4.2.05

Sideways

“Sideways – Entre Umas e Outras”, agora em cartaz nos cinemas, conta a história de dois velhos amigos numa viagem pela Califórnia. A dupla resvala das estradas principais e cai por atalhos, caminhos laterais (sideways), para explorar com bom humor os acidentes do amor, da amizade, da solidão, dos sonhos e da permanente guerra entre a Pinot Noir e a Merlot.
Pois esse filme, com uma história bem simples e de produção barata para os padrões de Hollywood (US$ 18 milhões), adaptada de um livro de Rex Pickett, transformou-se num sucesso da crítica internacional. Foi escolhido como o melhor filme de 2004 pela Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles, ficando ainda com os prêmios de melhor diretor (Alexander Payne), melhor ator e atriz coadjuvantes (Thomas Haden Church e Virginia Madsen) e melhor roteiro (Alexander Payne e Jim Taylor).
Já ganhou dois Globos de Ouro (de melhor filme – comédia e melhor roteiro), fora indicações para melhor diretor, melhor ator de comédia/musical, melhor ator coadjuvante, melhor atriz coadjuvante e melhor trilha sonora. Recebeu também uma indicação ao BAFTA (British Academy of Film and Television Arts) de melhor roteiro adaptado. Teve ainda seis indicações ao Independent Spirit Awards (melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor ator coadjuvante, melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro). E acaba de receber cinco indicações ao Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor ator coadjuvante, melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro adaptado.
O filme recebeu a extraordinária cotação 94 no Metacritic, um site que reúne opiniões e notas dos mais respeitáveis críticos e publicações.
Miles (Paul Giamatti), um divorciado que ainda não se recuperou da perda da mulher, é um escritor não editado com uma fixação em vinho. Resolve dar de presente a um velho amigo de colégio, Jack (Thomas Haden Church) uma viagem de “despedida de solteiro” pelos vinhedos da Costa Central, na Califórnia, uma semana antes do casamento do amigo, um ator desempregado. É uma dupla estranha. Jack é mulherengo, extrovertido. Miles é depressivo, o eterno preocupado, fala mais do que cumpre. Jack busca o último gosto da liberdade, enquanto Miles apenas tenta não ficar ainda mais pra baixo. Jack nada sabe de vinhos, não se importa em beber um Merlot barato. Miles parece ter algum conhecimento e busca o perfeito Pinot Noir, uma procura temperamental. Não espera para abandonar (aos berros) um lugar onde tenha alguém bebendo Merlot. Tudo pose, máscara de conhecimento e esnobismo. Toda a figuração que Miles faz para degustar um vinho (girar a taça, examiná-lo visualmente, enfiar o nariz na taça para sentir seus aromas e finalmente prová-lo) fica sem sentido quando bebe um Cheval Blanc 1961 (preço entre 1.200 e 1.800 dólares, a garrafa) numa reles lanchonete. E num copo de plástico. Pode não tem sentido, mas a cena transpira humanidade.
Uma das locações do filme, a Vinícola Sanford, virou atração turística, com os visitantes querendo provar das garrafas que o esnobe Miles experimentou. Na verdade, todas as 18 locações, incluindo vinícolas, restaurantes etc. viraram pontos turísticos.
O filme, inclusive, está influenciando fortemente a escolha de vinhos nos Estados Unidos, com as garrafas de Pinot Noir (a preferida de Miles) disparando nas vendas. Até um leilão com os principais vinhos experimentados ou mencionados pelos protagonistas do filme está sendo realizado pelo site winebid.com . A lista em leilão oferece vinhos da área de Santa Bárbara, Califórnia, além de Cabernets Sauvignons e Super Toscanos clássicos, bem como lendários Bordeaux e Borgonhas. Estão lá o Cheval Blanc 1961, o Sassicaia 1988, o Opus One 1995, entre outros.
Não se trata de uma novidade. O americano está pagando e caro para ter impressões turísticas, momentâneas, de lugares concretos. É o que o escritor Tom Wolfe (“Fogueira das Vaidades”) chama de “economia psicológica”. A Disney é o exemplo mais corriqueiro.
O pessoal vai visitar a vinícola Niebaum-Coppola, do diretor Francis Ford Coppola, buscando mais lembranças do “Poderoso Chefão” e do “Drácula”, do que dos vinhos que ele produz. De qualquer modo, a Niebaum foi reconstruída pelo cineasta como um ambiente turístico. Você vai lá – e também em outras vinícolas da Califórnia – e sai com uma camiseta do “Apocalyse Now” em vez de uma garrafa de vinho.
