31.10.06

Análise sensorial dos vinhos

Para muita gente, muita mesmo, crítica de vinhos se resume a uma análise sensorial. Muitos, mas muitos mesmo, sugerem que o vinho só pode se avaliado em seus termos, ou seja: que a única coisa que realmente importa quando tentam determinar se um vinho é “bom ou não” é a sua combinação de aroma, textura, sabor, acidez, estrutura de taninos e complexidade.
O resultado desse tipo de análise sensorial (ou crítica de vinhos) é uma nota com três ou quatro linhas e um escore numérico. E, pronto, está feito o trabalho do crítico.
Não há dúvidas de que esse enfoque tem muito de verdadeiro. A análise sensorial é o coração da crítica de vinhos. O que está na garrafa importa muito. Mas não é a única coisa que importa. E quem não concorda com isso pode ser considerado pelo menos ingênuo dos contextos, dos ambientes em que se vive a experiência do vinho.
O entendimento, a avaliação e o pleno prazer de um vinho depende de muitas camadas desse contexto, cada uma delas ajudando a construir um quadro completo da bebida. E que camadas e que contexto seriam esses?
Os sentidos. Os analistas sensoriais (os críticos de vinho) começam colocando um pouco de vinho na taça. Fazem-na girar. Apreciam a cor, a viscosidade e os brilhos através do cristal. Inalam o vinho profundamente e avaliam seus aromas. Depois o bebem para sentir sua textura na língua e sentir seus sabores. Depois o engolem (ou cospem, se forem degustadores profissionais) e cuidadosamente avaliam aromas e sabores que ainda ficam na boca. Essa é a raiz de toda a apreciação de vinhos. Mas não é tudo. Falta alguma coisa.
Tipicidade. O mais teimoso dos críticos admitirá que uma avaliação apropriada do vinho compreende pelo menos uma camada adicional ao contexto puramente orgânico.
O conhecimento da variedade de uva utilizada na feitura do vinho e de onde elas cresceram permite ao provador avaliar melhor o vinho. O crítico poderá, ao menos, analisar se esse vinho é típico daquela uva e se é uma expressão do lugar onde ela cresceu. Mas faltam ainda mais camadas.
Humanidade e História. Além da garrafa e da uva, além da geografia da origem, todo vinho encerra sem dúvidas um contexto humano. Alguém preparou o solo e podou as vinhas. Certo que é mais de um alguém. Todos os vinhos têm uma história humana, a das pessoas que os criaram e cuidaram. Para entendermos completamente o vinho que provamos precisamos também considerar essa história.
Claro que o consumidor comum não tem obrigação de saber sobre quem fez o vinho, nada além do que está no seu rótulo, que muitas vezes não reconhece ou consegue pronunciar. Pode nunca saber da história de duzentos anos de uma família inteira de vinicultores. Ou a história pessoal de um produtor que começou no campo, colhendo uvas com as mãos. Essas coisas não são essenciais para o prazer de beber-se um vinho.
Mas são para mim. E deveriam ser para quem se considera um sério adepto da bebida. Uma crítica de vinho sem a história de quem fez e de onde veio o vinho é, em minha opinião, um mero exercício de juntar adjetivos (nem sempre inteligíveis) e um daqueles números, o placar final, a indefectível nota.
Cultura. Claro que a amiga já ouviu muitas vezes a frase: “Vinho é cultura”. Não poderia ser outra coisa. A bebida de reis e faraós, o salário dos soldados romanos, um sacramento secular, o ganha-pão de monges medievais e muito mais.
Na maioria dos lugares com uma história de mais de quatrocentos anos, a identidade dos seus vinhos está definitivamente emaranhada com as desses lugares. Os nomes (talvez complicados) dos vinhos franceses, italianos e alemães identificam ao mesmo tempo esses vinhos e suas cidades.
Quando colocamos um pouco deles em nossa taça estamos na verdade participando da evolução da cultura de um determinado lugar e de uma certa época.
Pense só: por que os Pinot Noir da Nova Zelândia, da Califórnia e da Borgonha têm sabores diferentes? Para responder a essa questão você tem que saber um pouquinho sobre as características do solo e do clima de cada um desses lugares e das leis que regulam a produção de vinhos em cada um deles e das práticas e tradições incorporadas pelos vinicultores dessas regiões. O produtor do vinho pode introduzir algumas diferenças estilísticas entre os vinhos, mas com freqüência elas são muito mais profundas do que essas práticas.
Ensopado de cordeiro e Chianti. Muscadet e ostras. Rioja e tapas. Essas combinações de vinhos e comidas não foram inventadas por nenhum chef, não resultam de nenhum experimento culinário. São produtos de um lugar específico e de uma época. Antes que o mundo do vinho ficasse globalizado, a maioria das pessoas bebia apenas os vinhos de sua vila, cidade ou, talvez, de suas regiões. Não surpreende, portanto, que aqueles vinhos tenham se apresentado com complementos perfeitos para as cozinhas e paladares locais.
Portanto, não é possível que os críticos de vinhos e mesmo os amantes da bebida ignorem a importância de entendermos de onde e quando vem o vinho no contexto da cultura mundial. Mas falta ainda uma camada nesse contexto.
Emoção e memória. Todas nós que gostamos de vinho tivemos, temos e vamos continuar a ter nossas experiências “perfeitas”. Aquele vinho no piquenique pra lá de simples, ao lado do namorado, aquela garrafa comprada na venda perto de casa resultaram num momento mágico. A luz da lua, o amor de sua vida (naquele momento) e o vinho que a cada gota parecia até melhor do que a hora desfrutada. São taças que você nunca esquecerá, mesmo com um novo namorado. Nunca deixe de fazer piqueniques.
Pois essa é a camada final do contexto que tentamos descrever. Ela compreende nossa psicologia, emoções e memória. Os melhores vinhos que provei foram quase sempre nas melhores companhias.
As amigas nunca me viram analisar sensorialmente um vinho na base de adjetivos e notas numéricas. Eu busco sempre um contexto que englobe os sentidos, as pessoas, a terra, as culturas, a história, a comida e a emoção. E dessa maneira não apago de minha memória vinhos fabulosos e namorados sofríveis. E vice-versa.

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