19.8.05

Harmonia II

Só mais uma palavrinha sobre essa questão de harmonizar vinhos e comidas (veja post "Harmonia" mais abaixo). Esse não é um assunto fechado, absolutamente resolvido. O que publiquei semana passada foram dicas de um dos mais sérios escritores e críticos de vinho do mundo, Hugh Johnson. Logo, carregadas de subjetividade. Por isso, ao largo de verdades científicas. E nunca foi essa a intenção do mestre inglês.
Enfim, tudo o que se pretende com qualquer harmonização é fazer ressaltar tanto o sabor do vinho quanto o do prato que o acompanha.
Harmonizar vinhos e comidas pode ser um assunto complexo, sempre envolvendo a cultura gastronômica de uma região ou de todo um país. Pode também se transformar no recreio exclusivo de chatos e pedantes. Depende do ponto de vista.
O fato é que a professora Hildegarde Heyman, de ciência sensorial do departamento de viticultura e enologia da Universidade da Califórnia, na cidade de Davis (um dos mais importantes centros de estudo e ensino do vinho, em todo o mundo), verificou que a maioria das combinações, em particular as de queijos e vinhos, não funciona.
Essas harmonizações não são nada do que alardeiam. Podem até resultar em jantares divertidos, mas ninguém ainda demonstrou cientificamente que a combinação de comida e vinho melhora de verdade esses dois componentes– que é o que se pretende em qualquer dessas reuniões.
Inclusive, a professora Heyman acha que acontece justamente o oposto – e tem base científica para prová-lo.
Ela vem realizando uma série de testes bem estruturados e precisos para determinar os benefícios ou os obstáculos que ocorrem quando da combinação de vários vinhos com várias comidas.
Como já falamos, muito se escreve, fala e mostra sobre harmonização. Aqui e em qualquer outro canto do globo. Até os contra-rótulos das garrafas agora apresentam sugestões de pratos para combinar com vinhos.
Só que são pouquíssimos os estudos acadêmicos, parcas as informações com base científica sobre a combinação de vinhos e comidas. Até hoje, a professora só encontrou quatro trabalhos, todos originários da Suécia. E nenhum deles com argumentos convincentes, definitivos sobre as harmonizações.
A cientista decidiu, então, realizar a sua própria série de experiências. Seu trabalho mais recente, conduzido com a ajuda de uma estudante graduada de Davis, Berenice Madrigal-Galan, reuniu 11 juizes treinados (em experimentar vinhos e comidas), que se submeteram a testes para determinar como percebiam aromas e sabores de vinhos tintos se consumidos com uma variedade de queijos.
Esses juízes testaram oito vinhos de quatro diferentes variedades (Cabernet Sauvignon, Pinot Noir, Merlot e Syrah) – antes e depois de experimentarem oito espécies de queijos, de macios a duros, de leves a ricos (mais gordurosos). Os testes foram repetidos três vezes.
Os resultados foram desanimadores: as combinações não fizeram nada por melhorar a percepção sensorial dos vinhos. Ao contrário: elas na verdade fizeram com que aromas e sabores da bebida ficassem piores.
Para os juízes, os atributos que geralmente apreciamos nos vinhos tintos – os sabores e aromas de frutos, em particular de amora, morango, framboesa, os aromas e sabores do carvalho, a adstringência (aquela sensação de constrição provocada na boca pelos taninos do vinho tinto) – tudo isso decresceu na medida em que se provavam os queijos.
“Em todos os casos, houve um decréscimo. Nos testes, o vinho sem o queijo tinha sabor mais intenso. Com o queijo, esse sabor perdia intensidade”, revela Heyman. As diferenças eram pequenas, mas consistentes e por isso significativas.
O sabor e aroma que mais se intensificavam nos vinhos eram um tanto amenteigados, um resultado até esperado, em conseqüência da fermentação malolática, que acontece nos vinhos novos, particularmente nos tintos, quando o forte ácido málico se converte em ácido lático (que tem baixa acidez) e em dióxido de carbono. O próprio nome, lático, explica o sabor e aroma amanteigado.
“Mas só uma pessoa bem treinada em degustação de vinhos poderia perceber aquela intensidade. Um amador nada notaria”, afirma a professora.
Hildegarde Heyman e Madrigal-Galan buscaram estudar apenas o impacto do queijo sobre o vinho. E não do vinho sobre o queijo.
Apresentaram suas conclusões na reunião anual da Sociedade Americana de Enologia e Viticultura, realizada recentemente em Seattle.
O que é importante é que as duas acadêmicas não estão levantando questões sobre a validade de testar vinhos específicos com determinadas comidas. Evitam julgamento de valores. “Essa não é uma questão de gostar ou não gostar, ou de analisarmos a qualidade do vinho. Só queríamos determinar se o grau de intensidade do vinho foi afetado. Há um decréscimo, sim, nos vinhos. Mas isso não quer dizer que alguma coisa piorou. Se alguém gosta de tomar vinho e ao mesmo tempo comer queijo, que vá em frente”, diz Heyman.
Lá por volta dos anos 50, as regras de harmonização eram bem simples e generalizantes, do tipo vinho tinto com carne vermelha, vinho branco com carne branca.
Mas a partir dos anos 80, as coisas ficaram mais complicadas e se você não soubesse alguma coisa a mais estaria fora de contexto pelo menos no caso dos vinhos.
Os estudos da professora vão continuar. A fase seguinte envolverá pedaços de pão e molhos de salada. Com os queijos, ela trabalhou com produtos fixos que não podiam ser alterados prontamente. Mas a gordura, doçura, acidez e outros componentes do pão e dos molhos são itens facilmente manipuláveis.
“Quero ver o que acontece quando aumentamos a acidez, os níveis de gordura e de doçura”, revela Heyman.
“Gosto de harmonizar vinho e comida, mas sem enlouquecer por causa disso. As pessoas esquecem que o vinho é uma bebida que deve ser saboreada. Beba o que você quiser e coma o que gostar sem se preocupar em não ter precisamente o vinho certo para a ocasião”, finaliza a professora.
Foi por isso que, na coluna passada, contei a história do Hemingway viajando através da Borgonha, tomando um vinho da região e comendo as comidas da região. Nada mais natural: é assim que o povo de lá aprendeu a fazer.
Foi por isso, também, que dei dicas de um mestre inglês experimentado e não as minhas, pois dificilmente vou conseguir testar tudo o que deveria para sair por aí deitando regras.
De qualquer modo, a Heyman só confirma o que sabemos: nunca foi fácil combinar vinhos e queijos. O espantoso é que essa dupla é o arroz de festa. Agora, ficamos sabendo que os vinhos perdem intensidade, pioram. Vamos ver o que vem mais por ai.

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