22.2.05

Dom Quixote e Sideways

Degustar e beber vinho são coisas bem diferentes. No filme Sideways, as duas ações ficam bem claras. Você vê Miles (Paul Giamatti), o personagem principal, e seu amigo Jack (Thomas Haden Church) beberem vinho sem parar. Estão atrás de sabor e de inebriar-se, embora Miles tenha grande interesse por vinhos e coloque a máscara do entendido.
Mas também pode assistir a uma degustação do mesmo Miles com Maya (Virginia Madsen), que é a verdadeira especialista no assunto, no filme, ela trabalha numa vinícola e, nas suas folgas, estuda viticultura.
Degustar um vinho é examinar sua qualidade, caráter ou identidade. Combina experiência, conhecimento e o uso de três sentidos: visão, olfato e paladar. Tudo para analisar as impressões sensoriais estimuladas pelo vinho. É preciso muitos anos de prática para reconhecer certos vinhos e suas regiões de origem, saber se estão mais ou menos equilibrados, quais suas falhas e seus pontos altos.
É um ofício muito antigo. Existem provas dessa atividade na antiga Grécia, em razão da organização do comércio do vinho, que deve ter criado uma classe de mercadores especializados em identificar e classificar os vinhos, suas qualidades, suas propriedades. Existia até uma palavra para o provador de vinho e seu ofício: oinogeustes. O verbo significando “degustar vinho” existe desde o século IV AC.
Para também celebrarmos os 400 anos do Don Quixote de la Mancha, de Cervantes, lembramos de uma história contada por Sancho Pança, que propalava grande conhecimento sobre vinhos, possuidor de enorme e natural instinto em julgar a bebida.
“Deixe-me apenas sentir o aroma de um vinho que vou certamente dizer de que país veio, sua espécie, seu sabor, sua qualidade, que alterações sofrerá com o tempo e tudo o mais a respeito de um vinho”, vangloriava-se ele.
Sancho explica que seu dom tinha origem em dois parentes por parte de pai. Seriam os melhores degustadores de La Mancha. Uma vez, numa certa vila, ofereceram aos dois uma prova de vinho retirado de um mesmo barril. Um deles chegou a colocar a ponta da língua na bebida. O outro apenas cheirou a taça.
O primeiro disse que o vinho tinha um sabor de ferro. O segundo afirmou que o vinho tinha um forte sabor de couro. Mas o dono do barril jurou que o barril estava limpo: nada tinha sido adicionado ao vinho. Não havia razão para sabores de ferro ou couro na bebida.
O tempo passou, o vinho foi consumido até que o barril ficou vazio. Foi então que acharam lá no fundo uma pequena chave amarrada a uma tira de couro. Tinha caído lá por acidente.
Sem esnobismos, Maya conduz uma degustação, acompanhada pelo pretensioso Miles. Você pode até repetir as ações de Maya e iniciar um aprendizado pela mímica. É de certo modo o que faz a maioria dos que dizem que entendem de vinho: dão uma olhada na taça, desajeitadamente a giram, praticamente enfiam o nariz na taça e aspiram aromas. E no final provam o vinho. Mas o melhor mesmo é tomar algumas providências antes. Por exemplo, manter um diário sobre os vários vinhos que você prova. Não só vai se lembrar o que bebeu como poder comparar notas sobre os demais vinhos consumidos. Poderá também voltar a provar vinhos que você gostou e recusar os que não tolerou. Vai aos poucos aprendendo o jargão dos críticos para descrever os vinhos presentes nesse diário. Na internet você encontra vários. Eis aqui um bem completo, do site português e-Mercatura.net . Muita gente coleciona rótulos e os organiza para melhor lembrar dos vinhos que tomou.
Suas taças devem sempre estar perfeitamente secas, muito bem limpas e não serem lavadas com detergentes, que podem emprestar aromas e sabores indesejáveis ao vinho. O lugar onde você vai degustar também deve ser neutro: nada de gente perfumada, de fumantes, de velas acesas. Não esqueça de usar tolhas brancas na mesa. O fundo branco da toalha evitará deformações de cor na bebida, facilitando o exame dela na taça. Não coma antes da degustação, pois os sabores da comida podem afetar a experiência da degustação. Comece a degustação sempre com os vinhos brancos, depois os rosados e por último os tintos.
O processo é o seguinte, em resumo:
1) Encha 1/3 da taça do vinho que escolher.
2) Segure a taça pela haste num ângulo de 45 graus e examine o vinho contra a luz. Preste atenção na cor e na claridade. Vinhos brancos jovens apresentam uma cor de palha ou um tom esverdeado. Na medida em que envelhecem, ficam dourados e até mesmo marrons. Já os tintos começam com um vermelho bem escuro e na medida em que amadurecem tomam a cor de um vermelho-tijolo até marrom, mais leve. O vinho deve estar bem claro, luminoso, sem apresentar algum tipo de opacidade, névoa, alguma coisa que o turve. Só pelo o exame da cor, você poderá comentar sobre a idade do vinho e algumas de suas falhas.
3) Agora, gire a taça. Observe o corpo do vinho. Verifique as “pernas”: aquelas lágrimas que lentamente correm da borda da taça até a superfície do vinho, após os movimentos que você fez. Elas podem indicar se o vinho é muito encorpado (“corpo” é o peso do vinho na boca, resultante da presença do álcool e de todas as substâncias nele desenvolvidas), ou tem alto teor alcoólico ou um maior nível de doçura. Ao girar o vinho os aromas serão mais facilmente liberados.
4) Agora, faça como a Maya: enfie o nariz na taça e aspire fortemente. O aroma de um vinho é chamado de “nariz”. Verifique em que condição a bebida está: suave (equilibrado de corpo e de sabor, com finesse, um vinho com textura fina e redonda, de consistência fácil), rançoso ou terroso (com aroma ou sabor de terra, do solo de onde veio a uva), sua intensidade (a profundidade de aromas e sabores; a complexidade na composição da bebida e a impressão e duração dessas sensações na sua boca) e o caráter (conjunto de qualidades que dão personalidade própria ao vinho e permitem distingui-lo de outros: ele tem mais frutos ou mais flores – ou até mesmo um tanto de couro, como na história do Sancho Pança). Passe o tempo que quiser descobrindo tudo que os aromas de um vinho vão oferecer-lhe. Lembre-se que nosso nariz é tremendamente mais sensível que nossa boca, que nosso paladar. Só ele pode determinar as sutilezas desses aromas. Numa degustação com Miles, Maya deixa Miles meio sem graça ao descobrir que no vinho que provavam o álcool era mais dominante que as frutas. Uma falha importante.
5) Agora só falta provar o vinho: vamos descobrir o “paladar” do vinho, a sensação que ele produz ao ser degustado e bebido. Quando o vinho entra na boca, o degustador deve saboreá-lo com a língua, esmagando-o contra o palato e as gengivas. Assim, percebem-se melhor as características estruturais do vinho (corpo, álcool, tanino), o acetinado e a textura da matéria, assim como os seus aromas que vão alcançando o nariz por via retronasal. Não fique envergonhada em repetir a manobra de um gargarejo, fazendo com que a bebida envolva completamente as suas papilas gustativas. Verifique a acidez, a doçura, o corpo, a presença de frutas e de álcool.
6) O degustador profissional vai cuspir o que está na boca numa escarradeira. Afinal, ele vai ter que provar dezenas de vinhos numa só sessão de degustação. Não pode ficar embriagado.
Tirando algumas frescuras que sempre existiram, desde o tempo dos gregos (como direção do vento, menstruação de Hera, mau humor de Zeus etc.), a degustação sempre considerou os passos acima. De substancial nada mudou.
Mas estamos aqui tentando repetir Miles e Maya e homenageando Sancho Pança, meio que degustando, bebericando, jogando conversa fora, contando lorotas e namorando. Eu não degustaria e beberia. Não cuspiria nadinha de nada.
Leia ou releia do Dom Quixote, veja Sideways e comece já o seu aprendizado caseiro de degustação.
Sonia Melier agora no soniamelier@terra.com.br

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