16.1.07

História de uma dívida

Ao comentarmos sobre um vinho deveríamos sempre lembrar do seu aspecto cultural. Já até comentamos isso por aqui. Além dos seus aspectos sensoriais, organolépticos, enológicos, das suas importantes características regionais, devemos procurar registrar o que aquele vinho, aquela uva (ou uvas) ou aquele método de produção emprestaram para a história da humanidade. Afinal, a identidade dos vinhos permeia a história de vilas, cidades, países, continentes.
Prefiro falar sobre vinhos considerando também esse lado. Aliás, procuro fazer assim com qualquer assunto. Na maioria das vezes (e justificadamente), saímos atrás de apagar o incêndio. Mas é importante também sabermos onde e porque o fogo começou.
Olhe só o exemplo do Milk Thistle – que é um remédio citado com freqüência pela supercrítica inglesa Jancis Robinson. Ela, antes de qualquer degustação, toma um comprimido desse remédio, tido como milagroso para proteger o fígado. Para ela, o Milk Thistle é o “amigo dos bebedores, uma erva milagrosa”.
Pois esse Milk Thistle nada mais é do que o cardo mariano (silybum marianum), uma planta, também chamada de silimarina, considerada a talvez melhor das ervas para o tratamento do fígado, utilizada há mais de 2000 anos. O extrato das sementes dessa erva atua como um potente protetor do fígado, promovendo o nascimento de novas células hepáticas. Ajuda a proteger e eventualmente curar o órgão de danos causados pelo álcool, drogas, produtos químicos ou medicamentosos, venenos e até em hepatites. E ainda reduz a gordura depositada no fígado (a esteatose).
O Milk Thistle já pode ser encontrado em nossas farmácias por nomes como: Silimalon, Legalon, Milk Thistle mesmo ou Leberschutz, como é conhecido na Alemanha.
Será que é mera coincidência que a figura do cardo (thistle) é também o emblema heráldico nacional da Escócia – maior produtora mundial de uísque? A história oficial sobre o seu uso como símbolo nacional fala em batalhas, atos de heroísmo que datam de quase mil anos. Sei lá.
O exemplo da Croácia. Outro caso, esse comprovado historicamente, se localiza na Croácia, que fazia vinhos muito antes de cair sob o jugo romano, na antiguidade.
Outro dia, li uma resenha do blogueiro americano Alder Yarrow sobre um vinho branco da Dalmácia, uma província da Croácia. Alder é um crítico sério, muito bem informado: seu blog acaba de ser eleito o melhor dos Estados Unidos, em 2006, na categoria comida e bebida. Veja o Vinography aqui.
A Croácia já foi província romana, esteve sob o mando do Império Bizantino, dos Francos e dos Otomanos - quando suas tradições vinícolas conseguiram sobreviver às políticas antialcoólicas dos novos senhores. Em seguida, quando os otomanos saíram, ficou sob a jurisdição de Veneza e depois dos Habsburgos.
Até que, em fins do século 18, chegou um baixinho danado, Napoleão, que voltou a tornar um pouco mais difícil a vida dos croatas. O imperador francês foi logo impondo o pagamento de taxas, como é de praxe.
Mas como pagá-las, tão pobres que eram os croatas? Tinham peixe (a Dalmácia, uma província ao norte, é banhada pelo Adriático), que os franceses tinham e muito. Optaram por pagar com uma certa uva branca. Os franceses tinham muita uva, mas seus soldados estavam espalhados por toda a Europa, precisavam dos vinhos mais próximos de suas tropas (fora melhorar os ânimos, serviam como substitutos mais saudáveis da água).
E é sobre um vinho croata com essa uva de que fala o blogueiro Alder. A família do vinicultor, Alan Bibich, faz vinhos a cinco gerações. Esse vinho vem dos vinhedos da família em Skradin, no norte da Dalmácia. Além dele, Bibich experimenta vinhos tintos com variedades locais: Babich, Plavina e Lasin, além de híbridas da Syrah e da Grenache.
Não conheço o vinho. Mas o blogueiro diz que ele tem uma bela cor dourada, aromas de torrada, de pinheiros. Acidez viva, sabores minerais e de frutos verdes, com toques de baunilha (o vinho ficou em barril por 18 meses). Alder acha que ele tem semelhanças com um Sauvignon Blanc, Chenin Blanc, Riesling e Gruner Veltliner, cujas características são lembradas nessa bebida de várias maneiras.
Mas esse vinho possui uma carga histórica exclusiva: seu nome conta um episódio da história do país.
Os vinhos são nomeados normalmente ou pela variedade da uva (ou uvas) ou pela região onde as uvas são plantadas e o vinho produzido. De um modo geral, os vinhos do Velho mundo têm seus nomes a partir do local de produção, as uvas utilizadas ou não aparecem ou não tem destaque nos rótulos. Veja os exemplos de Champagne, Bordeaux, Rioja, Chianti etc.
Já nos vinhos do Novo Mundo (todos os lugares menos a Europa), o destaque fica para a varietal utilizada. Nota-se, nessa parte do mundo, que cada vez mais é dada importância às regiões de produção nos rótulos, ao lado do nome da uva utilizada. A grande exceção nesse continente é a Alemanha, onde não é raro encontramos o nome das varietais nos rótulos. Até na França, uma boa quantidade de produtores já começa a acrescentar o nome das uvas na identificação comercial dos vinhos.
No caso do nosso vinho croata, seu nome é Debit, uma uva branca, cujo nome remete não a uma região, mas aos tempos do domínio napoleônico, à solução para um problema nacional. Com essa uva que o povo da Dalmácia pagou seu tributo a Napoleão. Ninguém sabe exatamente que nome tinha antes do imposto. Mas ficou na história como Debit, dívida. Se quiser importar, seu nome todo é: Bibich Debit Skradin 2003.
E os croatas continuam pagando essa dívida. Não mais a imperadores, mas aos consumidores de seu vinho – e, ao que parece, com muita qualidade. Essa é uma história onde todos acabam felizes.

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