O vinho que Cabral serviu aos índios, quando nos “descobriu” foi o famoso alentejano “Pêra Manca”. Os índios não o aprovaram. Preferiam o seu cauim, mesmo.
De lá pra cá, já podemos nos ufanar. Por que não? Somos capazes de oferecer nosso vinho, de qualidade comprovada, ao novo conquistador. Pois foi com vinhos Salton, de Bento Gonçalves que Bush e comitiva foram servidos no almoço oferecido por Lula em São Paulo, no último dia 9.
Imagino que o Planalto já esteja servindo vinhos brasileiros há tempos. Mas essa data de 9 de março ganha destaque: nossos vinhos foram o único item “made in Brazil” no almoço no hotel Hilton, em Sampa, farto em ratatouilles, dacquoises e mousses. Estamos considerando que o almoço tenha sido inspirado pelo chef do Planalto e executado pelo pessoal do Hilton.
Levou foi muito tempo, séculos, para que os governantes brasileiros olhassem com bons olhos os vinhos nacionais. Os senhores portugueses, sempre que podiam, mandavam trazer pipas dos vinhos da terrinha. Essa prática atravessou os tempos de colônia, reinado, império e república.
O cauim era uma bebida ritual, de “cor turva e esbranquiçada de leite e um gosto de soro, porém bem mais ácido”, revelou o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que viajou pelo Brasil (ficou aqui de 1816 a 22) coletando espécies de plantas. Era bebido na preparação de guerras, celebração de pactos, de vitórias e um dia antes do sacrifício de vítimas em cerimônias antropofágicas.
Os portugueses, porém, não queriam nada com o vinho de mandioca, mas sim o fermentado de uvas que tomavam em sua erra.
E foi o fidalgo Brás Cubas, experiente viticultor em sua cidade natal, o Porto, quem primeiro plantou videiras no Brasil, em Santos, cidade que fundou. Eram uvas da variedade vitis vinifera (a espécie de vinha da qual a maior parte do vinho fino, em todo o mundo é feito), que não vingaram no litoral, mas que, subindo a serra, no planalto de Piratininga, deram certo. O vinhedo ficava “pelos lados do Tatuapé”, perto da atual rua Tuiuti.
Quando os jesuítas chegaram aqui, precisavam do vinho para a missa, que faltava ou não vingava nos pontos onde se instalavam. Mandavam vir pipas de Portugal. Os vinhos de Piratininga, contudo, satisfaziam as necessidades dos religiosos da região.
Muito vinho rolou no Brasil colônia. Os bandeirantes o comerciavam à larga, mas escondiam seus ganhos. O vinho gerou tanto dinheiro, mas a Coroa não conseguia ter qualquer controle. Vinhos estão entre os principais produtos que os holandeses de Nassau negociavam por aqui. Exportavam açúcar, pau-brasil, fumo, sal etc. e importavam muito vinho (da Espanha e da França), além de cervejas e outros itens.
No início do século XVIII, um barrilote de vinho (na média, cinco litros da bebida) custava mais de meio quilo de ouro (ou, na medida da época, 200 oitavas de ouro). Mais caros só alguns tipos de escravos, cujo preço variava de 300 a 600 oitavas.
Tudo isso em razão da corrida do ouro nas Minas Gerais, que veio a desvalorizar moedas na Europa e encarecer tudo por aqui, o que não deve ter incomodado muito o nosso grande Aleijadinho. Suas finanças deviam ir muito bem: seu biógrafo, Waldemar de Almeida Barbosa, afirma que ele era “mulherengo e amante do vinho”. Sempre foram esportes caros.
Quando D. João VI chegou ao Brasil, fugido de Napoleão, trouxe consigo um batalhão de servidores para as mais diversas funções. Por exemplo: havia o reposteiro-mor, que avançava a cadeira ou poltrona toda a vez que D. João (ou algum outro fidalgo) fazia a menção de se sentar.
E havia o mordomo-mor, que controlava a Ucharia Real, o almoxarifado de víveres do palácio – e aqui entra o nosso vinho. Ele comandava o copeiro-mor, que respondia por provar e servir o vinho, a água e outras bebidas de D. João.
Nota o grande enólogo, crítico e historiador Carlos Cabral que foi “essa função que deu origem ao escanção, palavra do português que nos causa estranhamento, mas que compreendemos perfeitamente ... em francês: sommelier”. E, claro, o vinho passou a ser fornecido pelos ingleses. De qualquer modo, onde havia o copeiro, havia vinho também.
Nos tempos de Pedro I, o vinho português voltou às mesas brasileiras (pelo menos àqueles que podiam pagar por ele). E no reinado de Pedro II, o número de atacadistas e varejistas de vinho cresceu de meia dúzia em 1844 para 150 em 1854. “Era necessário um batalhão deles pra abastecer, além da corte e das grandes cidades nordestinas, também as fazendas de café e as cidades em seu entorno, onde começava a se formar uma ‘aristocracia da roça’”.
Os vinhos do Porto e da Madeira, com os franceses de Bordeaux e de Champagne lideravam as preferências, nessa época. No último suspiro do império, o Baile da Ilha Fiscal, foram consumidas 3.096 garrafas, entre Cristal, Ponsardin, Heidsieck, Madeira, Porto, Tokay, D’Yquem, Lafite, Leoville, Beyschevelle, Ponte-Canet, Margaux etc., etc.
A Princesa Isabel bem que tentou experimentar um vinho feito aqui, com a uva da época, a Isabel, sua xará. Não gostou, “amarga” que era. Tinha lá sua razão. As coisas nessa área só começaram a melhorar aqui com a chegada dos imigrantes italianos na Serra Gaúcha, ao final do vergonhoso período da escravidão. A Isabel foi trocada pela vitis vinifera. E tudo mudou, para melhor.
A família Salton chegou da Itália em 1878; fundou um negócio de secos e molhados. Mas as mudas de vinhas que trouxeram da Itália se deram muito bem aqui e pouco tempo depois os Salton dedicavam-se à cultura das uvas e elaboração de vinhos.
Os Salton chegaram à mesa de Bush como a maior produtora brasileira de espumantes e com centenas de prêmios internacionais: na Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Portugal, Estados Unidos, Eslovênia, República Tcheca, Espanha, Argentina, Hungria, Grécia, Bélgica e até na China, sem contar as marcas conseguidas aqui.
Bush é abstêmio, ficou na Coca Lite. Uma pena que tenha que ser assim. Talvez seu humor mudasse – e com ele o humor de todo o planeta. Tomara que alguém da comitiva do Bush tenha percebido: temos álcool para combustível para vender. E também um álcool que se pode beber com grande satisfação, via nossos vinhos, cuja qualidade já é reconhecida pela Comunidade Européia. Seria uma maneira de emplacarmos no maior mercado comprador de vinhos do planeta.
Aí está, leitora. Passe a considerar nossos vinhos seja no seu dia-a-dia, seja ao receber amigos. O presidente da Vinícola Salton, Ângelo Salton Neto, acha que com um pouco de patriotismo nosso vinho terá muito peso em nossa economia. “É só analisar o que ocorre nas grandes regiões produtoras, como França, Itália, Chile e Argentina. Só se bebe o vinho da terra”. Mas nem precisa ser patriota. Nosso vinho tá bom mesmo, sem patriotismos.
Essa coluna não seria possível sem uma referência fundamental: a do livro “Presença do Vinho no Brasil – Um Pouco de História”, do já citado Carlos Cabral.Se a leitora quiser a receita do cauim para alguma cerimônia ou a relação completa dos vinhos premiados do Vale dos Vinhedos e só clicar para a Soninha.
De lá pra cá, já podemos nos ufanar. Por que não? Somos capazes de oferecer nosso vinho, de qualidade comprovada, ao novo conquistador. Pois foi com vinhos Salton, de Bento Gonçalves que Bush e comitiva foram servidos no almoço oferecido por Lula em São Paulo, no último dia 9.
Imagino que o Planalto já esteja servindo vinhos brasileiros há tempos. Mas essa data de 9 de março ganha destaque: nossos vinhos foram o único item “made in Brazil” no almoço no hotel Hilton, em Sampa, farto em ratatouilles, dacquoises e mousses. Estamos considerando que o almoço tenha sido inspirado pelo chef do Planalto e executado pelo pessoal do Hilton.
Levou foi muito tempo, séculos, para que os governantes brasileiros olhassem com bons olhos os vinhos nacionais. Os senhores portugueses, sempre que podiam, mandavam trazer pipas dos vinhos da terrinha. Essa prática atravessou os tempos de colônia, reinado, império e república.
O cauim era uma bebida ritual, de “cor turva e esbranquiçada de leite e um gosto de soro, porém bem mais ácido”, revelou o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que viajou pelo Brasil (ficou aqui de 1816 a 22) coletando espécies de plantas. Era bebido na preparação de guerras, celebração de pactos, de vitórias e um dia antes do sacrifício de vítimas em cerimônias antropofágicas.
Os portugueses, porém, não queriam nada com o vinho de mandioca, mas sim o fermentado de uvas que tomavam em sua erra.
E foi o fidalgo Brás Cubas, experiente viticultor em sua cidade natal, o Porto, quem primeiro plantou videiras no Brasil, em Santos, cidade que fundou. Eram uvas da variedade vitis vinifera (a espécie de vinha da qual a maior parte do vinho fino, em todo o mundo é feito), que não vingaram no litoral, mas que, subindo a serra, no planalto de Piratininga, deram certo. O vinhedo ficava “pelos lados do Tatuapé”, perto da atual rua Tuiuti.
Quando os jesuítas chegaram aqui, precisavam do vinho para a missa, que faltava ou não vingava nos pontos onde se instalavam. Mandavam vir pipas de Portugal. Os vinhos de Piratininga, contudo, satisfaziam as necessidades dos religiosos da região.
Muito vinho rolou no Brasil colônia. Os bandeirantes o comerciavam à larga, mas escondiam seus ganhos. O vinho gerou tanto dinheiro, mas a Coroa não conseguia ter qualquer controle. Vinhos estão entre os principais produtos que os holandeses de Nassau negociavam por aqui. Exportavam açúcar, pau-brasil, fumo, sal etc. e importavam muito vinho (da Espanha e da França), além de cervejas e outros itens.
No início do século XVIII, um barrilote de vinho (na média, cinco litros da bebida) custava mais de meio quilo de ouro (ou, na medida da época, 200 oitavas de ouro). Mais caros só alguns tipos de escravos, cujo preço variava de 300 a 600 oitavas.
Tudo isso em razão da corrida do ouro nas Minas Gerais, que veio a desvalorizar moedas na Europa e encarecer tudo por aqui, o que não deve ter incomodado muito o nosso grande Aleijadinho. Suas finanças deviam ir muito bem: seu biógrafo, Waldemar de Almeida Barbosa, afirma que ele era “mulherengo e amante do vinho”. Sempre foram esportes caros.
Quando D. João VI chegou ao Brasil, fugido de Napoleão, trouxe consigo um batalhão de servidores para as mais diversas funções. Por exemplo: havia o reposteiro-mor, que avançava a cadeira ou poltrona toda a vez que D. João (ou algum outro fidalgo) fazia a menção de se sentar.
E havia o mordomo-mor, que controlava a Ucharia Real, o almoxarifado de víveres do palácio – e aqui entra o nosso vinho. Ele comandava o copeiro-mor, que respondia por provar e servir o vinho, a água e outras bebidas de D. João.
Nota o grande enólogo, crítico e historiador Carlos Cabral que foi “essa função que deu origem ao escanção, palavra do português que nos causa estranhamento, mas que compreendemos perfeitamente ... em francês: sommelier”. E, claro, o vinho passou a ser fornecido pelos ingleses. De qualquer modo, onde havia o copeiro, havia vinho também.
Nos tempos de Pedro I, o vinho português voltou às mesas brasileiras (pelo menos àqueles que podiam pagar por ele). E no reinado de Pedro II, o número de atacadistas e varejistas de vinho cresceu de meia dúzia em 1844 para 150 em 1854. “Era necessário um batalhão deles pra abastecer, além da corte e das grandes cidades nordestinas, também as fazendas de café e as cidades em seu entorno, onde começava a se formar uma ‘aristocracia da roça’”.
Os vinhos do Porto e da Madeira, com os franceses de Bordeaux e de Champagne lideravam as preferências, nessa época. No último suspiro do império, o Baile da Ilha Fiscal, foram consumidas 3.096 garrafas, entre Cristal, Ponsardin, Heidsieck, Madeira, Porto, Tokay, D’Yquem, Lafite, Leoville, Beyschevelle, Ponte-Canet, Margaux etc., etc.
A Princesa Isabel bem que tentou experimentar um vinho feito aqui, com a uva da época, a Isabel, sua xará. Não gostou, “amarga” que era. Tinha lá sua razão. As coisas nessa área só começaram a melhorar aqui com a chegada dos imigrantes italianos na Serra Gaúcha, ao final do vergonhoso período da escravidão. A Isabel foi trocada pela vitis vinifera. E tudo mudou, para melhor.
A família Salton chegou da Itália em 1878; fundou um negócio de secos e molhados. Mas as mudas de vinhas que trouxeram da Itália se deram muito bem aqui e pouco tempo depois os Salton dedicavam-se à cultura das uvas e elaboração de vinhos.
Os Salton chegaram à mesa de Bush como a maior produtora brasileira de espumantes e com centenas de prêmios internacionais: na Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Portugal, Estados Unidos, Eslovênia, República Tcheca, Espanha, Argentina, Hungria, Grécia, Bélgica e até na China, sem contar as marcas conseguidas aqui.
Bush é abstêmio, ficou na Coca Lite. Uma pena que tenha que ser assim. Talvez seu humor mudasse – e com ele o humor de todo o planeta. Tomara que alguém da comitiva do Bush tenha percebido: temos álcool para combustível para vender. E também um álcool que se pode beber com grande satisfação, via nossos vinhos, cuja qualidade já é reconhecida pela Comunidade Européia. Seria uma maneira de emplacarmos no maior mercado comprador de vinhos do planeta.
Aí está, leitora. Passe a considerar nossos vinhos seja no seu dia-a-dia, seja ao receber amigos. O presidente da Vinícola Salton, Ângelo Salton Neto, acha que com um pouco de patriotismo nosso vinho terá muito peso em nossa economia. “É só analisar o que ocorre nas grandes regiões produtoras, como França, Itália, Chile e Argentina. Só se bebe o vinho da terra”. Mas nem precisa ser patriota. Nosso vinho tá bom mesmo, sem patriotismos.
Essa coluna não seria possível sem uma referência fundamental: a do livro “Presença do Vinho no Brasil – Um Pouco de História”, do já citado Carlos Cabral.Se a leitora quiser a receita do cauim para alguma cerimônia ou a relação completa dos vinhos premiados do Vale dos Vinhedos e só clicar para a Soninha.
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