20.7.05

Dois Nomes

Hemingway. “Nessa época, na Europa, se pensava em vinho como algo saudável, tão normal quanto a comida, e também como um grande abastecedor de felicidade, de bem estar e deleite. Beber vinho não era esnobismo nem sinal de sofisticação, nem um culto; era tão natural quanto comer e para mim necessário, e eu não pensaria em fazer uma refeição sem beber vinho cidra ou cerveja. Adorava todos os vinhos, menos os doces ou adocicados e os vinhos muito pesados e nunca me ocorreu que repartir umas poucas garrafas de Mâcon, leve, seco, branco pudesse causar alterações químicas no Scott e transformá-lo num tolo”.
Ernest Hemingway está viajando com seu novo amigo, F. Scott Fitzgerald, de Lyon para Paris, num Renault sem teto (Zelda, a mulher de Scott não gostava de tetos no carro, não deixou que consertassem o carro, que um acidente deixou sem teto). Estamos na França, nos anos 20. E, num determinado trecho da viagem, o jovem Ernest Hemingway compra algumas garrafas do branco Macôn, especialidade da região do Mâconnais, na Borgonha (são os Pouilly-Fuissé, St. Véran, Mâcon-Villages): não duram muito, são feitos para beber logo, apreciados mais para refrescar, perfeita companhia para a viagem dos dois.
Como a amiga percebe, o vinho sempre foi considerado uma bebida saudável e indispensável acompanhante da comida. Já nos anos 20, as mímicas do esnobismo e da sofisticação se faziam presentes, embora desprezadas pelo genial autor.
As “alterações químicas no Scott” são relativas ao efeito que apenas um pouco de álcool podia causar no autor de “O Grande Gatsby”, o que não é muito estranho em alguns alcoólicos.
Essa referência foi retirada de “Paris é uma Festa" (A Moveable Feast), publicada postumamente em 1964: são memórias do autor da Paris dos anos 20, recheada de relatos, alguns irreverentes, de luminares como Gertrude Stein e F. Scott Fitzgerald. Ernest Hemingway nasceu em Illinois em 1899. Escreveu “O Sol também se levanta”, “Adeus às Armas”, “Por quem os Sinos Dobram”, “O Velho e o Mar”, pelo qual ganhou o prêmio Pulitzer de 1953. Ganhou também o Nobel de Literatura no ano seguinte. Hemingway morreu em 1961.
Ernest gostava das bebidas, entre elas o vinho. Dedicou um verbete à bebida no seu "Morte na Tarde" (Death in the Afternoon), sobre touros e touradas, publicado lá pelos anos 30. Como ele chegou a Paris por volta de 1920, já devia ter aprendido alguma coisa sobre vinhos. O verbete, Vino, integra um glossário do livro explicando costumes, regiões e muito particularmente o patois usado em touradas. Eis o verbete:
"Vino: Vino corriente é vin ordinaire ou vinho de mesa; vino del pais é o vinho regional, sempre bom de pedir; vino Rioja é o vinho da região de Rioja, no norte da Espanha, tintos e brancos. Os melhores sãos os da Bodegas Bilbainos, Marqués de Murrieta, Marqués de Riscal. Rioja Clarete, ou Rioja Alta são os mais leves e agradáveis dos tintos. Diamante é um bom branco para peixes. Valdepenas é mais encorpado que o Rioja, mas seus brancos e rosés são excelentes. Os vinicultores espanhóis produzem Chablis e Borgonhas que eu não recomendo. O Clarete Valdepenas é muito bom. Os vinhos de mesa em torno de Valência são muito bons; e melhores os de Tarragona, embora não viajem bem. A Galícia tem um bom vinho regional. Nas Astúrias se bebe cidra. Os vinhos regionais de Navarra são muito bons. Para aqueles que chegam na Espanha pensando apenas em Xerez e Málaga, os tintos secos, jovens serão uma revelação. O vin ordinaire espanhol é consistentemente superior aos franceses, já que nunca são adulterados e um terço mais barato. Acredito que sejam de longe os melhores da Europa. Não têm Grands Vins que se comparem aos da França."
