27.8.05

Às cegas

Existe um restaurante em Paris onde, após completar o serviço, o garçom anuncia: "o copo d’água está à esquerda e a taça de vinho à direita, ao alcance de suas mãos". Acontece que você está no mais completo breu, num lugar onde celulares, relógios, qualquer fonte luminosa é confiscada na porta. O garçom é cego e só ele sabe como se virar naquele ambiente. Você não consegue ver nem seu companheiro de mesa, só tocá-lo (o que pode ser uma boa idéia). Mas o caso é que você vai ter que identificar e avaliar o vinho que está naquela taça. É evidente que é o restaurante que escolhe o vinho. Você não sabe que garrafa vem para a mesa. E aí é que são elas.O restaurante, também um bar e lounge é o “Dans le Noir”, que fica na 51, Rue Quincampoix, na área do Beaubourg. Você pode achar o ambiente claustrofóbico ou extremamente tranqüilo. Mas, sem dúvidas, pode ser divertido para uma prova de vinhos e comidas. Um teste cego é a prova de fogo dos profissionais do vinho ou mesmo dos grandes conhecedores. Apenas através dele anulam-se os traços de subjetivismo que acompanham quaisquer julgamentos. No caso dos vinhos, um rótulo à sua frente certamente poderá influenciar a avaliação. A maioria das degustações profissionais é feita às cegas. Os testes comparativos, por exemplo, são sempre cegos: eles reúnem vinhos de safras mais ou menos próximas e da mesma origem. Saber a sua identidade poderia prejudicar toda a avaliação.É um exercício extremamente difícil. É parte, por exemplo, do exame do Institute of Master of Wine, na Inglaterra, o mais importante curso formador de profissionais de vinho do mundo: lá, na prova final, os candidatos têm de identificar nos vinhos a variedade da uva, sua origem geográfica e a safra.Um crítico respeitado, o inglês Jamie Goode, afirma, no seu site “The Wine Anorak" , que os críticos de vinho deveriam submeter-se a testes cegos. Ele antecipa que alguns seriam reprovados, o que para o inglês seria muito bom, pois talvez voltassem seus talentos para áreas distantes da crítica de vinhos.Um teste feito pela Universidade da Califórnia, em Davis, demonstrou que mesmo degustadores experientes encontraram dificuldades em identificar diferentes variedades de uvas. Os enganos foram consideráveis, também, na determinação das safras. O mais antigo e também mais premiado colunista australiano, Len Evans, realizou testes cegos reunindo experimentadores novatos e veteranos. Os novatos geralmente ganhavam, demonstrando que a experiência, muita informação, pode confundir nossos narizes.Há alguns exageros nesse tipo de teste, provavelmente pouco aceitos pelos verdadeiros profissionais do vinho. Por exemplo, o respeitado INAO, Institut National des Appelations d’Origine, órgão oficial que na França administra, regula e protege as Apelações de Origem, não apenas das regiões produtoras de vinho, mas de Cognac, Armagnac e calvados. Pois o INAO projetou taças oficiais de degustação em vidro preto, especiais, evidentemente, para os testes cegos. Os profissionais do vinho, produtores, enólogos, comerciantes e jornalistas utilizam sempre as taças de cristal branco em suas provas regulares. Agora, temos as com vidro preto.Assim, além de ter de identificar as uvas, a origem e a safra, o provador tem de saber se o vinho é tinto, rosado, dourado, amarelo etc. É torturante. Você precisa de muita, muita experiência. E evidentemente de uma tremenda sorte. Contudo, um bom provador dispensa tudo isso. Ele tem a capacidade de, mesmo lendo o rótulo do vinho, sabendo a sua safra e sua origem e a sua eventual “fama”, firmar um julgamento isento sobre a bebida. O amante do vinho faz o mesmo. Não gostou do vinho, passa para outro. Não existe mistério: profissionais e amadores vivem se aproveitando da imensa diversidade dessa bebida. Mesmo duas garrafas de um vinho de rótulos iguais (mesmo produtor, origem, safra etc.) não são absolutamente iguais. Essa é uma das grandes graças dessa bebida.Para os esnobes do vinho, aqueles que se proclamam sabichões, o teste cego é uma prova de humildade: com certeza, essa turma vai sair dessa experiência de cabeça baixa e sossegar por um bom tempo. O “Dans Le Noir” (“No Escuro”) nasceu de um projeto da Sociedade Paul Guinot, criada logo após a Primeira Guerra. Seu objetivo é promover cultura, esportes e empregos para os cegos. A colunista americana Jennifer Rosen esteve lá (e daí esse relato) e diz que provou também a comida: gostou muito, mas acabou comendo com as mãos, pela falta de radares nos seus talheres. Ninguém se importou até porque ninguém viu. O restaurante emprega 12 garçons cegos e regularmente promove degustações de vinhos.De qualquer modo, o “Dans le Noir” promove um choque, uma experiência importante, pois nos coloca no lugar dos cegos, aproxima-nos do mundo deles. Normalmente, sentimos pena deles, oferecemos a ajuda. Mas apenas imaginamos como é viver na escuridão total. O restaurante francês oferece uma experiência real desse mundo. É quando, para sobreviver, apelamos para nossos outros sentidos, principalmente o olfato e o tato. Se o teste cego é a prova dos nove na avaliação de vinhos, comer “às cegas” extrapola o politicamente correto para mim. Às refeições, tenho que ver o que como e bebo.
Comente sobre suas experiências às cegas. Escreva para a Soninha no soniamelier@terra.com.br

Nenhum comentário: