19.8.05

Decantar ou não decantar

Afinal, devemos decantar todo e qualquer vinho, seja jovem ou maduro, com duas ou mais décadas de idade? Não apenas isso: devemos decantar tanto os tintos quanto os brancos? Espumantes devem ser decantados?
A tradição orientava a decantação apenas daqueles vinhos mais maduros, com depósitos - normalmente nas paredes laterais das garrafas guarados que estvam na posição horizontal nas adegas. É num desses lados que esses depósitos se reúnem.
A decantação – a transferência da bebida de um reservatório (no caso, a garrafa) para outro (o decantador ou apenas uma taça) -, era é continua sendo feita para eliminarmos esses sedimentos. A própria palavra quer dizer “separar, por gravidade, impurezas sólidas que se contenham em um líquido”, limpar, livrar, purificar – reza o Aurélio.
E essa é até hoje a mais óbvia razão para decantarmos alguns vinhos. Nada mais natural, pois aquelas impurezas, embora inofensivas à saúde, muitas vezes emprestam adstringência e sabor amargo ao vinho,.
Mas atualmente a confusão é grande. Observamos tanto em casa de amigos como em restaurantes bons de vinho que estão decantando qualquer garrafa que vá à mesa, não importa se de vinhos maduros ou jovens.
Mas esses, os mais jovens, raramente carregam impurezas. Um consultor de vinhos para restaurantes na Califórnia, Michael Quellette, afirma que com relação aos vinhos jovens “não se trata na realidade de decantar: o termo técnico é arejar, aerar, ventilar, oxigenar”.
Oxigenar? Mas isso não vai “envenenar” o vinho, corrompê-lo, avinagrá-lo? Não é para evitar a oxidação que estava hermeticamente fechado?
Segundo o citado consultor, um vinho, mesmo jovem, deve ser decantado para ganhar um pouco de ar. Os vinhos estão sempre comprimidos quando você abre a garrafa. Deixar entrar um pouco de ar, para o consultor, pode ajudar a “separar as camadas de aroma e sabor e expor algumas das qualidades da bebida”.
Michael Quellette está convencido de que decantar vinhos jovens só faz melhorá-los. Faz isso com todos os vinhos: tintos e brancos. Quanto a esses últimos, fala que ajuda os vinhos a florescer. “Se não decantá-los (os brancos), você só perceberá as qualidades do vinho na última taça. Ao decantá-los, você vai despertá-los já a partir da primeiras taça”.
A teoria é a de deixar o vinho em contato com oxigênio para que ele libere logo os seus aromas.
No "French Laundry", considerado um dos melhores restaurantes do mundo, em Napa, Califórnia, cujo chef, Thomas Keller, já recebeu por duas vezes consecutivas o maior prêmio da culinária norte-americana, o da Fundação James Beard, o sommelier decanta até vinhos espumantes, especialmente os rosados. E a efervescência? O sommelier do restaurante acredita que a decantação libera muito do dióxido de carbono, “resultando num vinho mais cremoso e mais frutado e menos ácido”. E menos efervescente, claro.
Alguns livros, inclusive, recomendam decantar com um dia de antecedência vinhos potentes, com aromas fechados ao nariz, como o caríssimo tinto italiano Brunello di Montalcino.
Muitos amantes de bons vinhos decantam garrafas de tintos mais carnudos, muito intensos, uma hora antes de servi-los.
Por outro lado. As virtudes da decantação sob quaisquer condições (para vinhos de qualquer estilo e idade) não são compartilhadas inteiramente pela ciência.
O professor de enologia da Universidade da Califórnia, em Davis (um dos maiores e mais respeitados centros de estudo e pesquisa enológica do mundo), Roger Boulton, afirma que não há absolutamente nenhuma evidência de que a decantação produza qualquer mudança nos taninos do vinho, pelos menos por alguns dias. Provadores podem até achar que os taninos ficaram mais macios (menos adstringentes), mas testes de laboratórios mostram o contrário.
O professor também revela que “nem a aeração, a oxigenação do vinho tem essa participação que muitos profissionais pensam ter”. Boulton diz que o oxigênio não tem nada com os aromas que emergem quando um vinho é colocado numa taça ou num decantador. “Esses aromas aparecem inclusive num ambiente nitrogenado, sem a presença do oxigênio”.
Como um refrigerante que libera parte do seu dióxido de carbono quando é aberto, mas guarda algumas bolhas na bebida, o vinho retém muitos dos seus componentes aromáticos em solução na garrafa, uma parcela deles está concentrada no gargalo (na parte superior do líquido, aquele espaço vazio entre a base da rolha e o vinho). Quando retiramos a rolha e o vinho é colocado seja num decantador ou numa taça, ambos com gargalos bem maiores, aqueles aromas, bons ou ruins, têm para onde escapar.
Alguns componentes do vinho evaporam-se mais rapidamente do que outros. Os sulfitos (sais e ésteres do ácido sulfuroso) e o ácido acético estão entre os primeiros a escafeder-se. Daí que o perfume inicial de um vinho pode não ser dos melhores.
Mas preste atenção que os ésteres (substâncias resultantes da condensação de um ácido orgânico com um álcool) responsáveis pelos aromas de muitos vinhos brancos podem também evaporar-se logo. Portanto, decantar um branco pode diminuir os seus atributos, explica o professor da UC Davis.
Dependendo da idade de um vinho e dos componentes aromáticos que contenha, essa liberação de aromas pode continuar por duas ou três horas. Mas num tinto típico de 10 anos, uma hora para “respirar” é mais do que suficiente, diz o professor. Depois disso, o vinho perderá mais dos aromas bons do que dos ruins. E Roger Boulton observa que aromas ruins, como os provocados por defeitos, como os da “doença da rolha”, jamais serão evaporados. Ficam no vinho.
Outra dica é que ninguém precisa de um decantador para liberar os aromas de uma garrafa. “Basta servir o vinho numa taça que o efeito é o mesmo. Use o decantador apenas se você é um sommelier”, diz o professor. Roger Boulton atribui a tradição de decantar aos vinhos europeus, “geralmente com muito mais incidência de defeitos do que os vinhos do Novo Mundo”.
O grande mestre da enologia, o já falecido cientista francês Emile Peynaud, argumentava que apenas os vinhos com falhas beneficiavam-se com a decantação. Acreditava que bons vinhos revelavam as suas qualidades e charmes assim que eram despejados numa taça.
Mas tanto Boulton, quanto Peynaud e a maioria dos profissionais do vinho concordam num determinado ponto: apenas desarrolhar a garrafa e deixar o “vinho respirar” não ajuda muita coisa. Até que o vinho seja transferido para um lugar mais espaçoso, seja uma taça ou um decantador, não se notará qualquer melhoria. De qualquer modo, não há como negar que um vinho apresentado num decantador fica muito mais convidativo.
Como decantar. Com os vinhos mais velhos, mais maduros, temos de separar os sedimentos depositados nas paredes da garrafa. Segure o gargalo da garrafa próximo a alguma fonte de luz (uma vela, uma lanterna) e muito firme e vagarosamente vá despejando o vinho no decantador. A luz ajudará a ver quando os sedimentos chegam próximo ao gargalo. Nesse momento, continue com mais cuidado e vagar ainda. Em hipótese alguma agite a garrafa. Uma vez no decantador, beba logo o vinho, para que não perca de vez os seus aromas. Se o vinho for muito maduro, o melhor é não decantá-lo. Beba-o logo, pois suas qualidades podem perder-se no processo da decantação.
Para vinhos jovens, deixe-os por uns 15 minutos num decantador, ensina o editor da “Restaurant Wine”, Ronn Wiegand. Para os vinhos mais musculosos, como os Cabernet Sauvignon, ele recomenda uma hora.
A amiga pode muito bem testar as qualidades de decantar ou não. Basta abrir uma garrafa, encher uma taça e decantar o restante. Prove da taça. E algum tempo depois, o vinho que está no decantador. Compare as duas provas.

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