Hemingway não tem preconceitos contra os rosés. Exibe o conhecimento clássico de harmonização (brancos com peixes) e anuncia uma série de marcas espanholas que ainda hoje são populares no Brasil. E, por ele, vemos que os vinhos regionais (vin de pays) eram considerados melhores que os vinhos de mesa. Uma mancadinha, apenas: Chablis é o formidável branco da Borgonha. Acho que ele estava se referindo genericamente aos brancos espanhóis. Quanto às adulterações, elas diminuíram, mas ainda existem até hoje em toda a parte.
Já Francis Scott Fitzgerald, talvez seja até maior artisticamente: O Grande Gatsby chegou a ser considerado, por uma enquête realizada pela prestigiosa Modern Library o segundo melhor romance de língua inglesa do século 20, atrás apenas do Ulisses, de James Joyce.
Beethoven. A TV inglesa exibiu recentemente um documentário sobre a trajetória de um chumaço de cabelo do gênio da música, Ludwig van Beethoven, recolhido assim que o compositor morreu, em 1827. Analisada, essa porção revelou uma concentração de chumbo 100 vezes acima do nível seguro – o que explicaria as mazelas do autor: doenças estomacais, grandes dores de cabeça, irritabilidade e, inclusive, a sua surdez (a partir de 1797-99) e que acabariam com a sua morte em 1827.
O documentário sugere que o compositor tenha se intoxicado com chumbo consumindo águas de estações hidrominerais que freqüentou quando jovem. Mas um jornalista do irlandês Sunday Life, John Hunter, acha que o gênio teria sido envenenado através vinho e cerveja, que adorava.
No século 19, o chumbo era usado para adulterar essas bebidas de modo a melhorar seus sabores e aspectos. O metal era empregado desde os tempos dos romanos, para que o vinho não avinagrasse e também para adoçá-lo. Duzentos anos antes, um médico alemão, Eberhard Gockel, estabeleceu a primeira relação da bebida adulterada com a saúde, observando que bebedores de vinho tinham os mesmos problemas que os trabalhadores em minas de chumbo.
Nos tempos de Beethoven, bebia-se principalmente em canecas feitas de uma liga de estanho (70%) e chumbo (30%), as garrafas eram limpas com jatos de chumbo, reservatórios e encanamentos de água continham muito chumbo. Nesse sentido, você poderia culpar qualquer bebida.
Traços do metal existem naturalmente em todas as plantas, inclusive nas uvas. A prática da adulteração foi banida há tempos e hoje o metal é precipitado já na fase de produção do vinho. Os equipamentos das vinícolas não utilizam chumbo. Só ínfimas quantidades são ainda encontradas em algumas cápsulas de chumbo que protegem as rolhas – o que já está proibido na maioria dos países. Podemos encontrar chumbo em taças e decantadores de cristal (produzidos com o metal). Um estudo revelou uma concentração de 5 mg por litro de chumbo num decantador deixado com vinho do porto por 4 meses. Para que uma pessoa se intoxicasse, teria que beber 10 litros da bebida quase que de uma vez. Sabe-se que os vinhos modernos contêm um máximo de 0,13 mg de chumbo por litro de vinho, bem abaixo do nível permitido. Na América o nível é de 150 partes de chumbo por bilhão. A média mundial é de 95 partes por bilhão. É como se o metal não existisse na bebida.
Uma autópsia descobriu alguns problemas no fígado, no baço e no pâncreas do autor. Diz a historiadora Anne-Louise Coldicott que o compositor teria uma colite ulcerativa, hoje curável com os medicamentos modernos. Sofria de depressão, talvez devido ao problema que causou sua surdez. Apesar de gostar de vinho, são infundadas as suspeitas de que era um alcoólico. Mas até agora não se sabia da presença letal de chumbo revelada pelo cabelo de Beethoven. A verdade é que nossas vidas sempre estiveram por um fio. E o chumbo continua matando. Só que não se pode mais culpar os vinhos por isso.
Desta vez, a série de “Nomes” deu preferência a personalidades. Vamos abusar do filão, pois nomes é o que não faltam. E se a amiga tiver sugestões, é só clicar aqui para a Soninha no soniamelier@terra.com.br

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