Só que Sideways, pelo que já se sabe, está levando o público a experimentar efetivamente os vinhos. A venda de vinhos com a Pinot Noir aumentou 22% desde o lançamento do filme nos Estados Unidos.
O filme parece mais sobre enofilia do que vinho propriamente. Mas a bebida é mais do que um pano de fundo, figura pelo menos como um dos seus principais personagens. Ele talvez não pretenda ensinar sobre o vinho, mas coloca a bebida, um pouco de sua história e cultura (em particular, vícios, cacoetes, o comportamento de seus aficionados) no centro do palco. E isso o torna único na filmografia (a que conheço, pelo menos).
A fixação do personagem principal, Miles (Paul Giamatti) pela Pinot Noir é uma bela sacada, de quem conhece o assunto. O filme se utiliza da delicada, complexa e temperamental uva como uma metáfora para a condição humana. Miles fica bêbado e zangado com facilidade, rouba mil dólares de sua mãe, se autoflagela pela perda de sua esposa e rapidamente entra em depressão. São pequenos defeitos, que também encontramos na uva, de difícil manejo. Por sua vez, Miles tem uma grande sensibilidade e demonstra que é capaz de amar de verdade. A sua Pinot Noir não é diferente. A busca de Miles se encerra quando conhece Myra, uma garçonete, e não quando descobre a perfeita Pinot Noir.
Miles é um anti-herói, um novelista frustrado, na crise da meia-idade. O diretor Alexander Payne fez de uma simples história sobre a amizade entre dois homens uma dissertação sobre a nossa capacidade de errar e amar.
Payne passou muito tempo visitando vinícolas, vinhedos, adegas e a conviver com produtores e vinhateiros para selecionar locações e entender melhor do mundo dos vinhos. Sempre gostou da bebida. Mas até conseguir filmar era “um prisioneiro de lojas e revistas sobre vinhos”, revela.
Vamos então acompanhar a dupla e saber um pouco mais sobre as garrafas provadas pelos dois personagens. Acho que Sideways vai conseguir fazer com que ele deixe o papel decorativo numa mesa para o centro das atenções de uma história que só vem merecendo honrarias pela crítica especializada.
O cinema bem que estava devendo isso a esse personagem. Mas foi preciso esperar muitos anos para que existisse um conhecimento global do vinho, que se encontrasse um diretor de cinema com bastante amor e conhecimento da matéria e um público devidamente interessado na bebida e em sua cultura.
O documentário “Mondovino”, de John Rossiter, também lançado ano passado, quando fez furor em Cannes, e que começou agora a fazer carreira na Europa também está dando o que falar – muito mais entre profissionais do vinho. Rossiter toca nesse ponto nevrálgico da globalização do vinho, falando e apresentando aqueles que estão tentando transformar a bebida numa Coca-Cola, numa commodity sem qualquer registro das suas origens e das culturas envolvidas em sua produção.
Já “Vineyards of Death” (Vinhedos da Morte) conta uma história de mistério: um corpo é descoberto nos vinhedos do Lago Sêneca, no Estado de Nova York. Será filmado a partir de julho na vinícola Glenora Wine Cellars, famosa na região.
O vinho pode esperar muito mais do cinema, pois o conhecimento e gosto por ele só fazem aumentar. Agora mesmo leio que os norte-americanos serão os maiores consumidores de vinho lá por volta de 2008, deixando a Itália e a França respectivamente em segundo e terceiro lugares. Sim, vão passar até a França. Essa nota foi retirada de um relatório apresentado na Vinexpo, uma importante feira de vinho realizada em Bordeaux, coração de uma das mais importantes regiões vinícolas do mundo.
Talvez os franceses estejam pagando o preço por não terem mais Miles e Jacks entre seus consumidores – que gostam de seus vinhos, mas sem complicações e sem perder de vista que têm de resolver outros probleminhas. Vinho é uma bebida deliciosa, que também é cultura, história e geografia, mas não está acima dos nossos problemas do dia-a-dia. Continua sendo suco de uva fermentado.
Vamos ver o filme e saber como Miles e Jack acabam por resolver suas charadas. Acho que Sideways vai informar muito sobre o vinho e seu mundo e, sobretudo, sobre o ser humano. Tomara que faça uma boa carreira também no Brasil. A cerimônia do Oscar será transmitida dia 27 de fevereiro.
Sonia Melier agora está no soniamelier@terra.com.br .

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