O que esperamos de um rótulo de vinho? Em primeiríssimo lugar, que ele nos diga o que existe dentro da garrafa. Contudo, muitas vezes eles não cumprem essa obrigação e, ao contrário, despertam gostos sinistros no público.
O que dizer de rótulos com a foto do cruel ditador soviético Josef Stalin? Ou de Hitler, de Lênin, de Mão Zedong, de Guevara e Fidel Castro?
Rótulos que procuram vender a garrafa e não o vinho. Transformam o produto numa piada de tremendo mau gosto, forçando algum tipo de propaganda adicional, já que a qualidade do vinho certamente não vai ajudar.
Veja o caso das nossas cachaças, que levam nome indicativos de machismo (água-de-briga, água-que-passarinho-não-bebe, brasa) ou de uma falta dele (amansa corno etc.), entre dezenas de alusões. A maioria delas, porém, não dá para passar do segundo gole.
Há pouco tempo, em 2003, as relações entre a Alemanha e a Itália ficaram arranhadas porque o produtor Alessandro Lunardelli torna seus rótulos apelações do terror político: fotos de Hitler com a triste saudação nazista, ou opcionalmente, fotos de “heróis” nazistas, como Goering e Rommel, além do ditador italiano Benito Mussolini.
A venda desses vinhos é permitida na Itália, mas o governo alemão protestou contra a comercialização dos mesmos através da Internet. Na Alemanha, são proibidos, pois o governo veta qualquer referência gráfica ao nazismo.
Lunardelli criou em 1995 uma coleção, “série histórica”, eufemismo para valorizar uma idéia grosseira, que no fundo mantém viva a fama de genocidas. No caso do rótulo com Hitler, só podemos concluir que se trata de propaganda do nacional socialismo: o ditador aparece com o braço direito estendido na saudação nazista. Numa legenda da foto, as palavras de ordem do III Reich: “Ein Volk, Ein Reich, Ein Fuehrer” (um povo, um império, um líder).
Lunardelli talvez não venda mais pela internet, mas continua faturando o genocído.
O caso dos vinhos com Stalin é bem mais recente, aconteceu agorinha. A histórica vinícola Massandra, da Ucrânia, resolveu comemorar a Conferência de Yalta, realizada num castelo bem próximo da vinícola, na Criméia, há 60 anos. Nessa conferência, os líderes mundiais de então, o presidente americano Franklin Delano Roosevelt, o Primeiro Ministro Winston Churchill e o ditador Stalin retalharam geopoliticamente a Europa Ocidental, o que foi efetivado ao término da II Guerra. Os três líderes pousaram para uma foto, hoje utilizada como referência obrigatória da conferência: aparecem os três sentados no tal castelo, olhando para a câmera. Pois foi essa foto que a vinícola utilizou. Uma atitude talvez bem intencionada, mas que acabou em desastre.
Os três líderes estão no rótulo de um vinho ao estilo de Jerez e em outro à moda de um Porto.
Só que quando esses dois vinhos chegaram a Winnipeg, Canadá, a comunidade de ucranianos que habita a região protestou. Vive no Canadá forçada por aquele acordo em Yalta, que levou centenas de milhares de europeus orientais a viver em países controlados pelo antigo bloco soviético – e onde muitos foram assassinados.
“Não quero que Stalin seja esquecido, mas lembrado exatamente por aquilo que era: um genocida assassino”, declarou Lubomyr Luciuk, dirigente da Associação Canadense-Ucraniana de Liberdades Civis.
Cerca de 3% dos canadenses, mais de um milhão de pessoas, são descendentes de ucranianos. Depois da guerra, aproximadamente 40 mil deles, refugiados políticos, abrigaram-se no Canadá.
Evidentemente, os vinhos foram retirados da prateleira. Serão devolvidos ao importador ou receberão rótulos novos.
Aqui na América do Sul, já tivemos um vinho com o ditador chileno Pinochet no rótulo. Um caso de puxa-saquismo descarado, bastante comum nos tempos de ditadura.
Sim, temos essa linha de rótulos, que tenta vender através do sinistro, através da bajulação ou da crítica política, caso do vinho com o rótulo da atual Primeiro Ministro italiano Silvio Berlusconi. Que, claro, foi retirado das prateleiras. Mas fez lá o seu barulho.
O que começa bem. Pois é, nem sempre acaba bem. Em 1924, o Barão Philippe de Rothschild comissionou o pintor cubista Jean Carlu para desenhar o rótulo do seu Château Mouton-Rothschild, daquele ano, o primeiro vinho a ser engarrafado na própria vinícola (até então, eram embarricados e engarrafados pelos negociantes, na maioria das vezes em Londres).
A partir de 1945, o Barão transformou o evento de 1924 numa prática anual, que não só deu prestígio ao seu vinho como facilitou a vida de colecionadores, que podem comprar rótulos de uma determinada safra e substituir pelos velhos, rasgados etc. do mesmo ano.
Desde então, artistas de grande prestígio vêm criando os rótulos do Mouton. Entre eles, temos Miró, Chagall, Braque, Picasso, Warhol, Bacon, Balthus. Para a safra de 2002, agora no mercado, o rótulo foi criado pelo russo (emigrado para os Estados Unidos) Ilya Kabakov.
A invenção do Barão é até hoje imitada em todo o mundo. Mas nunca conseguiu os resultados conseguidos pelo Mouton. Em 2002, o grande produtor português Herdade do Esporão teve que retirar do mercado 300 mil garrafas do seu Esporão Reserva, recusado pelos americanos, pois o desenho do rótulo mostrava um sultão ou califa barbado e de turbante extraordinariamente parecido com Osama bin Laden. O pior é que esse vinho chegou a Nova York um dia depois da catástrofe de 11 de setembro. O rótulo foi substituído pela imagem de um rei e rainha medievais bebendo vinho.
Temos vinhos que buscam homenagear personalidades bem mais simpáticas e que até hoje concentram admiradores.
O Marilyn Merlot explora a foto em que a atriz, Marilyn Monroe, aparece nua no célebre calendário – nudez disfarçada por borbulhas de vinho.
Os vinhos da Marilyn existem desde 1985, transformaram-se numa curiosidade e vendem muito bem. São licenciados pelos representantes legais da atriz.
Esses rótulos prestam tributo a artistas mortos. E são bem comentados pela crítica de vinhos. A coleção de vinhos que levam a imagem da lenda do rock Elvis Presley, por exemplo, adotam nomes dos sucessos do interprete: King Cab (Rei Cabernet), Jailhouse Red (tinto), Blue Suede Chadonnay – com vendas extraordinárias nos Estados Unidos.
O líder do famoso grupo The Grateful Dead, Jerry Garcia, é lembrado não por uma marca especial de maconha, mas por uma coleção de vinhos - um merlot, um chardonnay e um cabernet – muito elogiada.
Temos vinhos oportunistas. A mesma vinícola que produziu o vinho do Pinochet, na última Copa lançou um saudando o astro argentino Maradona, tentando arrebatar torcedores portenhos. Claro que esse vinho durou pouco tempo. O oportunismo tem pernas curtas.
O mundo dos vinhos é um grande chamariz. E o que vemos nos últimos tempos e uma quantidade cada vez maior de celebridades dedicarem-se à produção de vinhos. Temos gente como o Francis Ford Coppola, do Poderoso Chefão, até Bob Dylan, o veterano cantor pop Sir Cliff Richard, o ator Simon Neill (do Parque Jurássico, Piano e Caçada ao Outubro Vermelho), o cantor Sting, com uma rica propriedade na Toscana, o ator francês Gerard Depardieu com vinícolas espalhadas pela França, Itália e Argélia.
Nesse ponto, a história fica um pouco diferente. Essas celebridades não querem aparecer nos rótulos, apenas fazer bons vinhos.
Você pode até encomendar vinhos com rótulos personalizados. Por exemplo: eu posso criar um “Sonia Melier Noir”, naturalmente um Pinot Noir com a minha assinatura e a vinheta que aparece aí em cima. Claro que o vinho vem de um vinícola, eu entro apenas com a minha figura, nome e o farol que farei para amigos e amigas. Os rótulos também satisfazem vaidades.
O que você acha de Lula, Ronaldinho, Danielle, Gisele, Chico Buarque em rótulos de vinhos brasileiros? Venderiam mais ou menos? Acho que fariam sucesso por alguns momentos e depois sumiriam do mapa, num ciclo de vida que corre em paralelo com o das celebridades: são apenas 15 minutos e acabou.
O desenho de Kabakov, para o Mouton 2002 que mencionamos acima, tem o título de Okho, janela em russo. Através dessa janela, vemos uma miríade de asas, numa alegoria da mágica de um grande vinho. E é isso que os rótulos devem passar, a mágica, a alegria dos vinhos. E não esquecer de informar o que está dentro da garrafa.
O que dizer de rótulos com a foto do cruel ditador soviético Josef Stalin? Ou de Hitler, de Lênin, de Mão Zedong, de Guevara e Fidel Castro?
Rótulos que procuram vender a garrafa e não o vinho. Transformam o produto numa piada de tremendo mau gosto, forçando algum tipo de propaganda adicional, já que a qualidade do vinho certamente não vai ajudar.
Veja o caso das nossas cachaças, que levam nome indicativos de machismo (água-de-briga, água-que-passarinho-não-bebe, brasa) ou de uma falta dele (amansa corno etc.), entre dezenas de alusões. A maioria delas, porém, não dá para passar do segundo gole.
Há pouco tempo, em 2003, as relações entre a Alemanha e a Itália ficaram arranhadas porque o produtor Alessandro Lunardelli torna seus rótulos apelações do terror político: fotos de Hitler com a triste saudação nazista, ou opcionalmente, fotos de “heróis” nazistas, como Goering e Rommel, além do ditador italiano Benito Mussolini.
A venda desses vinhos é permitida na Itália, mas o governo alemão protestou contra a comercialização dos mesmos através da Internet. Na Alemanha, são proibidos, pois o governo veta qualquer referência gráfica ao nazismo.
Lunardelli criou em 1995 uma coleção, “série histórica”, eufemismo para valorizar uma idéia grosseira, que no fundo mantém viva a fama de genocidas. No caso do rótulo com Hitler, só podemos concluir que se trata de propaganda do nacional socialismo: o ditador aparece com o braço direito estendido na saudação nazista. Numa legenda da foto, as palavras de ordem do III Reich: “Ein Volk, Ein Reich, Ein Fuehrer” (um povo, um império, um líder).
Lunardelli talvez não venda mais pela internet, mas continua faturando o genocído.
O caso dos vinhos com Stalin é bem mais recente, aconteceu agorinha. A histórica vinícola Massandra, da Ucrânia, resolveu comemorar a Conferência de Yalta, realizada num castelo bem próximo da vinícola, na Criméia, há 60 anos. Nessa conferência, os líderes mundiais de então, o presidente americano Franklin Delano Roosevelt, o Primeiro Ministro Winston Churchill e o ditador Stalin retalharam geopoliticamente a Europa Ocidental, o que foi efetivado ao término da II Guerra. Os três líderes pousaram para uma foto, hoje utilizada como referência obrigatória da conferência: aparecem os três sentados no tal castelo, olhando para a câmera. Pois foi essa foto que a vinícola utilizou. Uma atitude talvez bem intencionada, mas que acabou em desastre.
Os três líderes estão no rótulo de um vinho ao estilo de Jerez e em outro à moda de um Porto.
Só que quando esses dois vinhos chegaram a Winnipeg, Canadá, a comunidade de ucranianos que habita a região protestou. Vive no Canadá forçada por aquele acordo em Yalta, que levou centenas de milhares de europeus orientais a viver em países controlados pelo antigo bloco soviético – e onde muitos foram assassinados.
“Não quero que Stalin seja esquecido, mas lembrado exatamente por aquilo que era: um genocida assassino”, declarou Lubomyr Luciuk, dirigente da Associação Canadense-Ucraniana de Liberdades Civis.
Cerca de 3% dos canadenses, mais de um milhão de pessoas, são descendentes de ucranianos. Depois da guerra, aproximadamente 40 mil deles, refugiados políticos, abrigaram-se no Canadá.
Evidentemente, os vinhos foram retirados da prateleira. Serão devolvidos ao importador ou receberão rótulos novos.
Aqui na América do Sul, já tivemos um vinho com o ditador chileno Pinochet no rótulo. Um caso de puxa-saquismo descarado, bastante comum nos tempos de ditadura.
Sim, temos essa linha de rótulos, que tenta vender através do sinistro, através da bajulação ou da crítica política, caso do vinho com o rótulo da atual Primeiro Ministro italiano Silvio Berlusconi. Que, claro, foi retirado das prateleiras. Mas fez lá o seu barulho.
O que começa bem. Pois é, nem sempre acaba bem. Em 1924, o Barão Philippe de Rothschild comissionou o pintor cubista Jean Carlu para desenhar o rótulo do seu Château Mouton-Rothschild, daquele ano, o primeiro vinho a ser engarrafado na própria vinícola (até então, eram embarricados e engarrafados pelos negociantes, na maioria das vezes em Londres).
A partir de 1945, o Barão transformou o evento de 1924 numa prática anual, que não só deu prestígio ao seu vinho como facilitou a vida de colecionadores, que podem comprar rótulos de uma determinada safra e substituir pelos velhos, rasgados etc. do mesmo ano.
Desde então, artistas de grande prestígio vêm criando os rótulos do Mouton. Entre eles, temos Miró, Chagall, Braque, Picasso, Warhol, Bacon, Balthus. Para a safra de 2002, agora no mercado, o rótulo foi criado pelo russo (emigrado para os Estados Unidos) Ilya Kabakov.
A invenção do Barão é até hoje imitada em todo o mundo. Mas nunca conseguiu os resultados conseguidos pelo Mouton. Em 2002, o grande produtor português Herdade do Esporão teve que retirar do mercado 300 mil garrafas do seu Esporão Reserva, recusado pelos americanos, pois o desenho do rótulo mostrava um sultão ou califa barbado e de turbante extraordinariamente parecido com Osama bin Laden. O pior é que esse vinho chegou a Nova York um dia depois da catástrofe de 11 de setembro. O rótulo foi substituído pela imagem de um rei e rainha medievais bebendo vinho.
Temos vinhos que buscam homenagear personalidades bem mais simpáticas e que até hoje concentram admiradores.
O Marilyn Merlot explora a foto em que a atriz, Marilyn Monroe, aparece nua no célebre calendário – nudez disfarçada por borbulhas de vinho.
Os vinhos da Marilyn existem desde 1985, transformaram-se numa curiosidade e vendem muito bem. São licenciados pelos representantes legais da atriz.
Esses rótulos prestam tributo a artistas mortos. E são bem comentados pela crítica de vinhos. A coleção de vinhos que levam a imagem da lenda do rock Elvis Presley, por exemplo, adotam nomes dos sucessos do interprete: King Cab (Rei Cabernet), Jailhouse Red (tinto), Blue Suede Chadonnay – com vendas extraordinárias nos Estados Unidos.
O líder do famoso grupo The Grateful Dead, Jerry Garcia, é lembrado não por uma marca especial de maconha, mas por uma coleção de vinhos - um merlot, um chardonnay e um cabernet – muito elogiada.
Temos vinhos oportunistas. A mesma vinícola que produziu o vinho do Pinochet, na última Copa lançou um saudando o astro argentino Maradona, tentando arrebatar torcedores portenhos. Claro que esse vinho durou pouco tempo. O oportunismo tem pernas curtas.
O mundo dos vinhos é um grande chamariz. E o que vemos nos últimos tempos e uma quantidade cada vez maior de celebridades dedicarem-se à produção de vinhos. Temos gente como o Francis Ford Coppola, do Poderoso Chefão, até Bob Dylan, o veterano cantor pop Sir Cliff Richard, o ator Simon Neill (do Parque Jurássico, Piano e Caçada ao Outubro Vermelho), o cantor Sting, com uma rica propriedade na Toscana, o ator francês Gerard Depardieu com vinícolas espalhadas pela França, Itália e Argélia.
Nesse ponto, a história fica um pouco diferente. Essas celebridades não querem aparecer nos rótulos, apenas fazer bons vinhos.
Você pode até encomendar vinhos com rótulos personalizados. Por exemplo: eu posso criar um “Sonia Melier Noir”, naturalmente um Pinot Noir com a minha assinatura e a vinheta que aparece aí em cima. Claro que o vinho vem de um vinícola, eu entro apenas com a minha figura, nome e o farol que farei para amigos e amigas. Os rótulos também satisfazem vaidades.
O que você acha de Lula, Ronaldinho, Danielle, Gisele, Chico Buarque em rótulos de vinhos brasileiros? Venderiam mais ou menos? Acho que fariam sucesso por alguns momentos e depois sumiriam do mapa, num ciclo de vida que corre em paralelo com o das celebridades: são apenas 15 minutos e acabou.
O desenho de Kabakov, para o Mouton 2002 que mencionamos acima, tem o título de Okho, janela em russo. Através dessa janela, vemos uma miríade de asas, numa alegoria da mágica de um grande vinho. E é isso que os rótulos devem passar, a mágica, a alegria dos vinhos. E não esquecer de informar o que está dentro da garrafa.
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