicas, que beba suco de uva. No fim das contas, as duas Páscoas celebram a liberdade, o perdão (vamos lembrar do lava-pés) e o amor pela próximo. Saúde e paz a todas vocês.

Nenhum comentário: