14.3.05

O nome da uva

Quando as coisas vão mal, costumamos mudar. O desempenho da indústria vinícola francesa vai pra lá de mal, com as vendas internas e externas caindo sem parar. Então a França resolveu mudar, mudar inclusive regras centenárias.
A partir de junho, os rótulos dos vinhos do país vão poder exibir o nome das uvas contidas nas garrafas. E assim, ao lado da região de origem do vinho, teremos os nomes das uvas utilizadas. Uma traição ao império do “terroir”, nome que os franceses dão ao conjunto de solo, clima, subclima, regime dos ventos, de chuva, sol e dos tipos de uvas mais apropriadas para uma região, e que destacam nos seus rótulos? Nada disso.
A França tenta reagir, talvez com atraso, ao sucesso dos vinhos do Novo Mundo, os do Chile, Argentina, África do Sul, Califórnia e principalmente da Austrália. São vinhos normalmente acessíveis ao consumidor, em termos de sabor, preço e marca. Ninguém se engana com vinhos que tenham no rótulo os nomes Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Syrah, Merlot, Pinot Noir, Sauvignon Blanc, entre outras. E olha que são varietais de origem francesa, conhecidas em todo o mundo. Logo, porque não fazer o que já devia ter sido feito?
O consumidor pode a essa altura diferenciar um Cabernet de um Merlot, mas geralmente não sabe que num Châteauneuf-du-Pape, do Vale do Ródano, impera a uva Syrah. Convenhamos: não é nada fácil entender as diferenças entre as 466 apelações francesas – e que vinhos são permitidos em cada uma delas.
Os franceses ainda são os maiores exportadores de vinho do mundo, mas a sua taça, seja por volume ou por valor, não está mais cheia. Temos o declínio do mercado doméstico, dizem que em função de leis contra beber e dirigir, contra publicidade “apelativa” (por exemplo, juntar sensualidade e vinho: uma mulher com decote mais generoso segurando uma taça, não pode) e de uma maior atenção com a saúde, com as cinturinhas e as barrigas. Temos também a situação de um euro mais forte que o dólar. Fica mais difícil vender assim, com os preços em euro.
O nome da varietal nos rótulos, porém, será opcional. É improvável que os grandes produtores de Bordeaux ou de Champagne adotem essa mudança. A reforma foi feita mais para ajudar os pequenos produtores, aqueles desconhecidos do grande público e que competem numa faixa de preço mais baixa (entre 5 e 15 dólares), onde os vinhos do Novo Mundo estão fazendo a festa.
Na França, colocar o nome da uva nos rótulos é permitido desde 1980, mas apenas para os vin de pays, os vinhos regionais, uma categoria intermediária, acima dos vin de table, a mais básica. Esses vin de pays não são de apelação – aqueles que geralmente alcançam um mercado melhor e respondem por 55% da produção de vinhos no país. Há apelações, como a da Alsácia, que autoriza o nome da varietal no rótulo – embora seja minoria. Quem quiser colocar o nome da uva no rótulo é obrigado a transformar-se numa simples vinho de mesa e sair da vendedora condição de vinho de apelação (AOC).
Os vinhos que no país não conseguem vender são destilados, transformados em álcool. Mas pela primeira vez, o equivalente a 22 milhões de caixas de vinhos de apelação, a maioria de Bordeaux, virou álcool, o que dá idéia do tamanho da crise que os produtores franceses estão enfrentando.
O consumidor americano está comprando mais vinhos do Novo Mundo. Ele é hoje o alvo número um de todos os produtores de vinho. Isso porque por volta de 2008 os americanos serão os maiores consumidores de vinho do globo. E quem afirma são os próprios franceses, via estudo conduzido pelo grupo VinExpo, da famosa exposição de Bordeaux. Segundo essa pesquisa, em 2008 os norte-americanos responderão por 25% de todo o vinho consumido no mundo. Ou seja: de hoje até lá, o crescimento será de astronômicos 19%. Os EUA ficam, então, à frente da França, Itália e Espanha. O mercado total, hoje somando 100 bilhões de dólares, aumentará 14,7% em 2008. Acontece que os americanos não só beberão mais vinhos. Eles já concordam em pagar mais pelas garrafas do que os europeus. Logo, quem não mudaria? A alteração nos rótulos é simples, apenas fará com que os consumidores saibam o que tem dentro das garrafas. Como é que não tinham pensado nisso? O grande problema vai ser fazer um vinho ao gosto do americano. O problema está aí: a qualidade muda também.
(Veja “Éramos felizes”, abaixo.)
Sonia Melier está no soniamelier@terra.com.br

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